terça-feira, 21 de janeiro de 2014

SALMO 2 – O CANTO DE UM OPRESSOR



Tenho trabalhado com o Salmo 2 há um tempo, servindo-me dele nas minhas aulas de exegese. Geralmente me lembro de empregá-lo quando surge a necessidade de tratar de algumas questões técnicas relativas à literatura bíblica, principalmente no que diz respeito às características de sua enunciação. Mas o que me motivou a escrever sobre esse texto é seu conteúdo, que é surpreendentemente estranho à Bíblia de um modo geral (ou pelo menos à leitura que dela costumamos fazer).
Os textos bíblicos, como quaisquer textos, são usados por seus leitores para diferentes finalidades. Não é difícil encontrar leitores empregando a Bíblia para legitimar suas próprias ideias. Mas apesar dessa autonomia interpretativa exercida pelo leitor, a maioria deles encontram nas páginas da Bíblia conteúdos que incentivam o amor ao próximo, a caridade, a religiosidade... O Salmo 2 me surpreendeu justamente porque não lida com esses conteúdos mais habituais; antes, é um texto ideologicamente maligno. Noutras palavras, é um texto ditatorial, que justifica a violência e a opressão, e eu nunca tinha notado isso.
No estudo que farei empregarei a versão de João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (ARA), e isso simplesmente porque estou mais acostumado a ler o Salmo nessa versão. Farei ainda alguns comentários sobre as questões técnicas, conjeturas sobre o contexto social e histórico, mas com brevidade, para que a análise não se desvie de seus objetivos iniciais.
Façamos a leitura dos primeiros versículos:
1 Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:
3 “Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas”.
As primeiras palavras nos colocam em contato com o narrador, sujeito anônimo como geralmente acontece na Bíblia. Ele nos fala de eventos e personagens bem específicos, que parecem nos remeter ao período monárquico em Judá, também chamado de Reino do Sul (em oposição a Israel, Reino do Norte), antes da invasão babilônica e do exílio. Não cheguei a empreender pesquisas extra-textuais que me permitissem apontar com maior precisão se esse texto condiz com algum momento histórico vivido por aquele reino, mas o que importa é que o mundo do texto, o cenário criado, nos remete à monarquia judaíta em dias de apogeu.
Segundo o narrador, os gentios, que são todos os que não são de Judá, planejam inutilmente se libertar do domínio político que este exercia sobre eles. Os gentios supostamente clamavam por liberdade e planejavam um motim contra Judá, o dominador. O versículo 3 deixa isso muito claro: Judá e os hebreus, que na maior parte de sua história estiveram sujeitos a reinos e impérios, surpreendentemente estão por cima. Daí minha estranheza frente ao contexto sugerido pelo texto; estamos ouvindo a voz do opressor, e não do oprimido como quase sempre acontece.
Peço licença para falar do que o texto não diz: Normalmente, o domínio de um reino sobre o outro era expresso de forma violenta, num controle militar rigoroso, na expropriação de terras, na escravização das pessoas, na cobrança de taxas... Imagino, portanto, que era desse tipo o domínio que Judá poderia estar exercendo sobre algumas nações vizinhas, domínio sempre ditatorial que o texto figurativiza através de expressões como laços e algemas.
Vale destacar que o plano de liberdade dos gentios, dos reis da terra, é considerado inútil por esse narrador porque ele acredita que o domínio de Judá é um estado que o próprio Deus estabeleceu. Por isso, no versículo 2 ele diz que se levantar contra Judá é lutar contra Deus. Também diz que o rei de Judá é o “Ungido”, isto é, aquele que Deus elegeu e capacitou para exercer uma missão especial.
A prova de que sua confiança na manutenção do domínio judaíta está em Deus aparece nos próximos versículos:
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.
6 “Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião”.
Os versículos 4 e 5 falam de Deus. Como é comum nos textos bíblicos, um narrador onisciente e anônimo fala como quem conhece Deus, como quem entende seus planos, ouve sua voz. A suposta rebelião dos gentios seria dissipada pela ira de Deus, que é tão superior, são poderoso, que ri dos rebeldes e de seus projetos libertários.
