sexta-feira, 4 de maio de 2012

DIVISÕES NO CRISTIANISMO ANTES DO CRISTIANISMO




Estranho esse título? Posso explicá-lo. No presente trabalho proponho uma reflexão a partir da leitura de Filipenses 1.12-30, uma carta paulina que, assim como as demais cartas paulinas, é um dos textos mais antigos da história do cristianismo. Sabemos que os evangelhos do Novo Testamento e o livro de Atos dos Apóstolos, foram produzidos já nas últimas décadas do primeiro século, entre os anos 80 e 90 para sermos mais exatos, mas as cartas de Paulo são documentos que nos remetem aos anos 50. Por isso, digo que Filipenses é anterior ao próprio cristianismo.
É aceito por todos os historiadores que a religião cristã não adquiriu independência em relação ao judaísmo pelo menos até fins do primeiro século. Os evangelhos, que refletem as crises entre os seguidores de Jesus e outros judeus, nos dão testemunhos do processo conflituoso que dava aos grupos cristãos de diversas localidades uma identidade própria. Mas isso ainda não existe em Paulo. Enquanto ele esteve vivo, ninguém diria que Jesus fundara uma nova religião, nem sequer aceitariam a hipótese de que deixaram o judaísmo. Por isso tudo, é mais correto dizermos que estamos lidando com um “proto-cristianismo”, um cristianismo em fase embrionária; ou talvez seja melhor dizer que estamos estudando formas diferentes de judaísmo.
Isso explica uma parte do nosso título, mas ainda falta demonstrar as tais “divisões” que nós alegamos existir já naquele período, e para isso, vou convidá-los a acompanhar minha leitura de Filipenses. Começaremos no capítulo 1, versículo 12, e seguirei comentando as seções rapidamente, fazendo observações sobre pontos mais específicos, e seria bom que o leitor também tivesse uma Bíblia em suas mãos.
Pois bem, o versículo 12 traz o que chamei de “asserção”, onde Paulo oferece aos leitores sua própria interpretação a respeito de determinado evento. Ele estava preso, e naturalmente esse evento era interpretado negativamente pela comunidade de discípulos de Jesus de Filipos; mas Paulo afirma que isso foi bom, ou seja, interpreta a realidade e convida os destinatários a aceitarem sua leitura da vida. O motivo para essa interpretação otimista é o “progresso do evangelho” (v. 13-14); pessoas do palácio (que talvez seja o lugar em que Paulo estava retido) ouviram sua história e com ela sobre Cristo, e os “irmãos” estavam anunciando a palavra com mais dedicação desde então. Com isso, Paulo diz que sua prisão acabou se tornando um evento positivo.
Aqui, no versículo 15, aparecem os opositores, os inimigos que nos levaram a afirmar desde nosso título que o proto-cristianismo já conhecia diferentes vertentes que lutavam por alguma supremacia. Dois grupos, personagens coletivos, são apresentados e brevemente descritos. Alguns são vistos por Paulo como bons, e anunciam o evangelho por amor, de boa vontade; os outros são os vilões da história, e segundo a visão de Paulo, pregam Cristo por inveja e rivalidade, por ambição egoísta (v. 15-18). Alguns pontos são importantes, como por exemplo, o que nos diz claramente que o grupo antagonista é cristão (v. 15). Depois, é interessante que (pelo menos na ótica paulina) eles querem fazer mal a Paulo, o que nos mostra que no meio do embate, Paulo é visto pelos “outros” como uma espécie de liderança (v. 17b). Não é difícil imaginar que o conflito aqui repita formas que nós podemos conhecer através de outras cartas paulinas, e que há um grupo judaico mais conservador que crê em Cristo, mas que não concorda com o liberalismo proposto pelo tipo gentílico de seguimento cristão de Paulo. Os dois grupos lutam entre si, um embate que pode adquirir muitas formas. Embora ambos sejam formados por pessoas que se dizem seguidores de Jesus, as divergências já se mostram tão sérias que os leva a lutar ativamente uns contra os outros. Este primeiro capítulo da carta aos filipenses gira em torno de uma realidade difícil que é a prisão de Paulo, e dos consolos e motivações que este apóstolo quer transmitir aos irmãos; agora, quando esses rivais vão sendo revelados, podemos até supor que a própria prisão tenha alguma relação com esse conflito.
