terça-feira, 28 de dezembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – ANÁLISE SÓCIO-HISTÓRICA

Chega de férias. Desculpem a demora nas postagens. Seguindo em nosso breve curso de interpretação bíblica, vamos falar sobre a análise sócio-histórica, que para muitos trata-se de uma análise contextual. Isso não está errado, falar da história do mundo relacionada ao nosso texto é tratar de seu contexto, mas de um contexto fora do texto, do livro. Por isso antes eu havia tratado do “contexto literário”, ou seja, o contexto dentro do próprio livro. Agora nossa tarefa é considerar a teoria literária antes adotada, e a partir dela, investigar dados que possam iluminar a compreensão do texto em si.

Há um erro comum neste passo. O estudioso começa a ler nos livros sobre aqueles dias, sobre aquele país, sobre aquele povo, sua religião e cultura... e acaba achando muitas coisas interessantes. O resultado é um longo texto falando de coisas que não dizem respeito ao texto em si. Por exemplo, não é sempre que falamos de Jesus que temos que mencionar o Templo de Jerusalém, ou o império Romano, ou Herodes. Assim, é importante ter em mente a seguinte regra: Só abordaremos coisas que estão mencionadas no texto que estamos estudando.

Neste passo metodológico o trabalho pode ser bem grande. Há casos em que temos que falar de toda a dominação romana e sua forma de exploração econômica das províncias dominadas, noutros temos que falar sobre a produção agrícola em determinada região e época, noutros temos que falar sobre os conflitos entre diferentes formas de judaísmo existentes durante os últimos dias do primeiro século na região da palestina, e noutros temos que abordar as relações de clientelismo em cidades greco-romanas como Corinto. Ou seja, a tarefa pode ser árdua, e depende principalmente da capacidade do pesquisador de buscar nos livros as informações relevantes. Para piorar, em várias ocasiões temos que ler coisas que não se limitam à nossa área de pesquisa, como por exemplo, ter que ler livros de historiadores que não se preocupam diretamente com a religião, ou de sociólogos, antropólogos, arqueólogos...

Enfim, é hora de selecionar no texto aquilo que precisa ser elucidado e pesquisar em número grande de livros e artigos, que também precisam ser bem selecionados. Não adianta ler qualquer coisa, a qualidade e atualidade da bibliografia pesquisada é fundamental, sendo que livros ruins citados desprestigiam o trabalho. Isso pode ser difícil; nem sempre nossa biblioteca particular é suficiente, e temos que visitar bibliotecas, livrarias, consultar a internet, encomendar livros importados... Quanto maior a dedicação do pesquisador, melhor sairá sua exegese neste ponto.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

NOVO ARTIGO PUBLICADO: SEMPRE TENDES OS POBRES (Mt 26.6-13)



Desta vez convido-os a ler um novo artigo meu que foi publicado pela revista Caminhando, da Universidade Metodista. O título é: “Sempre tendes os pobres convosco”: Jesus é contra a caridade em Mateus 26.6-13? O artigo faz parte da minha incansável pesquisa sobre o projeto econômico do evangelho de Mateus, está belíssimo (na minha opinião).

Essa é uma revista cujos autores são de qualidade, todos mestres ou doutores, e possui uma versão impressa muito bonita, que pode ser assinada ou adquirida individualmente pelos interessados (capa ao lado). Mas os artigos também estão disponíveis gratuitamente em pdf. O meu artigo pode ser baixado em:

https://www.metodista.br/revistas/revistas-metodista/index.php/CA/issue/view/134

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – ADOTANDO UMA TEORIA LITERÁRIA

Para cada texto bíblico há teorias que procuram explicar sua origem, sua data, sua nacionalidade, seu propósito... Mas a verdade é que os textos bíblicos em geral não possuem referências claras para responder a qualquer uma dessas perguntas, e por isso o que temos são teorias, hipóteses, e não certezas.

Todavia, teorias não são meros palpites; são explicações baseadas nas análises dos dados disponíveis que oferecem respostas ao menos provisórias, e com certeza é melhor ter uma teoria do que ficar sem nenhuma. Assim, costumo dizer que quando lidamos com a Bíblia temos que estudar as teorias e adotar uma, e só se pode dizer que alguma teoria é falsa e rejeitá-la quando temos outra teoria que a supere.

No meu caso, como estudioso de Mateus, adotei a teoria de que o autor não é o apóstolo de Jesus, não foi testemunha ocular dos fatos. Também aceito a hipótese de que foi escrito entre as décadas de 80 e 90 do primeiro século, e em algum centro urbano da Galiléia, provavelmente Tiberíades ou Séforis. A partir dessas informações interpreto o conflito com os fariseus, o problema econômico e a construção de identidade do grupo de Mateus. Assim, a teoria adotada, tirada de conclusões próprias e da comparação de diversas outras teorias anteriores, me dá recursos para ler o evangelho, e no futuro poderei até mudar de idéia quanto à validade dessa teoria literária, mas para isso teria que adotar outra, ou as palavras do livro ficam no ar.

Enfim, temos que ler o que outros falam sobre nosso texto. Lemos introduções ao Novo e Antigo Testamentos, as primeiras partes de comentários e outros livros especializados no assunto; então fazemos nossas escolhas e aplicamos as teorias sobre data, lugar geográfico, autoria etc, ao estudo do texto bíblico.

quinta-feira, 25 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – ANÁLISE DA ESTRUTURA EXTERNA DO TEXTO / O CONTEXTO LITERÁRIO

Até agora, o que vimos se limita ao estudo da perícope, do texto que selecionamos que pode variar de tamanho, de um a dezenas de versículos. Eu disse que não era aconselhável ao estudioso consultar fontes externas para que exercitasse sua percepção, sendo melhor ficar apenas no texto em si. Pois bem, começaremos agora a ampliar nossos horizontes, mas vamos devagar, vamos ampliá-lo a princípio para os textos que rodeiam o nosso.

O contexto literário é a análise do lugar em que nossa perícope se encontra. Perguntamos primeiros sobre o que há antes e depois, no mesmo capítulo e nos que estão em volta. Será que há alguma relação entre os textos? Será que nosso texto é parte de uma composição maior?

Eu, por exemplo, trabalhei no meu mestrado Mateus 6.19-21. São só três versículos. Mas eles fazem parte de uma unidade maior de textos econômicos, que vai de 6.19-34. E não é só, esta unidade é parte de um bloco ainda maior, que é o chamado “Sermão da Montanha” de Mateus, que engloba os capítulos 5 a 7. E depois tive que ver os demais discursos de Mateus, que são cinco. A montagem dos textos não é igual à dos demais evangelhos, e certamente não coincide com a trajetória de Jesus, trata-se de estratégia literária.

Então, temos que pensar que nosso texto foi montado pelo autor/redator de maneira estratégica, e entender porque nosso texto está aqui e não em outro lugar, ou porque ele está junto com este ou aquele texto. Até vale a pena consultar alguma literatura para ver outras propostas de estruturação do livro, mas em geral, suas conclusões pessoais são melhores que as dos outros.