Sugiro que o meu leitor atente para o versículo 6, e para o fato de que eu o coloquei entre aspas. Fiz isso porque entendo que nesse ponto o narrador cita o próprio Deus. Entenda: o narrador continua falando, mas usa a voz de Deus, seu personagem, como um recurso literário, com propósitos estilísticos e retóricos. O problema é que isso não está indicado no texto por nenhum sinal gráfico nem por palavras; cabe ao leitor atento descobrir de quem é as palavras. Essa é uma das questões técnicas às quais me referi no começo: os salmos não costumam marcar para o leitor as transições da voz narrativa; não costumam anunciar quem está se expressando com a clareza que vemos, por exemplo, nos evangelhos.
Seja como for, o conteúdo que as supostas palavras divinas querem transmitir é simples: Foi Deus quem instituiu o rei de Judá, que habita provavelmente num palácio localizado no Monte Sião, que é Jerusalém. Isso, como vimos, já fora dito pelo narrador, mas agora é Deus quem fala, e isso torna qualquer asserção mais confiável para o leitor.
Seguindo como a leitura, eu acredito que há uma nova transição não anunciada pelo narrador. Eu diria que a partir do versículo 7 quem fala não é nem o narrador, nem Deus, mas o próprio rei, também chamado de Ungido. Todavia, o tal Ungido também faz como o narrador e cita supostas palavras de Deus:
7“Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse:
8 ‘Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança
e as extremidades da terra por tua possessão.
9 Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro’”.
O objetivo dessas linhas é anunciar um decreto divino, que elegeu este tal rei para exercer o cargo de governante de Judá e, por meio desse cargo, das nações das redondezas. O decreto deixa claro que ele tem o direito de dominar toda a terra, isto é, de fundar um verdadeiro império.
O rei ganha um novo epíteto, o de Filho de Deus, e isso tem conduzido muitos leitores a ignorar os problemas desse texto em nome de uma leitura cristológica. Sua proximidade para com Deus é, portanto, fator determinante para que se aceite seu domínio como um domínio divinamente fundamentado.
Para os leitores mais devotos, ofereço dois argumentos para defender a posição de que esse rei não é Jesus: Primeiro, sabemos que esse império israelita ou judaíta nunca existiu. Embora não saibamos com exatidão de que período histórico esse texto está falando (se é que fala de algum), é fato que Judá não exerceu um domínio tão extenso e duradouro quanto o que autor acredita que exerceria. Segundo, o versículo 9 nos mostra que o projeto imperialista desse Ungido é violento, ditatorial, maligno... Ele quer que Judá despedace seus dominados, e não sei como isso pode ser lido como um projeto divino.
Enfim, discordo do projeto ideológico do salmo; discordo de sua teologia, de sua política, e conhecendo um pouco da história fico feliz por saber que esse judeu não realizou seus objetivos. Mas passemos às últimas estrofes dessa poesia ditatorial que por algum motivo desconhecido ganhou um lugar privilegiado no cânon bíblico:
10 Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra.
11 Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor.
12 Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.
Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.
O narrador retoma o controle e cala seus personagens. Depois de várias linhas empenhado em nos fazer acreditar que esse reino é divinamente fundamentado, e que seu governante é uma espécie de líder messiânico, ele passa ao que realmente queria. O narrador coloca os imperativos, dá ao leitor as ordens que queria transmitir desde o começo.
Ele pede aos narratários, os reis da terra, que sejam prudentes, que se deixem advertir pelo salmo, que sirvam ao Senhor com alegria e respeito, e que se submetam ao domínio exercido pelo rei que habita em Jerusalém. Na verdade, o salmo nada mais é que uma tentativa de suprimir a revolta dos gentios, anunciada nos primeiros versos. Para convencer seus narratários, para levá-los finalmente a aceitar o contrasto proposto, ele usa de vários recursos: 1) ele usa principalmente de intimidação; ameaça-os com a ira de Deus, que segundo ele está prestes a se irritar com os rebeldes que não aceitam servi-lo (isto é, submeter-se ao governo de Judá); 2) ao mesmo tempo lhes oferece segurança, refúgio àqueles que atendem a seus pedidos, que beijam o filho e passivamente se deixam dominar; 3) e ainda provoca dizendo que seu modo de agir é imprudente, já que seria prudente deixar-se advertir.
