sexta-feira, 19 de abril de 2013

REFUTAÇÕES AO KARDECISMO



Permitam-me iniciar este ensaio falando de seu autor: sou cientista da religião, especialista em literatura bíblica, e atuo também como crítico literário que estuda algo de linguística, semiótica, e lido quase sempre com textos clássicos. Flerto ainda com a historiografia, especialmente com a teoria da história, e na prática trado do mundo romano, do judaísmo formativo e do cristianismo primitivo. Por fim, sou bacharel em música, embora minha prática ao violão tenha se tornado apenas um hobbie eventual atualmente. Não manuseio essas áreas do conhecimento de maneira individualizada, mas por serem partes do que sou como indivíduo e pesquisador, cada trabalho que produzo acaba refletindo simultaneamente vários desses conhecimentos. E por qual razão era importante fazer essa apresentação?

O objetivo não é legitimar o conteúdo do ensaio através do elogio ao seu autor (embora seja difícil negar que isso sempre está presente), mas explicar minha antiga produção, quase sempre voltada para o cristianismo, e justificar alguns dos argumentos que empregarei. Por conta dessa experiência acadêmica explicitada, e de outras experiências pessoais que aqui deixo implícitas, quase sempre disserto sobre temas ligados à Bíblia, tecendo duras críticas às práticas religiosas da atualidade ao expor as inadequações de seus discursos. É assim: falamos mal principalmente daquilo que somos, dos movimentos sociais e religiosos de que somos ou fomos parte. Mas se porventura fiz a alegria de outros ao criticar o cristianismo e em especial os movimentos evangélicos, agora proponho um breve desvio nessa carreira para falar do kardecismo, com o qual tive apenas algum contato indireto.

Deixo exposta minha parcial ignorância quanto ao tema, mas ainda assim faço questão de me expressar com liberdade, expondo pontos de vista pessoais que, obviamente, podem ser contestados por quem se julgar mais apto. Farei três breves refutações ao kardecismo, explicando os principais motivos pelos quais tal escolha religiosa não me agrada. Essas refutações (Deus me livre!) não seguirão os moldes das argumentações cristãs, apologéticas, com citações bíblicas e afirmação de dogmas tradicionais que classificam o diferente como herege; escolho outro caminho cuja validade e eficácia caberá ao leitor julgar.



1 – Uma religião pseudocientífica

A primeira refutação que faço diz respeito às pretensões do kardecismo à racionalidade, à cientificidade. Hoje, como cientista da religião, considero toda tentativa de se empregar ciência na argumentação religiosa inapropriada. Em geral, os dados científicos, as teses, nada acrescentam à fé, que sempre está baseada em fatores cuja comprovação científica é impossível. Por isso começo minhas refutações ao kardecismo desse ponto.

Considere: os pontos mais importantes de uma religião são sempre os não empíricos. Ninguém vai provar a existência ou inexistência de Deus, de espíritos, de reencarnações, nem vai ter como afirmar se Jesus ressuscitou ou não. Não é possível demonstrar que um livro sagrado foi realmente composto sob inspiração divina, se um oráculo recebido é real ou imaginário, e assim por diante. A lógica e a racionalidade humanas são incompatíveis com essas experiências religiosas, pelo que quase sempre, quando alguém emprega argumentos desse tipo na religião, está tentando legitimar alguma coisa, impressionar os destinatários do sermão, tornar mais eficaz o apelo do discurso. Além disso, nesse tipo de argumentação pseudocientífica sempre há limitações; o religioso faz escolhas dentre as muitas afirmações feitas num determinado campo do conhecimento acadêmico, e alcança a admiração dos leigos que não notam que há muitas outras afirmações científicas contrárias à sua religião que não entraram no sermão. Assim, os usos que as religiões fazem das ciências são quase sempre interesseiras, limitadas; melhor seria se as religiões se mantivessem apoiadas nas suas experiências fé naturalmente incontestáveis, convidando as pessoas a experimentá-las apenas. 
O kardecismo se apresenta exatamente como uma religião moderna, racional, crítica, que supera algumas limitações da linguagem religiosa antiga, considerada simplória, cheia de mitos e superstições. Que as religiões antigas são cheias de mitos e superstições é verdade, mas que o kardecismo é racional e moderno, isso já não é mais verdade. O kardecismo é uma religião nova, nasceu na França na primeira metade do século XIX, justamente no centro mundial do iluminismo e de expoentes filosóficos como Diderot (1713-1784) e Voltaire (1694-1778), e como era de se esperar, produziu um discurso adequado à mentalidade daquele mesmo ambiente que com poucas exceções, ainda exaltava as virtudes do conhecimento como se ele fosse a saída para a construção de um mundo ideal. Essa linguagem iluminista era inevitável, e até necessária para uma nova religião que precisava se firmar num mundo cujas convicções filosóficas construíam sujeitos avessos às religiões de modo geral.