Não desistam, ainda temos cinco passos pela frente. Até a próxima.

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – ANÁLISE DO GÊNERO LITERÁRIO

Tenho notado que muitos exegetas principiantes confundem a análise das formas (assunto da última postagem) com a análise dos gêneros literários. Isso é um erro. Quando falamos de gêneros literários, falamos de padrões estabelecidos no discurso bíblico, de modelos tradicionais que vez ou outra são empregados para se compor um novo texto. Mas nem sempre um texto é construído a partir de formas fixas de um gênero mais antigo, e nestes casos a análise das formas é independente.

Então, os gêneros literários são espécies de convenções da linguagem, que oferecem formatos comuns sob os quais podemos escrever novos textos. Por exemplo, uma parábola é um gênero que possui características específicas, como a linguagem metafórica, a abertura típica, o elemento de comparação geralmente tirado da natureza, um final surpreendente que traz o ensino pretendido por quem a conta... Então, se estamos estudando uma parábola, devemos entender as características de uma parábola para que compreendamos melhor nosso texto. Isso acontecerá muitas vezes, nas profecias, nos textos apocalípticos, nas histórias de casamento, nas aparições de anjos, nas genealogias etc. Em todos estes casos temos que estudar o gênero empregado, e aí sim, este passo exegético pode ser considerado parte da análise das formas.

Repetindo, se não identificamos um gênero literário específico sendo adotado em nosso texto, isso não nos impede de estudar sua forma. Aí as dicas fornecidas no passo anterior continuam sendo as melhores.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO - ANÁLISE DA ESTRUTURA INTERNA DO TEXTO / ANÁLISE DAS FORMAS

O tema de hoje é análise da estrutura interna do texto, ou a análise das formas. Enquanto no item anterior foi dito que a crítica textual é um passo metodológico opcional, agora devemos começar dizendo que este é um passo obrigatório, para o qual eu costume dedicar bastante tempo. Entendo que uma boa tradução e uma boa análise das formas já nos dão uma exegese bem desenvolvida, mas esse método de análise não é nada fácil. Primeiro porque não costumamos ouvir ninguém falar do assunto, e mesmo os livros costumam ser insuficientes para o estudo das formas. Segundo porque cada texto possui uma forma particular, e saber analisar os profetas não significa saber analisar Atos dos Apóstolos, isso pelas enormes diferenças entre os gêneros literários. Então, tentando ser breve, fornecerei aqui definições simples, para uma primeira análise das formas.

Para falar da estrutura interna do texto de maneira simples, eu diria que o principal objetivo deste passo metodológico é identificar as divisões naturais de um texto. Quero dizer que quando escrevemos, seguimos de maneira involuntária. Quando paramos de falar para respirar, criamos no discurso uma lacuna que textualmente é expressa por vírgulas ou pontos; quando mudamos de assunto temos que mudar de parágrafos, ou mesmo de capítulo, e quando incluímos explicações geralmente usamos parênteses. Ou seja, os sinais de acentuação servem para demarcar no texto as subdivisões que já existem em nossa fala.

O problema da Bíblia é que no tempo em que foi escrita não existiam esses sinais, e todas as vírgulas, pontos, parágrafos, capítulos ou versículos, foram inventados posteriormente para facilitar nossa leitura, porém, são interpretações do texto que nem sempre nos ajudam. Nossa tarefa então constituir-se-á dos seguintes momentos: 1) temos que ler o texto novamente separando frase por frase; 2) depois tentamos entender as relações entre cada uma das frases que foram separadas, onde notaremos que há frases que dão continuidade à anterior, frases que só repetem a anterior noutras palavras, e frases que mudam o assunto; 3) entendida a relação entre as frases, podemos dar nome a elas para entender a estrutura do texto, ou seja, onde está sua introdução, sua conclusão, a exposição do tema, as exemplificações etc; 4) finalmente, sugiro que construamos um gráfico que traduza o texto e exponha aos nossos olhos de maneira mais clara cada umas seções que formam esta perícope.

Parece difícil? Mas essa tarefa é muito intuitiva e basta ler o texto com atenção para que a realizemos. Lembre-se que o objetivo é só identificar as divisões naturais da fala e do pensamento humano. Existem sim estruturas textuais elaboradas, pensadas por autores hábeis, construídas como verdadeiros quebra-cabeças, mas como introdução, procuro ajudar os estudantes a encontrar apenas aquelas estruturas básicas do discurso humano, o que é suficiente para analisar a grande maioria dos textos bíblicos.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – NOTA SOBRE CRÍTICA TEXTUAL

Para que não se pense que negligenciei esse passo exegético, vou fazer apenas algumas observações sobre ele justificar a não utilização do mesmo no método que estou propondo.

A Crítica Textual é um passo exegético em que comparamos as principais variantes que existem entre os antigos manuscritos bíblicos existentes. Sabemos que não existem originais dos textos bíblicos, mas cópias de séculos posteriores que hoje nos servem de base para a produção de nossas Bíblias; a questão é: qual dessas cópias é mais fiel ao original que se perdeu?

Por exemplo, vemos que para um determinado texto que estamos estudando existem diferentes manuscritos antigos, mas que apresentam pequenas variações. Empregamos critérios técnicos para escolher a versão que provavelmente mais se aproxima da original, e também podemos explicar os motivos para que os copistas deixaram que tais alterações se introduzissem no texto bíblico.

Como vemos, o trabalho é bastante técnico, exige conhecimento do grego ou hebraico e uma boa introdução ao “aparato crítico”, que é o instrumento que exibe ao exegeta as principais variações de cada palavra da Bíblia e quais manuscritos apresentam cada variante.

Acho que já está explicada a razão pela qual não emprego tal passo em meus cursos de exegese bíblica. Reservo tal passo às análises mais técnicas e profundas, conforme as exigências do meio acadêmico.

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – TRADUÇÃO E COMPARAÇÃO DE TRADUÇÕES

Geralmente os manuais de exegese trabalham a tradução do texto antes da delimitação, mas acho que só posso me debruçar sobre o texto grego ou hebraico quando já sei que texto vou traduzir. Assim, só agora, após ter escolhido o texto, lido-o e decidido onde ele começa e termina, me dedico à tradução.

Traduzir um texto do seu idioma original não é coisa fácil, é um passo necessário àqueles que já estudaram as línguas bíblicas, mas inacessível à maioria das pessoas. Por isso, além da tradução eu incluo a comparação de traduções já feitas como passo exegético que pode ser feito independentemente de uma tradução própria. Esse passo também não significa que as nossas Bíblias foram todas traduzidas de maneira equivocada. Há problemas em todas as traduções, inclusive nas nossas, mas enquanto traduzimos nos aproximamos ainda mais do texto, do significado de suas palavras e frases, e boa parte da interpretação está feita após este árduo trabalho. Assim, mesmo que a tradução que se tem em mãos seja boa, ainda é aconselhável traduzir o texto para que aos poucos tomemos posse de seu conteúdo. É uma tarefa recompensadora.