Lido o texto, passo a propor algumas poucas reflexões de caráter mais pragmático.
·       O texto que lemos nos mostra que a Bíblia não é unânime, não apresenta apenas um tipo de religiosidade, não defende apenas um projeto político ou social e, portanto, não é um simples guia para a vida cristã como muitos acreditam. A Bíblia deve ser lida como um registro de diferentes pontos de vista, de diferentes momentos históricos, e que não podem ser recebidos sem a devida reflexão. A Bíblia é apenas um ponto de partida para nossas próprias experiências, uma inspiração, cheia de bons e maus exemplos que ao cabo sempre podem nos instruir. Assim, uma leitura fundamentalista, que pretende “viver”, obedecer cada imperativo contido em suas páginas, só pode resultar em confusão.
·       Se o leitor concordou comigo e chegou à conclusão de que esse texto defende um projeto ditatorial, será obrigado a admitir que o relacionamento do cristão com a Bíblia deve ser bem mais sério do que geralmente se pratica. Os versículo 8, por exemplo, costuma legitimar o cristianismo e ser usado por teólogos da prosperidade, mas do meu ponto de vista ambos estão errados, estão se aproveitando do texto ao isolar esse versículo dos demais. O versículo 9 nos revela que não há nada do Cristo no tal Filho Ungido que o Salmo 2 nos apresenta, e que o verso não é uma promessa universal de prosperidade, não autoriza qualquer um a pedir, determinar e receber dádivas de Deus. Na verdade, o que vimos é que só o tal Ungido se achava nesse direito, e mesmo assim, a história de Israel nos prova que esse homem, se existiu, nunca recebeu as nações por herança. Essas são questões que geralmente surgem nas aulas de exegese.
·       Na leitura que fiz mostrei que a realidade histórica por traz do texto pode iluminar nossa compreensão, mas não é determinante. Procurei mostrar como a ideologia está sendo defendida, e não sabemos se as afirmações correspondem a qualquer realidade histórica passada. Ou seja, a Bíblia pode ser lida como ficção, útil para quem a recebe, independente de dizer a verdade ou não. Vale dizer que não estou dizendo que as histórias bíblicas são falsas, mas que elas podem ser e nem Sempre seremos capazes de avaliar isso; todavia, isso não é tão importante quanto se julga por aí. O que vale numa narrativa lida não é sua historicidade, e sim, sua mensagem.
·       Também gostaria de dizer que esse texto, se ele realmente preserva a memória de um opressor, pode servir para desencadear uma reflexão sobre a religiosidade humana: Os homens usam Deus, falam em seu nome, e sempre acham que estão fazendo a coisa certa. Todo vilão é herói desde seu ponto de vista, e julga ter Deus a seu lado, contar com sua bênção, e espera ir para o céu um dia. Nem o mais abusivo dos ditadores admitiria servir ao Diabo, e por isso nós temos que ser cuidadosos quando as pessoas falam em nome Deus. Como aconteceu nesse salmo, isso pode ser apenas um truque para manipular os outros. Os líderes religiosos, em especial, usam das mesmas estratégias que o salmista: apóiam-se num suposto “chamado” ou “eleição”, num título religiosamente fundamentado, ameaçam os seguidores com o inferno, e prometem que Deus vai recompensar os que fazem o que eles querem. Pois é, a história sempre se repete.
Enfim, certamente há mais lições para extrair desse texto e da nossa leitura, mas penso que as acima apontadas são suficientes. Como sempre, desejo que o leitor concorde comigo e aprenda a ler a Bíblia de um modo que considero mais maduro; contudo, se o leitor discorda (e ele tem todo o direito), ele pode seguir lendo como desejar, enquanto minha esperança é a de que ele tenha sido aperfeiçoado de algum modo pelo meu trabalho. Então, sigamos refletindo, discutindo, compartilhando, discordando... Mas resistamos aos opressores; mesmo quando eles são bíblicos.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