Há um parágrafo bem definido entre os versículos 19 e 26. A princípio Paulo demonstra confiança na libertação/salvação, mostra-se otimista com a oração dos irmãos e com o auxílio do Espírito de Jesus Cristo (v. 19), mas não pode deixar de considerar a possibilidade de que não venha a sair da prisão, a não ser pela morte (v. 20). Mesmo neste ponto delicado da carta, Paulo procura demonstrar otimismo; medita sobre as duas possibilidades (vida ou morte), e interpreta ambas como destinos felizes. Para ele, morrer não é ruim, pois acredita que estará com Cristo, porém, julga “mais necessário” permanecer vivo para contribuir com o progresso dos irmãos (v. 21-26).
Deixando de lado aquela reflexão sobre a vida ou a morte, Paulo passa a contar com outros caminhos, ambos de vida. No versículo 27, as oposições entre visão/presença e audição/ausência nos mostram que o assunto é outro. Temos um imperativo, o pedido para que os filipenses vivam dignamente do evangelho, e isso é explicado na sequência. Viver dignamente do evangelho é 1) permanecerem unidos num só espírito, 2) lutando pela fé do evangelho, e 3) sem se intimidar pelos opositores. Um parêntese: a “fé do evangelho” é o nome que ele dá ao que hoje chamaríamos de “fé cristã” ou “cristianismo”; é uma maneira bem antiga de falar sobre o tipo de religiosidade deste grupo, maneira que foi substituída posteriormente.
Os rivais reaparecem no discurso paulino (v. 28), e com um detalhe importante: eles intimidam. Talvez isso nos ajude a fortalecer aquela hipótese de que a prisão de Paulo tenha alguma relação com esse conflito interno do judaísmo proto-cristão. Esse tipo indefinido de pressão imposta pelos adversários, diz Paulo, é para eles, indício de perdição; ou seja, essa perseguição (seja qual a for a forma que ela assuma), é uma tentativa de prejudicar o movimento do tipo paulino, porém (e aqui novamente Paulo oferece uma leitura otimista da situação adversa), ele os ensina ver como sinal positivo, de salvação. Então, o sempre otimista Paulo diz que a diferença entre o seu “grupo” e o dos rivais é que só aos seus foi concedido o “privilégio” de crer e sofrer por Cristo (v. 29). Eis uma definição cristã que hoje não seria bem aceita, a de que os cristãos são pessoas que creem e que sofrem por Cristo.
Para fechar o capítulo, o versículo 30 diz que os discípulos que estão livres estavam passando pelas mesmas dificuldades pelas quais Paulo já havia passado, e ainda passava. Eu diria que Paulo fora perseguido primeiro pelos rivais porque era visto como uma liderança daquele movimento, e que esses mesmos perseguidores cristãos agora se voltavam contra os discípulos de Paulo. Com tudo isso, descobrimos que o cristianismo realmente já estava dividido e em combate antes mesmo de ser cristianismo; trata-se de uma religiosidade plural, que desde seus primórdios conheceu diferentes formas de existir; pluralidade esta que não foi recebida com bons olhos, mas que provocou lutas internas.
Esse pequeno fragmento textual que lemos é recorte muito rigoroso pelo qual não podemos ter a pretensão de reconstruir historicamente o cristianismo originário. Porém, ele reflete com clareza um tipo de cristianismo multifacetado e divergente que nós nem sempre queremos reconhecer. Imagino que os tipos de cristianismos eram muito mais numerosos e variados do que podemos conceber. Nesta leitura, não apenas encontramos duas formas de cristianismos, também os encontramos em conflito. Não é possível determinar as proporções desse conflito, nem saber que tipo de iniciativa opressiva um podia impor sobre o outro. Só tivemos acesso a pequenos indícios de que talvez um desses movimentos tenha conseguido levar Paulo à prisão, e que seguia amedrontando outros. Todas as acusações feitas por Paulo quanto aos adversários podem ser exageradas, produzidas no calor do conflito; elas até nos lembram o modo pejorativo com o qual os evangelhos retratam os fariseus. Nos perguntamos a partir daí se, ao longo de mais de um século de lutas internas como essa, não podem ter desaparecido muitos tipos de cristianismos hoje desconhecidos.
Enfim, o cristianismo do tipo paulino não foi derrotado. A preservação dos textos paulinos e a reverência das igrejas à memória do apóstolo nos séculos seguintes nos dão provas de, pelo menos noutras localidades, seu trabalho prevaleceu. Mesmo assim, ler estas passagens e reconstruir os possíveis conflitos e identidades dos cristianismos originários é um empreendimento que acaba por nos livrar de concepções ingênuas que tínhamos em relação à chamada “igreja primitiva”. Assim como acontece hoje, os primeiros cristãos discordaram, se opuseram, se ofenderam, se agrediram, se distanciaram...

Um comentário:

João Queiroz disse...

Nunca tinha pensado por esse lado.