Enquanto traduzimos, também comparamos nosso trabalho com as demais traduções para o português, e muitas vezes palavras com traduções problemáticas só são resolvidas a partir da sugestão de outras traduções. Sempre indico a leitura de várias Bíblias diferentes nesse passo. De preferência, siga o “Novo Testamento Interlinear” da SBB, e compare também a versão de Almeida Revista e Corrigida, a NVI, e a Bíblia de Jerusalém. Penso que assim temos uma visão geral suficiente do texto que temos em mãos. Em resumo, não confie na primeira versão que ler, mas observe e questione cada variação constatável.

No final desse passo, ainda temos um texto provisório, bem literal e difícil, do tipo que ninguém compraria. Também não temos ainda todas as respostas, o que é natural; toda dúvida de tradução deve ficar registrada em notas de rodapé. Até o final da exegese correções poderão ser feitas nessa tradução a partir do resultado de outros passos exegéticos.

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO – APROXIMAÇÃO E DELIMITAÇÃO DO TEXTO

Vamos começar nosso curso de exegese falando da aproximação para com o texto. Claro, primeiro é preciso escolher um texto, e depois lê-lo algumas vezes com atenção para que comecemos nossa análise.

Se há uma dica valiosa para o exegeta, é a de que ele não deve ler o texto bíblico juntamente a qualquer tipo de auxílio. Isso quer dizer que você deve ficar só com a Bíblia na mão, e não ler qualquer livro ou mesmo notas de rodapé de Bíblias de estudo. Quando lemos o texto junto com a opinião de outros somos condicionados pelas interpretações alheias e acabamos por não ver o texto com nossos próprios olhos. Assim, a melhor maneira de exercitar nossa percepção é nos achegarmos ao texto tão livres quanto possível de interferências alheias.

Neste momento em que o texto é escolhido, conhecido e lido algumas vezes, também já faço minha prévia delimitação de perícope. Ou seja, já tento descobrir onde meu texto começa e onde ele termina, e forneço por escrito alguns argumentos para isso. Geralmente, mudanças de personagens, de local geográfico, de tempo, de assunto... são dicas de que temos uma nova unidade começando. Obviamente há relação entre as unidades textuais, porém, o objeto de uma análise exegética deve ser uma passagem o mais breve possível, de alguns poucos versículos de preferência. Assim, faço uma escolha consciente, e digo aos meus leitores as razões pelas quais não vou trabalhar um capítulo inteiro, por exemplo.

O importante nesse primeiro momento é conhecer o texto e saber delimitá-lo, de forma que cheguemos a um texto completo, com começo, meio e fim bem demarcados, e que saibamos defender nossa delimitação. Cuidado apenas para não se deixar levar pelas divisões já existentes na Bíblia, que separam-na em capítulos e versículos. Essa delimitação é apenas uma sugestão, e não precisamos segui-la, já que os textos bíblicos em sua composição não possuem tais divisões.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

INTERPRETAÇÃO BÍBLICA PASSO A PASSO - INTRODUÇÃO

Primeiro vamos definir o que é exegese bíblica. Defino a exegese como o estudo científico da Bíblia, um apanhado de métodos de interpretação de textos que são aplicados à literatura bíblica a fim de interpretar o texto de maneira moderna, mas sendo fiel ao sentido que o próprio texto pretende comunicar. Diferencio a exegese da hermenêutica, que para alguns, é também sinônimo de interpretação bíblica. Em minhas definições, a exegese interpreta, enquanto que a hermenêutica, como um dos passos exegéticos, trata de ler o conteúdo já alcançado pela exegese atualizando-o, fazendo-o relevante para nossos dias.

Isso tudo será tratado com mais detalhes ao longo das próximas postagens. Quero iniciar hoje um novo desafio, o de enumerar os passos exegéticos que costumo aplicar e fornecer assim um breve curso de exegese e um cronograma para que o leitor também possa aplicar tal metodologia às suas leituras. A idéia é resultado de anos de análises exegéticas e da prática pedagógica, em que me defronto com a dificuldade de ensinar exegese. A experiência destes últimos anos me legou esse cronograma metodológico que está sempre se aperfeiçoando, e convido meus leitores a mais uma vez estudar exegese comigo ao longo de algumas semanas.

Eu poderia simplesmente indicar a leitura de algum dos manuais de exegese já publicados, porém, não sigo rigorosamente nenhum deles, e penso que sou capaz de fornecer as mesmas definições através de palavras menos técnicas, mais acessíveis ao publico em geral, e seguindo uma ordem que me parece mais conveniente. Assim, inicio este curso dizendo que cada postagem trará uma definição bem resumida de um único passo exegético, e o ideal é que o estudante já aplique estes passos a algum texto de sua escolha.

Assim pretendo ensinar o conteúdo, fixar e testar esse cronograma que estou criando, e produzir através do blog um material que facilitará o desenvolvimento das disciplinas relacionadas à interpretação bíblica que tenho dirigido.

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA (Parte Final)

Para terminar a série de postagens sobre Atos 5.1-11, quero resumir algumas das conclusões e fazer sugestões de aplicação prática, ou seja, quero oferecer ao leitor alguns conceitos ensinados no texto que podem servir de inspiração para a igreja de hoje, assim como alertar sobre a necessidade de enterrar outros no passado.

1. O autor de Atos quer legitimar um projeto igualitário em sua comunidade através da descrição idealizada da história de Jesus e da igreja primitiva. Mas não se pode garantir que os simpatizantes da comunidade de Lucas eram obrigados a abdicar de suas posses em favor dos outros, mas pode-se dizer que esse era o comportamento esperado. Hoje a estratégia de viver com comunhão plena de bens é inviável, mas continua a responsabilidade de se fazer algo coletivamente em favor do igualitarismo. Se há algo que a igreja não deve aceitar, é que em seu meio alguns tenham em demasia enquanto aceitam passivamente que outros tenham necessidade. Faça o que fizer, o alvo da igreja é pôr fim à miséria entre os seus membros.

2. O projeto de Lucas de construir uma comunidade igualitária provavelmente já estava em andamento, porém, ele funcionava com imperfeições. Além de ainda não contar com o apoio de todos, havia internamente o medo de que tal projeto favorecesse pessoas desonestas que queriam apenas participar dos benefícios da comunidade sem contribuir de maneira equivalente. O pecado de Ananias foi punido com rigor, deixando a mensagem de Deus é o protetor da igreja, e não deixa que ninguém aproveite-se da igreja dessa forma. A desonestidade de alguns não é motivo para deixar de contribuir com os projetos sociais da igreja.

3. A narrativa apresenta um Deus violento, que mata o casal sem chance para arrependimentos. Esse Deus assassino é contrário a outras descrições de um Deus de amor e misericórdia que o Novo Testamento nos transmite, motivo pelo qual esse ponto da narrativa deve ser visto como um exagero do autor e não como um fato literal. É um ponto que não devemos destacar para a igreja.

4. Porém, a violência divina pode ser lida como cuidado. O autor não deixa margem para que seu texto fosse usado para legitimar atos violentos. A ameaça é a de que Deus, sabendo de todas as coisas, puniria severamente e pessoalmente todos os que tentassem fraudar o sistema igualitário da comunidade. Pedro e a igreja nunca são autorizados a punir ninguém.