COLÓQUIO SOBRE AS CRISES DE FÉ DE QUEM BUSCA CONHECIMENTO




Em Agosto de 2010 publiquei neste blog um texto intitulado “Por que
Estudar Religião Provoca Crises de Fé?”.


Escrevi-o pensando em meus alunos de um curso de teologia, que no período demonstravam os efeitos de se estudar religião, questionar seus próprios dogmas e ver suas certezas e objetivos de vida mudando em pouco tempo. Chamei esses efeitos de “crises”, mas bem que poderíamos dizer que se trata de uma nova “conversão”. No período meus alunos demonstraram satisfação com a leitura, e o texto foi um dos mais lidos e comentados que já escrevi para o blog.

Hoje aquele texto me deu uma nova alegria: Um leitor muito especial me enviou um e-mail falando sobre sua leitura do texto, e sobre suas próprias crises de fé. Respondi suas questões de maneira bem pessoal, e logo vi que essa conversa poderia servir como um complemento àquele primeiro texto. Pedi ao leitor que me deixasse publicar nosso diálogo no blog, e ele aceitou gentilmente. Assim sendo, as linhas abaixo apresentam o e-mail do meu leitor e também o que escrevi como resposta. Tomei o cuidado de substituir seu nome real por um fictício e sugestivo “Thomas”. Também omiti as datas e as instituições citadas por nós, e resumi alguns trechos para dificultar a identificação da identidade do meu leitor.


1 - E-mail do Leitor:

Olá Anderson, Boa Tarde.

Não nos conhecemos, me chamo Thomas, sou brasileiro, professor, além de estudante de teologia num seminário protestante.

Li em seu blog o texto no qual você escreve para estudantes de teologia confusos e relutantes; enfim, posso dizer que me identifiquei um bocado com ele, pois estou passando por um momento muito tenso e difícil de minha vida. Estou ingressando no seminário, porém, pelos motivos errados.

Tenho outra formação universitária não ligada à teologia, e minha vivência durante os anos de graduação mudaram drasticamente minha maneira de conceber minha fé e uma porção de perguntas foram sendo acumuladas ao longo dos anos de estudo. Durante a semana, onde eu estudava, eu era um jovem comum, racionalista e sinceramente interessado nos estudos e relações que tinha com amigos. Aos finais de semana eu mantinha minhas funções na igreja. Foi assim durante anos, talvez por solidariedade aos amigos e família, aos compromissos dos quais eu não conseguia me separar, mantive uma espécie de vida dupla: uma religiosa, e outra que buscava ardentemente respostas e que não permitia a existência de nenhuma certeza sem fundamento. Mesmo assim, me interessei por ingressar no seminário, pois queria me aprofundar nos estudos e ainda tenho planos de ingressar no mestrado em ciência da religião.

Apesar dos planos, algo me angustia. Hoje vejo que jamais teria o perfil de um pastor, no entanto, não posso mais me desvencilhar desta responsabilidade, acredito que meu caminho inevitavelmente será a trilha da teologia liberal, do relativismo e por fim o da descrença, por mais que eu tente que as coisas façam sentido pra mim, como se todos os dias eu me olhasse no espelho e repetisse que sou cristão. O que me move não é a fé, e sim uma curiosidade imensa e uma vontade de dar ordem ao caos que há anos embaralha meu senso de realidade.

Acha que seria desonesto ir para um seminário com estas motivações? Não sei exatamente por que estou lhe escrevendo, acho que é porque me identifiquei com sua maneira de pensar, e especialmente porque não encontro ninguém por aqui com quem eu possa me abrir de verdade a respeito de minhas dúvidas e angústia relacionadas à fé.

No mais, agradeço a disposição e paciência,

Um abraço,

Thomas.


2 – Resposta do Autor:

Oi Thomas, li seu e-mail com muita satisfação. Obrigado por confiar a mim suas angústias.

Acho que você se identificou com o texto do blog porque eu também trilhei esse mesmo caminho. De algum modo, acho que tenho alguma experiência para transmitir a pessoas como você. Eu mesmo comecei a frequentar igrejas e seminários de teologia em busca de respostas. Também não estou aberto a crer em coisas sem fundamento, e por isso minha busca por conhecimento me afastou da igreja aos poucos, mas me conduziu até uma carreira profissional ligada à religião.

Sobre sua carreira acadêmica, eu sei do que fala quando diz que não vai conseguir abandonar os estudos da religião. Eu também sou um apaixonado pelo tema. Acho importante que você tenha um contato com a teologia antes do mestrado, mas é um lugar de conflitos para pessoas como nós. O ideal seria fazer uma graduação em ciências da religião, coisa que não existe. Minha solução foi a seguinte: Eu também tinha outra formação (música), então fiz alguns anos de seminário, procurando por disciplinas de meu interesse (grego, exegese, filosofia...), e deixando de lado aquelas relacionadas ao trabalho pastoral, para o qual não tenho vocação. Depois parti para a pós-graduação e mestrado em ciências da religião. Acho que você pode fazer o mesmo, já que a formação em teologia só tem valor para aquisição de conhecimento e para o ministério. Sobre o mestrado, procure por um curso conceituado. Podemos voltar a falar sobre isso quando realmente estiver pronto pra ingressar.