Para os nossos dias, essa linguagem pseudocientífica, pseudorracional, comum aos textos do kardecismo originário, pode até agradar a uma classe média que lê Superinteressante, assiste ao Fantástico, e se considera “antenada” quanto aos avanços das ciências, mas é difícil que verdadeiros cientistas ainda se iludam com essas pretensões antiquadas. Julgo que o kardecista de hoje precisa renunciar a essa linguagem e se prender a seus contatos mediúnicos se quiser ser levado a sério. A estratégia de sobrevivência do kardecismo originário se tornou um problema para o kardecismo do século XXI, mas se ainda impressiona a alguns, é porque nas sociedades humanas ainda existem resquícios daquele iluminismo superado há mais de dois séculos, que sobrevive na ambição cientificista daqueles que não são cientistas.



2 – O sincretismo religioso no kardecismo

      Além de ter nascido num período imediatamente pós-iluminista, de ter produzido um discurso que parecesse atraente aos racionais daquele tempo, temos que levar em conta que o kardecismo nasceu numa França cristã. Se o ateísmo era uma boa opção (do tipo religiosa) para alguns, outros seguiam mantendo suas tradições católicas romanas ou protestantes calvinistas (esses últimos chamados de huguenotes na França). Como toda religião que nasce, o kardecismo naturalmente também se ocupou de se fazer atraente aos religiosos, produzindo um tipo de sincretismo particular entre cristianismo e espiritismo.

Para falar mais desse tipo de sincretismo observável no nascedouro das religiões, lembremos que o cristianismo nasceu como uma forma de judaísmo, e em vez de criar uma ruptura brusca e radical, fê-lo de maneira gradual e sincrética. Isto é, o cristianismo tentou ser o novo judaísmo, adotou suas tradições e memórias, seus livros sagrados por mais que destoassem dos ensinos de Jesus, e só se tornou uma nova religião quando o próprio judaísmo o rejeitou. O mesmo fez o islamismo: o profeta Maomé escrevia em Árabe e no século VI, mas fez questão de se incluir numa tradição literária e religiosa judaico-cristã, dando em sua própria religião um lugar para os patriarcas hebreus, para Moisés, para os profetas do Antigo Testamento, para Jesus, e para os textos sagrados deles todos eles. Certamente é possível dizer algo parecido sobre o protestantismo em relação ao catolicismo, sobre os movimentos evangélicos em relação aos protestantes históricos etc.

            Deveras, se uma nova religião nascesse numa França cristã como aquela do século XIX e simplesmente afirmasse que tudo o que o cristianismo já dissera era mentira, sofreria ataques e poucas chances teria de subsistir. Novamente, notamos que o kardecismo tomou o caminho certo, porém, esse mesmo caminho é sua fraqueza para o observador de hoje. Tenho em mente a obra de Allan Kardec chamada “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, publicada em Paris em 1864. Essa obra dá conta desse sincretismo, trata dos evangelhos canônicos do Novo Testamento sob a ótica da doutrina espírita, mas comete inúmeros equívocos que justificam minha refutação.

            Falando agora como especialista no Novo Testamento, é fácil notar que o autor, mesmo que afirme escrever sob orientação dos espíritos, não conhece o Novo Testamento grego. Ele deve ter lido a Bíblia que tinha em mãos, em língua francesa, e adota várias teorias sobre autoria dos livros bíblicos que a crítica moderna desacreditou. Se o conteúdo da obra de Kardec é realmente um produto espiritual, diríamos que pouco conhecimento bíblico possuíam os tais espíritos. Se nalgum ponto algum personagem célebre das narrativas bíblicas se expressa por meios mediúnicos (um apóstolo falando do evangelho que traz seu nome, por exemplo), temos que reconhecer a falsidade da autoria, posto que há muito se sabe que o tal apóstolo não escreveu aquele texto canônico, nem tampouco dera ao seu primeiro texto o sentido que agora é sugerido na obra espírita.

É por notar limitações dessa espécie que eu digo que o sincretismo é uma fraqueza do kardecismo. Se Kardec tivesse nos escrito sobre suas experiências com espíritos desencarnados, sobre sua crença na reencarnação, nada teríamos a fazer, a não ser aceitar ou rejeitar suas ideias e imperativos. No entanto, como ele falou sobre o cristianismo, colocou-se nas mãos dos estudiosos do cristianismo e da literatura bíblica, que hoje encontram as imprecisões de seus argumentos vendo-o como um leitor da Bíblia em harmonia com os conceitos e tradições cristãs conhecidos por qualquer leigo de meados do século XIX. Esses estudiosos têm, a partir daí, motivos para levantar dúvidas sobre a credibilidade até mesmo das afirmações de caráter religioso e não verificáveis que o mesmo autor deixou. Pior ainda seria se os tais estudiosos, teólogos no caso, aceitando a possibilidade de que tais equívocos sejam mesmo frutos de uma experiência mediúnica, questionar a competência dos espíritos que aconselharam Kardec, o que colocaria em dúvida tudo o que o autor produziu.