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA (Parte IV)

Para abordar a próxima peculiaridade literária desta narrativa (que aliás é bem mais problemática que a anterior), vamos primeiro esboçar a estrutura sob a qual foi construída esta narrativa. Observemos no quadro abaixo, como podemos facilmente estruturar o texto distinguindo nele seções que diferenciam-se umas das outras pelas transições entre vozes narrativas e personagens. Em linhas gerais, tal comparação nos leva à conclusão de que temos duas vezes a mesma história sendo contada, uma para Ananias e outra para Safira:

ANANIAS

SAFIRA

Introdução do narrador: chegada à comunidade (v. 1-2)

Introdução do narrador: chegada à comunidade (v. 7)

Intervenção de Pedro: acusação de Ananias (v. 3-4)

Intervenção de Pedro: diálogo com Safira (v.8-9)

Conclusão do narrador: morte, sepultamento e medo coletivo (v. 5-6)

Conclusão do Narrador: morte, sepultamento e medo coletivo (v. 10-11)

Temos em ambas as partes uma fala introdutória do narrador. A introdução à história da morte de Safira pôde ser mais econômica (v. 7), já que o leitor está ciente de que ela estava de acordo com seu marido na venda da propriedade e na tentativa de enganar a comunidade. Depois, na intervenção em primeira pessoa na voz de Pedro, a mesma acusação feita sob Ananias (de que Satanás enchera seu coração e de que ele mentia ao Espírito Santo) parece ser válida para Safira. O autor então enriquece a segunda parte de sua narrativa fazendo da intervenção de Pedro um diálogo (v. 8-9), ainda que Safira só tenha a oportunidade de dizer duas palavras. Por fim o narrador retorna com uma conclusão bem semelhante, mas que como era de se esperar, é um pouco mais detalhada que aquela primeira conclusão provisória.

Não parece que após a morte de Ananias temos uma mera repetição daquilo que já lemos? Nos perguntamos, neste caso, se era realmente necessário dividir a narrativa desta maneira, fazendo Ananias e Safira morrerem separadamente. Não poderiam os dois personagens apresentarem-se e morrerem juntos já que estavam em comum acordo? São as duas partes da narrativa essenciais ou será que a seção sobre Safira não passa de um elemento adicional? E se há realmente dois elementos distintos, um constituinte e outro adicional, porque este segundo foi aí incluso? Para responder a este problema os exegetas levantaram muitas hipóteses, e nós teremos que observar algumas delas, ainda que nenhuma seja definitiva.

Lendo a respeito desta narrativa de Atos encontramos a hipótese de que o texto demonstra que Safira não precisaria morrer junto com seu marido se fosse honesta; cada um deles teria tido a chance de viver, mas ambos preferiram a tentativa de enganar a comunidade para obter vantagens. Essa é a proposta mais conservadora, resumida nas palavras de Werner de Boor: “A princípio, ela (Safira) é apenas cúmplice. Por isso Pedro, ao questioná-la, lhe dá a possibilidade do arrependimento. Por meio dessa pergunta ela poderá se liberar da mentira e dizer a verdade”. Outra proposta é feita por Pablo Richard, a de que o autor tenha tentado diferenciar a morte de Safira, que não atribui às escolhas econômicas como acontece com Ananias; a culpa de Safira estaria em sua submissão a um modelo matrimonial antiquado. Porém, Safira não foi retratada em nenhum momento como uma mulher “escrava” do casamento, e a unicidade das opiniões do casal é descrita como um pressuposto natural. Pessoalmente discordo de ambas as hipóteses.

Uma terceira hipótese foi levantada por Daniel Marguerat, que viu uma relação entre Atos 5.1-11 e a narrativa da queda de Adão e Eva de Gênesis 3. Essa proposta explica a repetição aparentemente desnecessária a partir da influência de um arquétipo do Antigo Testamento, fenômeno comum de intertextualidade bíblica que Robert Alter chama de adoção “cenas padrão”. Sem dúvida a adoção de um modelo narrativo de condenação divina herdado do Antigo Testamento solucionaria o problema da repetição da história com Safira, mas mesmo tomando conhecimento da hipótese de Marguerat, há detalhes na defesa dessa relação entre Gênesis e Atos que ainda precisariam ser revistos. A tentativa de enganar a Deus, a influência de Satanás, a pergunta feita ao casal individualmente para destacar através das respostas a intenção de enganar, e a sequência da narrativa que primeiro apresenta o diálogo do homem e depois o da mulher, são pontos favoráveis à proposta de Marguerat, mas há também pontos desfavoráveis. Ananias e Safira não são membros da comunidade, estão apenas entrando, e ler a cena como um pecado original que acarretará em tristes conseqüências daí por diante parece um exagero. O pecado do casal de Gênesis também não possui qualquer conotação econômica, e aqui em Atos Satanás não é tão presente, e não está entre os “condenados”.

Todas as propostas me parecem excessivamente criativas. Segundo as definições de H. Porter Abbott, estaríamos testemunhando um caso de “overreading” (superleitura), ou nos guiando pelas palavras de Umberto Eco, diríamos que se tratam de “superinterpretações” do texto. Trata-se de casos nada incomuns em que os leitores lêem mais do que deveras está escrito. Procurando preencher as lacunas deixadas pela própria narrativa, o leitor é tentado a criar essas leituras adaptativas, que ao menos para eles solucionam a tensão deixada pelo texto. Neste caso específico, a impressão é que para solucionar o aparente problema os intérpretes forçam uma leitura independente da morte de Safira, porém, isso contraria um princípio bíblico bem conhecido, que é a falta de autonomia dos seus personagens. Observa-se que em geral os personagens bíblicos não existem, pensam ou agem de maneira independente, mas sempre em relação com uma figura central na narrativa. A autonomia de Safira em relação a Ananias na segunda parte da narrativa, além pressupor uma autonomia incomum à personagem, contraria a afirmação feita no início de que eles estavam de acordo naquele projeto.

Então, qual é a minha própria hipótese? Talvez esta seja a mais simples de todas. Defendo que tal duplicidade aparentemente desnecessária foi empregada apenas com a função de dar maior ênfase no ensinamento; a repetição seria apenas a maneira lucana de “grifar” passagens que lhe parecem mais significativas. Há décadas tal característica foi notada por Roland Barthes, que dedicou-se à análise de Atos 10 e 11. Há outros exemplos, como o relato da conversão de Paulo que repete-se três vezes ao longo do livro, gravando na memória do leitor a pergunta “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9.4; 22.7; 26;14). Se esse realmente for um recurso utilizado em Atos para dar ênfase a temas relevantes para o autor, e se este mesmo recurso puder ser aplicado na compreensão da narrativa de Ananias e Safira, então temos que encerrar nossa análise dizendo que o exemplo positivo narrado em 4.36-37 não recebeu o mesmo destaque no livro por se tratar de uma mensagem de pouca importância para seus destinatários, ou porque tal mensagem já está enfatizada noutro ponto. Aqui especificamente o tema em pauta era “como não ingressar na comunidade cristã primitiva”.