Já que estamos sendo sinceros, acho que a permanência na igreja é uma bomba relógio para pessoas como você. Não acho que você vá aguentar. Alguns alunos conseguem seguir com sua vida ministerial após a teologia como se não tivessem ouvido nada, mas noto que eles precisam enterrar muitas perguntas e coisas que aprenderam. Outros voltam à igreja querendo mudar as coisas e se transformam em causadores de conflitos. Essa vida pra mim não serve. A melhor coisa a fazer é encontrar outros objetivos fora da igreja, mudar os rumos da sua vida. Essa foi minha decisão, e não me arrependo; mas pense no assunto, pois é uma decisão importante.

Sobre a fé, eu acho que nunca cheguei ao ponto do ateísmo. Penso que a maturidade nos conduz a uma espécie de agnosticismo. Eu tenho uma teologia própria, cheia de relativismos e incertezas que hoje não me incomodam. Digo que aceito a existência de coisas além da vida material, mas já não sei se qualquer religião saiba explicar essa "realidade". Assim, pra mim, se as religiões não possuem as respostas, eu não me sinto obrigado a frequentar qualquer uma delas. Da mesma maneira, não vejo motivos para tentar destruir a fé dos outros. Não sei se me expliquei bem, mas acho que isso é uma forma de maturidade, que nos faz ecumênicos, tolerantes, antifundamentalistas...

Caro Thomas, espero tê-lo ajudado de alguma forma.

Grande abraço.

Anderson.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

MANDELA E A COPA DO MUNDO




Concordo quando criticam o governo brasileiro por investir tanto dinheiro na copa do mundo, que não passa de um show de entretenimento, negligenciando outras necessidades bem mais urgentes do povo. Também concordo quando os brasileiros exaltam a memória de Nelson Mandela por sua luta contra o preconceito racial e suas consequências. Todavia, me incomoda o radicalismo fundamentalista com que se defende essas causas nas redes sociais. A foto de Mandela com a taça da Fifa é só pra lembrar que esse grande homem também apoiou o evento esportivo na África do Sul, e nenhum brasileiro se importou com os gastos públicos nem criticou o já divinizado Mandela. A vida é assim; nossos heróis são falhos, nossos ideais limitados, nossa visão é míope, nossas ambições utópicas...

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

DICA DE LEITURA - A BÍBLIA PÓS-MODERNA



No ano 2000 a editora Loyola publicava uma obra que merece ser considerada entre os estudos literários da Bíblia no Brasil. Trata-se de A Bíblia Pós-Moderna: Bíblia e Cultura Coletiva, que havia sido publicada originalmente em 1995 nos Estados Unidos por uma dezena de estudiosos da religião.

Para introduzir o leitor ao conteúdo os autores começam colocando o básico truísmo que justifica os estudos bíblicos na contemporaneidade: “a Bíblia tem exercido mais influencia cultural no Ocidente que qualquer outro documento”, e como de costume, gastam algum tempo apresentando as limitações e defasagens das abordagens bíblicas tradicionais como a Exegese Histórico-Crítica, que chamam de “crítica histórica” (2000, p. 11-12). Então os autores colocam sua proposta:

[...] defendemos uma crítica bíblica transformada, que reconhece que nosso contexto cultura é marcado por estáticas, epistemologias e princípios políticos muito diferentes dos que predominavam na Europa dos século XVIII e XIX, onde a erudição bíblica tradicional está tão completamente enraizada. Também defendemos uma crítica bíblica transformadora, que se incumba de entender o impacto ininterrupto da Bíblia na cultura e, portanto, tire vantagem dos generosos recursos do pensamento contemporâneo sobre linguagem, epistemologia, método, retórica, poder, leitura, bem como das questões políticas prementes e muitas vezes controversas da “diferença” – gênero, raça, classe, sexualidade e, naturalmente religião – que passam a ocupar o centro do palco tanto em discursos públicos como acadêmicos. (2000, p. 12)

Em suma, os objetivos do livro excedem os limites de uma abordagem literária da Bíblia. Os autores querem expor uma diversidade bem maior de possíveis abordagens pós-modernas da Bíblia, passando pelos estudos da recepção e pela crítica narrativa, mas chegando a tratar de abordagens psicanalíticas, feministas e ideológicas. Essa abertura é considerada uma virtude pelos autores, que criticam, por exemplo, o famoso Guia Literário da Bíblia de Alter e Kermode, que segundo eles se limita a trabalhar “certa forma de crítica literária canônica” e exclui deliberadamente outras abordagens tão atuais e relevantes quanto aquela (2000, p. 17).