Isso nos leva à minha terceira refutação, que não é tão complexa quanto as duas primeiras

           

3 – A inaptidão artística dos espíritos

            Entra em pauta minha sensibilidade artística, decorrente da minha formação como música. Me desprendo agora do cientista da religião e também de Allan Kardec, para expressar em termos bem pessoais, minha opinião sobre as produções artísticas espíritas, aquelas cuja autoria é atribuída a espíritos que atuaram por meio de médiuns (ativos).

            Reconheço que é difícil discutir a fonte de algumas manifestações espirituais tais como a psicografia. Não podemos simplesmente dizer que sempre são fraudes. Porém, ainda que se não se possa desmentir a própria mediunidade, a intervenção espiritual na criação de textos, quadros, músicas etc, ainda é possível avaliar o resultado, do mesmo modo como avaliei o uso que o “O Evangelho Segundo o Espiritismo” fez do Novo Testamento e das tradições cristãs. Nesses casos, a suposta espiritualidade ganha materialidade, e nessa forma pode ser examinada.

Sempre fiz questão de dar atenção a tais manifestações, porém, senti falta da surpresa, da admiração que as grandes obras de arte costumam nos proporcionar. As cartas mediúnicas e os romances espíritas geralmente atuam emocionalmente sobre seus receptores, todavia, ainda não tenho conhecimento de um crítico literário renomado que tenha reconhecido o valor literário de uma dessas obras a ponto de dar-lhe lugar entre os “clássicos” canônicos. Isso me decepciona, pois, se há realmente um espírito por trás do livro, tudo me leva a crer que infelizmente ele não é artisticamente superior a Shakespeare, a Dostoievski, a Pessoa, e até a Paulo Coelho. Até onde eu sei nenhum especialista em artes plásticas reconheceu os traços típicos de um grande artista desencarnado numa pintura mediúnica, e pior, pela falta de atenção dada pelos críticos a tais obras, imagino que nenhum médium legou à humanidade pinturas tão primorosas quanto a de um Caravaggio, de um van Gogh, Blake, Monet... 


 Outra vez, só duas conclusões me parecem possíveis, embora eu gostaria de conhecer outras: Primeiro, pode-se supor que tais experiências são falsas, que não há verdadeiros espíritos por trás dessas ações. Que psicólogos e psiquiatras assumam a partir daqui a tarefa de explicar como podem os homens produzir espontaneamente essas obras para as quais afirmam ser inaptos através de seus estados alterados de consciência. Segundo, pode-se tentar manter a ideia de que há espíritos por trás dessas criações, mas nesse caso, volto a dizer que tais espíritos não exibem habilidades e inteligências tão admiráveis quanto pretendem os próprios espíritas, pelo contam com as mesmas limitações humanas. Se essa segunda conclusão é a correta, será que se deve dar tanto crédito ao que tais espíritos dizem? Ao que parece, os mais sábios ou evoluídos deles não costumam dar-se a tais exibições.

Por essas razões ainda prefiro ouvir os conselhos humanos que os dos espíritos, prefiro ler os clássicos que os romances espíritas, visitar as exposições dos grandes artistas do que ter quadros produzidos mediunicamente, e confiaria minha saúde a um cirurgião diplomado nalguma universidade humana em vez de me submeter a uma cirurgia espírita. Essas sãos as minhas escolhas atuais; entende-as como resultados das minhas reflexões, e não como convites aos meus leitores. Sobre as cirurgias realizadas através de experiências mediúnicas prefiro não me estender. Deixo aos médicos a tarefa de as criticar, embora acredite que nalguns aspectos essas intervenções espirituais na matéria se assemelhem àquelas artísticas que acima critiquei.



Considerações Finais

Espero que tenha ficado claro que não estou me colocando contra a religiosidade espírita, mas refutando alguns dos argumentos que o kardecismo emprega para se legitimar nas sociedades humanas até hoje. Como tentei dizer desde o começo, faço isso constantemente quando falo do cristianismo, e nem por isso qualquer dos meus argumentos levam as pessoas a abandonar suas igrejas e sua fé em Jesus. Do mesmo modo, os kardecistas que porventura se depararam com esse texto devem saber que não procuro os conduzir à conversão. Seria bom que, se alguma das minhas refutações parece razoável ao leitor kardecista, ele a desenvolvesse no seio da sua religião, para eliminar tais limitações que nos dias atuais são contraproducentes à experiência religiosa e aos ensinamentos morais espíritas que, sem dúvida, têm o seu valor.