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA (Parte III)

Depois do fim de semana, voltemos ao estudo sério da Bíblia... Como eu tinha prometido, hoje vou falar do pecado de Ananias e Safira, do crime que lhes conduziu à morte. Essa discussão é mais sócio-histórica, e exigirá mais tempo que as anteriores.

As sociedades dos dias do nascimento do cristianismo eram coletivistas, os membros de um mesmo grupo social partilhavam não apenas todas as suas posses, mas também seu destino, sua religião, seus ideais etc. Em alguns casos, as pessoas substituíam seus clãs familiares originais por outros fictícios, unidos, por exemplo, por vínculos religiosos, filosóficos ou ideais de vida comum. Isso é, por exemplo, o que acontecia no Movimento de Jesus, em que os membros eram convidados a abandonar suas casas, compartilhar seus bens com os pobres do grupo, e aceitar o desafio do itinerantismo.

Na realidade, não sabemos nem mesmo se aquele desprendimento sócio-econômico originário de camponeses sem terra preservou-se quando os apóstolos estabeleceram a comunidade judaico-cristã de Jerusalém, e nem sua aplicabilidade na região gentílica em que Atos foi escrito, mas sabemos pelo texto que Lucas, representante de uma geração mais tardia de cristão, utilizava-se de uma versão idealizada daquela política igualitária para atingir os seus próprios objetivos.

No v. 4 de nosso texto vemos que embora esse fosse o ideal, as pessoas não eram obrigadas a entrar no movimento doando suas posses; mas Ananias pretende ser visto como alguém que doou suas posses. Por quê? Desta maneira, Ananias tornava-se mais um daqueles cristãos completamente dependentes, tendo direito a tudo aquilo que pertencesse ao movimento. Ananias viveria como um daqueles missionários, comendo, morando e vestindo daquilo que os irmãos lhe concedessem; mas sabemos que ele não era tão carente quanto pretendia dizer que era. Ele não só estava mentindo para Deus como diz o texto, ele estava tentando aproveitar-se financeiramente do grupo, atitude não somente condenável, mas até mesmo demonizada ali.

Ananias queria manter uma garantia, por isso guardou parte do valor de sua propriedade; mas ele também queria ser bem recebido no grupo e depois patrocinado como alguém sem qualquer garantia. É como se ele tivesse investindo 50% e quisesse ter direito a 100%. Nas palavras de John Dominic Crossan: “Tiravam da comunidade, como se já não tivessem recursos próprios [...] alegar uma dádiva absoluta era também alegar um direito absoluto...”.

Este é o pecado de Ananias e Safira, não a mentira, mas a intenção de aproveitar-se financeiramente do grupo que lutava pela igualdade. Isso vai nos dar belos ensinamentos quando ao final do estudo falarmos da aplicação prática deste texto, mas antes, ainda usarei outra postagem para questões técnicas.

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA (Parte II)

Como eu disse, é preciso ler todo o conjunto literário que trata da adesão de novos membros à comunidade. Logo no primeiro texto, o sumário, vemos que o foco recai sobre a política igualitária do grupo. Todos tinham tudo em comum, ninguém tinha falta de coisa alguma, e quem entrava na comunidade doava suas posses para a administração dos apóstolos.

Após essa introdução, o primeiro exemplo é Barnabé, que vende suas terras, leva o dinheiro até a comunidade e deposita-o aos pés dos apóstolos. Ele é apresentado como alguém que fez o que devia ser feito, um modelo a ser seguido. Quando entramos no outro exemplo, o de Ananias e Safira, o narrador conta sua adesão com palavras muito semelhantes, dando a entender que o casal imitava a atitude de Barnabé.

Para destacar isso eu separei os verbos, destacando as ações desses personagens. Vejamos no quadro abaixo como as duas cenas de adesão se aproximam:

BARNABÉ (4.36-37)

ANANIAS (5.1-3)

tendo ele vendindo (pwle,w) do campo...

vendeu (pwle,w) a propriedade...

-

separou (nosfi,zw) para si do preço...

levou (fe,rw) o dinheiro...

levando (fe,rw) uma parte...

Coloca (ti,qhmi) junto aos pés...

colocaram (ti,qhmi) junto aos pés...

Pela comparação dos verbos é possível notar que o texto foi construído de forma que o leitor vê Ananias copiando os gestos de Barnabé, porém, com uma ação a mais, que é a de separar para si parte do valor da propriedade.

Enfim, o padrão fora dado, os bons cristãos o seguiam, e a chegada de Ananias e Safira é apresentada como uma tentativa de enganar a igreja. Eles imitam os bons cristãos, mas fazem algo negativo, algo que precisam ocultar. Aos olhares humanos, Barnabé e Ananias são iguais, mas nós, leitores, privilegiados pela visão do narrador, sabemos que há uma diferença muito significativa entre eles.

Terminaremos nosso estudo em mais duas ou três postagens. Na próxima oferecerei a resposta ao maior dos problemas que este texto nos apresenta, que é: por que Ananias e Safira tiveram que morrer? Por que Deus matou o casal? Foi realmente tão sério o pecado deles?

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA

O que você acha da história de Ananias e Safira de Atos dos Apóstolos 5.1-11? Geralmente o texto nos choca, parece violento, contrário à imagem de igreja que outros pontos do livro procuram transmitir, e nos perguntamos para que ele serve...

Enfrentei essas questões. Foram meses de estudo até que chegasse aos resultados atuais. Produzi dois artigos exegéticos que devem ser publicados em breve, um mais tradicional e outro com base na narratologia, mas enquanto não os publico, resolvi dividir com os leitores do blog algumas dessas lições.

Convido-os então a acompanhar algumas postagens, cada uma apresentando alguma dessas lições. É uma ocasião para aprender a Palavra de Deus, para entender mais sobre a interpretação bíblica, e para discutirmos as relações entre a igreja de hoje e de ontem.

Nesta primeira postagem já quero deixar uma lição. Atos 5.1-11 um texto que trata da adesão de pessoas novas à comunidade cristã primitiva. Ele transmite critérios de adesão que o autor de Lucas quer implantar em sua própria comunidade de fins do primeiro século. Mas para entender esta lição é preciso ler um pouco mais atrás, pois há três sub-unidades textuais que formam esse bloco que podemos chamar de “Critérios de Adesão à Comunidade Cristã”.

Critérios de Adesão À Comunidade Cristã

· Sumário (4.32-35)

· Evento – Exemplo Positivo (v. 36-37)

· Evento – Exemplo Negativo (5.1-11)

Sugiro ao leitor que leia esses textos e observe a sub-divisão proposta. A primeira seção é um sumário, um resumo que pretende em poucas palavras descrever a vida da comunidade cristã primitiva. Neste caso, ao lermos At 4.32-35 fica claro que o tema em destaque é a partilha dos bens da comunidade, uma política de igualitarismo herdada do movimento de Jesus. A segunda (seção At 4.36-37) seção fala da adesão de Barnabé, um gentio que chega à comunidade e atende às exigências econômicas depositando todas as suas posses “aos pés dos apóstolos”. Finalmente, chegamos à história de Ananias e Safira (5.1-11) que traz um exemplo negativo, um exemplo de como não entrar na comunidade.