Em 2008 João C. Leonel Ferreira escreveu um artigo onde apresentava algumas das publicações nacionais sobre a abordagem literária da Bíblia, e falando de A Bíblia Pós-Moderna, lamentou dizendo: “Infelizmente o texto é matizado por demasiadas questões contextuais norte-americanas” (Ferreira, 2008, p. 5). Lendo a obra, não demoramos muito a entender essa crítica. Para os leitores acostumados às abordagens texto-centradas como a dos demais autores que leem a Bíblia como literatura, essa obra causa estranheza por estar marcada por uma ideologia pós-moderna norte-americana que vê as estratégias de leitura que propõe como atividades políticas, como meios de “questionar as estruturas de poder e sentido predominantes” (2000, p. 13). A posição dos autores é bem colocada nas linhas abaixo:

[...] ler a Bíblia de maneira erudita tradicional significa com demasiada frequência lê-la, com ou sem intenção, de maneiras que reificam e ratificam o status quo – ao permitir a subjugação das mulheres (na Igreja, nos maios acadêmicos ou na sociedade em geral), justificar o colonialismo e a escravidão, racionalizar a homofobia ou legitimar de outro modo o poder de classes hegemônicas. (2000, p. 14)

O que vemos é que os autores identificaram as leituras bíblicas tradicionais como arcaicos mantenedores de certos valores que eles (e a sociedade pós-moderna) consideram superados. O projeto, portanto, quer propor novas leituras que não tragam em seu encalço os resquícios dos tempos em que o machismo, a escravidão, a homofobia e o totalitarismo religiosos eram biblicamente legitimados. Noutras palavras, seus objetivos excedem os limites da crítica literária, do prazer estético, e os leitores brasileiros por vezes se veem diante de um embate de acadêmicos religiosos norte-americanos que estão numa luta legítima contra um fundamentalismo religioso que não alcançou tanto poder nessa parte da América.

Tentando agir de forma coerente com seu projeto ideológico os autores produziram uma obra coletiva. De fato, não há hierarquias nessa produção conjunta; os autores dos capítulos não são nomeados e se comunicam sob a identidade coletiva identificada apenas por um “nós”. Tudo isso é explicado na introdução da obra como uma tentativa de transformar as práticas autorais e editoriais correntes, também maculadas pelos antigos valores, pelo desejo de controlar a produção literária e seu sentido (2000, p. 25-28). Os nomes dos autores as respectivas vinculações acadêmicas só aparecem nas “orelhas” do livro, onde contatamos que todos estão envolvidos com os estudos bíblicos ou religiosos nos Estados Unidos ou Canadá, o que, ao lado da publicação brasileira pela Loyola, justifica a inclusão desse livro entre as obras que contam com uma mediação religiosa desde a produção até a leitura.[1]
Em todo caso, vale a pena a leitura. Trata-se de uma obra atual, escrita em linguagem acessível e que, apesar dos apelos norte-americanos, pode colaborar com o amadurecimento do leitor brasileiro.






[1] Os autores serão aqui citados em ordem alfabética a partir de seus sobrenomes, e de cada um, mencionaremos o departamento em que trabalhava na época da produção do livro: AICHELE, George, do Departamento de Filosofia do Adrian College. BURNETT, Fred W., do Departamento de Estudos Religiosos da Anderson University. CASTELLI, Elizabeth A., do Departamento de Religião do Barnard College. FOWLER, Robert M., do Departamento de Religião do Baldwin-Wallace College. JOBLING, David., do St. Andrew’s College e Ex-presidente da Sociedade Canadense de Estudos Bíblicos. MOORE, Stephen D., do Departamento de Religião da Wichita State University. PHILLIPS, Gary A., do Departamento de Estudos Religiosos do College of the Holy Cross. PIPPIN, Tina, do Departamento de Bíblia e Religião e no Programa de Estudos da Mulher no Agnes Scott College. SCHWARTZ, Regina M., do Departamento de Inglês da Northwestern University. WUELLNER, Wilhelm, da Pacific School of Religion e da Graduate Theological Union.