Quando dividiram o texto bíblico em versículos e capítulos cometeram o erro de separar os textos em dois capítulos, dificultando ao leitor de hoje a constatação das relações que há entre as três partes. É hora de encararmos todo o bloco e começar a questionar o arranjo que o próprio autor deu aos textos.

Na próxima postagem voltarei a falar dessas relações com novos detalhes. Aproveitem esses dias para tirar conclusões próprias e exercitar seus olhares exegéticos.

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

A MORTE DE JESUS - OS FATOS E A FÉ



Dando ainda sequência àquelas nossas reflexões sobre as mensagens mitológicas da Bíblica, agora eu gostaria de trazer à pauta a narrativa do sepultamento de Jesus em Marcos 15.42-46. À primeira vista não vemos aspectos mitológicos no texto, mas nossa análise demonstrará como um olhar exclusivamente histórico pode matar também essa famosa passagem.

O texto fala que Jesus foi sepultado num túmulo comum. Tais túmulos (típicos para os sepultamentos judaicos daqueles dias) eram esculpidos na rocha calcária. No interior deles cavava-se nichos para que os corpos fossem depositados. Após a decomposição do corpo, os ossos podiam ser depositados em urnas que chamamos de “ossários”, ou enterrados normalmente. Até aí a história parece andar junto com o texto, mas o problema está em unir esse tipo de sepultamento a uma vítima de crucificação.

Os romanos, quando usavam a crucificação como punição de alguém, pensavam não somente na morte do indivíduo, mas em sua humilhação pública. Além do sofrimento que o ato implicava, após a morte a vítima podia ficar apodrecendo ao ar livre como advertência aos vivos, ou ser lançada em um lugar qualquer para servir de alimentos a animais. A pena era terrível não somente pela morte dolorosa, mas também pela sentença ao não-sepultamento.[1] Assim, o tratamento histórico da narrativa da morte de Jesus nos conduziria à triste conclusão de que provavelmente Jesus não teve direito a um sepultamento digno e por isso seu corpo nunca mais foi visto. A consequência dessa probabilidade histórica é que a fé na ressurreição surgiu para esconder a vergonha de ter um Messias sem sepulcro. Deveras, é por isso que embora existam registros textuais de milhares de crucificações, mas nenhum cadáver para servir de evidência material. A verdade é que apenas um cadáver de um homem crucificado restou para que o estudássemos.

Esse cadáver único lança nova luz às pesquisa do Jesus histórico. Em 1968 foram escavados túmulos na parte norte de Jerusalém onde foram encontrados os restos mortais de 35 pessoas que teriam morrido também ao longo do século I. O crucificado era um homem que morrera entre os 24 e 28 anos, cujos braços não foram pregados, mas amarrados à viga transversal, e cujas pernas foram pregadas à cruz dos lados de fora da viga vertical, uma de cada lado. Sabemos que ele foi crucificado porque ainda trazia um prego atravessando-lhe o calcanhar.[2] A ciência assim nos ajuda a entender melhor a crucificação, mas o que nos intriga é o sepultamento desse homem. Como ele obteve esse direito raro ao sepultamento? É aí que o historiador cria sua própria mitologia e acaba vendendo-a como história. Podemos apenas fazer suposições dizendo que aquele homem, embora tenha cometido um crime sério, tivesse familiares influentes que o livraram da punição pós-morte; ou podemos imaginar alguém subornando um guarda para que lhe desse o direito de sepultá-lo em segredo... Em todo caso, estamos diante de uma exceção à regra dos crucificados, um caso único que não prova a veracidade do texto bíblico que afirma o sepultamento de Jesus.

As possibilidades históricas nos permitem aceitar a cruz de Jesus como fato provável, e com um pouco de boa vontade até podemos crer na chance pequena de que ele tenha ganhado o direito a um sepulcro. Mas a verdade é que a existência de cruzes e de cadáveres não prova nada sobre o texto; ele pode estar simplesmente contando-nos uma história fictícia baseada em fatos reais. Assim, não só a ressurreição permanece no campo da mitologia, como não há túmulo ou cadáver de Jesus para provar sequer a crucificação. O texto, embora apoiado por algumas possibilidades históricas, continua exigindo fé. Teremos que escolher entre uma das possibilidades: 1) A mais cética não crê na versão de que Jesus foi comido por cães e nem no seu sepultamento, pois não passam de possibilidades. Esta opção costuma estender-se à negação da ressurreição, e leva à morte do texto e da fé. 2) Um alternativa mais religiosa e não tão severa seria crer na explicação mitológica dos textos do sepultamento e da ressurreição, considerando indiferente o destino dado ao corpo de Jesus já que o importante é a fé de que ele está vivo. 3) A terceira opção é a pior de todas, seria rejeitar a ressurreição por seu caráter mitológico mas aceitar o não-sepultamento de Jesus que não passa de uma nova hipótese, isso mataria o texto e a fé, simplesmente porque esta alternativa é a que foi exposta com argumentos mais científicos.

Novamente enfatizamos que o texto não precisa ser confrontado com as análises históricas. Aprendemos da ciência, mas deixemos o texto vivo, com Jesus no túmulo e ressurreto; nos inspiremos pela mensagem do homem simples que falava as palavras de Deus, foi morto por isso, mas até venceu a morte para nos motivar também a não temer os que matam o corpo e continuar o trabalho de pregar o Reino de Deus. A mitológica é ainda a versão mais fascinante, difícil apenas àqueles que acreditam que as coisas só têm valor quando há provas.


[1] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 574-575.

[2] CROSSAN, J. D. O Nascimento do Cristianismo. p. 576-577.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

COMO LER O MITO DO DILÚVIO?

Na postagem anterior nosso objetivo foi mostrar como é através da mensagem mitológica, isto é, dos dizeres que não possuem qualquer vínculo comprovável com a realidade, que se esconde a verdadeira mensagem bíblica. É preciso deixar de dar valor excessivo à historicidade dos textos como se somente aquilo que está escrito como realmente aconteceu possuísse valor, e perder o preconceito com relação à mitologia, já que o homem antigo construía seu mundo através dos mitos e tanto as coisas reais como as imaginadas ganhavam contornos mitológicos quando narradas.

Seguiremos neste exercício, de ler superficialmente textos bíblicos para mostrar que uma leitura histórica torna a Bíblia um livro antigo e superado, enquanto que a compreensão dos seus mitos revela sua mensagem religiosa. Nossa proposta é atualizar exatamente o mito, perguntar pelo papel que ele desenvolvia na sociedade que produziu o texto, por sua ideologia, sua utopia, e propor uma leitura do mesmo mito hoje, que ainda dependerá obviamente da fé do leitor.

A narrativa do dilúvio (Gn 6-9) é a parte mais longa de toda a seção mitológica que vai de Gn 1-11. Além de muitos estudiosos já terem relatado o parentesco entre o dilúvio bíblico e outras versões mesopotâmicas, a introdução da narrativa (Gn 6.1-7) apresenta uma forma bem resumida do chamado “Mito dos Vigilantes”, que podemos ler no livro extra-canônico de 1Enoque 6-16. O mito diz que anjos sentiram-se atraídos por mulheres humanas e geraram filhos com elas: “Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: ‘Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!’” (1En 6.1) Os filhos dos anjos com as mulheres, estes seres híbridos, eram gigantes que começaram a devorar tudo o que a terra produzia, e depois os próprios homens: Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las(1En 7.2). Deus, indignado com tamanho absurdo, decide punir os anjos responsáveis, e destruir toda a raça humana por meio de um dilúvio. Só um homem sobreviveria com sua família, o filho de Lamech (1En 10.1).

O começo da narrativa do dilúvio, que dá o motivo para tal ação radical de Deus, foi herdada da mítica narrativa de 1Enoque. Ignorando toda a literatura extra-canônica e lutando por explicar de maneira racional o texto bíblico, os leitores conservadores desdobram-se para fugir à mitologia, mas tal exercício é vão. Mas o dilúvio em si, porção textual que na Bíblia ganhou novos contornos e se tornou o centro da narrativa não deixa de ser também mitológico. Esta narrativa responde também a uma das grandes questões do mundo antigo, que é sobre o perigo de um dilúvio fatal.

O homem antigo não tinha recursos para explicar as chuvas, não conhecia os limites dos mares e não sabia como era possível haver água abaixo da terra quando cavavam um poço. Ele sentia-se cercado por água e imaginava que diante da ira divina o mundo poderia a qualquer momento ficar submerso. A narrativa do dilúvio transmite-nos a esperança de que mesmo diante da maior de todas as catástrofes os fiéis podem ser preservados. Noé serve-nos como exemplo de fidelidade e perseverança quando tudo lhe é contrário, e acaba sobrevivendo ao quase fim do mundo. Apesar da resistência contra a cultura babilônica na narrativa da criação, Gn 6-9 é a prova de que a cultura estrangeira também foi sendo assimilada pelos judeus.

Há mais um aspecto desta narrativa que gostaríamos de mencionar. Mostra que a releitura judaica foi ainda relida e que o texto final, o que temos em nossas Bíblias, já atente a propósitos diferentes dos originais. Primeiro vejamos o que está escrito em Gn 6.18-19: “Mas contigo estabelecerei o meu pacto; e entrarás na arca, tu e os teus filhos, e a tua mulher, e as mulheres de teus filhos contigo. E de tudo o que vive, de toda carne, dois de cada espécie meterás na arca, para os conservares vivos contigo; macho e fêmea serão”. O tema em pauta é a preservação do justo, dos que ele preza, e dos animais de todas as espécies; a criação de Deus é preservada pela fidelidade de um único homem. Um casal de cada espécie é suficiente para tal propósito, mas isso muda ao longo do texto. Em Gn 7.2 lemos a ordem para a reunião dos animais na arca com uma diferença importante: “De todo animal limpo tomarás para ti sete e sete: o macho e sua fêmea; mas dos animais que não são limpos, dois: o macho e sua fêmea”. Agora há distinção entre animais puros e impuros, e para os puros a ordem é de que se preserve sete casais. Por quê? A resposta vem mais adiante, quando o dilúvio acaba e Noé sai da arca: “E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos sobre o altar. E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz” (Gn 8.20-21).

Temos o texto em duas edições, uma mais antiga, com a preocupação de proteger a vida do justo e dos animais, e outro posterior com uma preocupação sacerdotal, onde não basta ser fiel às palavras de Deus, é também necessário sacrificar. A teologia sacerdotal viu que um casal de cada espécie seria pouco para agradar a Deus, e incluiu um número maior de animais puros para que Noé, após o dilúvio, pudesse também sacrificar. A leitura história, a princípio, não aproveitaria muita coisa desta longa narrativa. O método histórico-crítico traria a responsabilidade de distinguir as duas versões, e acabaria por desprestigiar os retoques sacerdotais, que evidentemente são posteriores. Uma leitura historicista também teria que reconhecer o valor do sacrifício de animais no texto, e sua aplicação tornar-se-ia impossível. Outra tentativa é fazer relações do dilúvio bíblico com achados arqueológicos que talvez confirmam a existência de um antigo dilúvio, mas que não ajudaria muito para comprovar a teologia do texto.

Nós, todavia, não nos importamos com as contradições e nem com a historicidade dos fatos, mas com a mensagem do texto e nada mais, que pretende tanto ensinar sobre a proteção divina sobre aqueles que o agradam, como incentivar a fidelidade litúrgica, que naquele caso aconteceu através do sacrifício. Não pediríamos que ninguém imitasse Noé sacrificando animais para agradar um Deus que gosta de cheiro de churrasco, mas exporíamos o texto como é, admitindo que sua teologia está superada. Mostraríamos que o personagem procura fazer o melhor para seu Deus de acordo com seu tempo e cultura, que é fiel em meio há uma sociedade condenada, e que por isso é salvo pela ação conjunta de Deus e de seu trabalho. Noé também mostra-se grato quando vê-se livre das ameaças que transtornam todo o mundo. Tais coisas podem ser facilmente transpostas para os nossos dias, onde as pessoas devoram-se e não se importam com o fim da vida; a ameaça de um dilúvio talvez não assuste o leitor de hoje, mas a mensagem de que o homem de fé, que trabalha a partir da Palavra de Deus, é capaz de livrar sua família e também a criação da destruição, é algo bastante atual. O chefe de família guiado por Deus é capaz de salvar toda a família, e há ainda um apelo ecológico no texto, e um incentivo à gratidão litúrgica. Novamente, a única coisa que importa ao leitor comum é a mensagem mitológica, e não a histórica.

Imagem: The Flood, de Masséot Abaquesne.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

A CRIAÇÃO: UMA LEITURA MODERNA DE Gn 1.1-2.3


Há algumas semanas tenho trabalhado na produção de um novo artigo sobre a interpretação bíblica que conta com uma longa parte teórica e com alguns exercícios práticos no final. O texto está inacabado mas já é bem longo, e não poderá ser publicado aqui; então pensei em aproveitar ao menos a parte prática do artigo aqui no blog, divulgando minha leitura de alguns textos míticos que costumam ser mal aproveitados pelos leitores da Bíblia. Procurarei fazer uma abordagem didática dos textos, para ensinar o leitor sobre o que considero um bom uso da mitologia bíblica, assim como também tentarei ser prático, mostrando que aplicação estes textos podem ter para nossos dias.

Geralmente quando se fala de mitologia bíblica logo se pensa em Gênesis, dos capítulos 1 a 11, que é uma literatura claramente mítica; porém, o termo “mito” ainda é visto com resistência por grande parte dos leitores da Bíblia, que acreditam que tais textos são relatos precisos de acontecimentos passados. Não gostaria de discutir isso aqui, então vou direto ao texto de Gn 1 esperando que sua leitura já dê ao leitor alguma idéia do que entendemos por literatura mítica. Outros textos virão em próximas postagens para aprofundar o tema.

O primeiro texto da Bíblia começa dizendo: “No princípio, criou Deus os céus e a terra”. Temos aí um texto inquestionavelmente mítico, pois relata acontecimentos de um período que homem algum poderia ter testemunhado, já que não existiam. O próprio escritor obviamente não estava lá, não sabe exatamente como se deu tais eventos, e a falta de critérios para descrever tais eventos é o que nos leva a classificá-la como mitologia. A pergunta não é se o evento narrado ocorreu ou não, mas pelos critérios empregados para a composição do relato. Imaginamos, é claro, que o universo teve um início, mas quando e como esse início se deu é uma questão que não podemos responder. A criação do universo, mesmo após a narrativa de Gênesis, continua tão difícil de imaginar que não encontrei tal evento retratado por nenhum artista anterior às fotos de satélite; há inúmeras telas que nos revelam como o imaginário humano concebe a criação de Adão e sua queda, mas a falta de imagens é prova de quão inconcebível é a origem do universo. O mesmo problema da falta completa de respostas sobre as origens inquietava a humanidade quando este relato foi composto, e por isso logo imaginamos que o objetivo do texto sagrado é contar como as coisas aconteceram, revelando aquilo que só Deus mesmo poderia saber.

Como não é possível dizer como foi que tudo começou, Deus aparece como o agente da criação. Na verdade, as mitologias costumam evocar os deuses exatamente para explicar aquilo que não tem explicação, e por isso a chuva, os terremotos, a morte... são todos interpretados como ações dos deuses em todas as culturas não tecnológicas. Quando as explicações da ciência surgem e parecem coerentes, os deuses desaparecem junto com a mitologia, e adotamos a versão científica da história. Assim, quando se descobriu como se formam as tempestades, deixou-se de crer que os deuses estavam irados. O mesmo não aconteceu com a “vida após a morte”, que não possui explicação científica; neste caso a linguagem mítica e os deuses continuam servindo como respostas.

Voltando a Gênesis, além de não haver qualquer evidência de que o relato da criação diz a verdade, ainda há uma série de imperfeições que uma leitura crítica pode destacar. Por exemplo, os dias já são contados antes mesmos que existam sol e lua; a criação só fala do nosso mundo e dos astros daqui visíveis, ignorando a existências de outros planetas. Quando chega o momento da criação dos seres-humanos, eles são feitos segundo a imagem de Deus (ou deuses conforme o plural empregado no texto), deixando para nós alguns sinais de como eram “humanizados” os deuses imaginados no período. O ponto mais interessante, todavia, é o sétimo dia, em que o próprio criador descansa de seu trabalho: “E, havendo Deus acabado no dia sétimo a sua obra, que tinha feito, descansou no sétimo dia de toda a sua obra, que tinha feito. E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou; porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera” (Gn 2.2-3). Teologicamente falando, a divindade em questão, com suas características divinas e suas limitações humanas, é um ser que se cansa, coisa que não coaduna com nenhuma definição de Deus que posteriormente a Bíblia apresentará.

Uma leitura histórica desse texto, que tentaria focar os aspectos reais da narrativa, não é muito promissora. Apenas com o emprego de muita alegoria poderíamos dizer que os dias da criação coincidem com as eras que os cientistas distinguem na criação da terra. Tirar do texto seu aspecto mitológico significaria destruir o texto, fazê-lo mero conto de fadas da antiguidade. Pior ainda seria lê-lo literalmente e tentar dizer que tudo aconteceu como está narrado; é o que fazem os contrários ao evolucionismo que acham que Darwin era um inimigo da Bíblia e o criticam sem nunca tê-lo lido.

Então, o que fazer com esse texto? Eu sugiro que esqueçamos tanto a leitura histórica quanto a fundamentalista para nos atermos ao texto como é. Não devemos nos importar quanto a ser verdade ou não os fatos narrados, mas nos perguntar para que servia esse texto. Já dissemos que ele ajuda o ser-humano quando diz que o mundo nasceu por uma iniciativa de Deus; ele explica mitologicamente uma questão insolúvel e assim traz paz ao leitor. Todavia, há mais por trás do texto. Isso dizemos porque há um problema nele que é o Deus cansado que precisa repousar no sétimo dia, coisa que não estaria numa narrativa mitológica que procura apenas explicar as origens. O descanso de Deus, como problema teológico, é na verdade o centro do texto, pois evoca uma tradição bem conhecida de autores e leitores, a guarda do sábado (Êx 23.12-13).

O texto revela-se como uma narrativa que legitima a guarda do sábado. Ele diz: “Até Deus precisa descansar, e fez isso no sábado. Nós também devemos descansar, e isso deve ser feito no dia que Deus mesmo escolheu, que é o sábado”. Se este é realmente o tema central do texto, qual aplicabilidade ele possui na vida de quem o lê? Embora seja difícil precisar, tudo nos leva a crer que este relato, além de pertencer à cultura judaica, responde a um período histórico em que o descanso semanal estava ameaçado. Talvez o texto nos remeta ao período exílico (a partir de 587 a.C.), quando na Babilônia os judeus viram na guarda do sábado um sinal que os diferenciava. Pode ser que na ocasião, como povo dominado, sentiam-se pressionados a trabalharem nos sábados, e neste contexto o apelo à fidelidade à religião tradicional é também um pedido de descanso.

Meu professor, Milton Schwantes, faz uma leitura semelhante do texto num de seus livros, e vê outro aspecto que talvez esteja correto. Na narrativa, Deus cria todas as coisas, e entre elas, o sol e a lua, os luminares que eram divinizados na Babilônia.[1] Teríamos então uma reação contra as imposições culturais e religiosas estrangeiras, além de uma possível imposição física.

Agora a mensagem do texto, tirada exatamente da interpretação da mitologia judaica, pode ser resumida e depois transferia aos nossos dias. O texto ensinou, ainda que por argumentos mitológicos, a respeito da soberania de Deus sobre todas as outras supostas divindades, o que nos levaria a falar do monoteísmo. Mas não é qualquer monoteísmo que deve ser pregado, mas um monoteísmo preocupado com os direitos humanos, que defende o descanso do trabalhador, sua liberdade religiosa ainda que minoritária, que combate outra religião não porque ela é diferente, mas porque ela serve como instrumento de dominação do próximo. A mensagem do texto para hoje é: Nós acreditamos nesse Deus porque ele é um Deus mais humano, que conhece nossas necessidades e que instituiu leis para a defesa dos mais fracos.

Em resumo, é na mitologia que está a mensagem, e esta mensagem é a porção permanente e valiosa da narrativa bíblica. Não precisamos crer nos relatos fantásticos, nem priorizar somente o que se comprova cientificamente, podemos ler a mitologia, interpretá-la coerentemente, de acordo com o modo de pensar do período de sua composição, e então aplicar seu ensinamento também aos nossos dias, adequando sua linguagem ao nosso próprio modo de pensar.



[1] SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança. São Paulo: Paulinas, 2002, p. 33-34.