quinta-feira, 6 de novembro de 2008

POR UM CRISTIANISMO MADURO

Por meio do evangelho de João, a igreja cristã de todas as épocas adotou uma analogia para se referir à adesão de novos membros. Diz-se que todos devem nascer de novo (Jo 3.1ss). Seguindo na tradicional analogia, podemos dizer que estes novos cristãos que são como crianças em Cristo, devem alimentar-se de uma espécie de leite espiritual (1Pe 2.2) e desejar crescer até que possam ingerir os alimentos sólidos (Hb 5.13-14), que são conhecimentos aprofundados sobre a Palavra de Deus, seus oráculos e práxis. O alimento sólido é coisa pertinente aos mestres e não às crianças espirituais (Hb 5.12). Desta análise superficial da tradição bíblica, podemos inferir que é princípio básico no cristianismo que todo aquele que nasce na fé deve crescer, desenvolver-se naturalmente e chegar à maturidade.

Aqui, não queremos aprofundarmo-nos no estudo desta tradição e nem tampouco questionar a tradição que parece-nos saudável para o crente, já que afasta-o da ignorância e das superstições místicas que sempre estiveram enraizadas no seio das religiões; interessa-nos levantar um problema: Embora o desenvolvimento do crente faça parte da tradição cristã e faça parte do discurso eclesial, nossa intuição nos leva a perguntar se tal tradição ainda é levada a sério, ou se já dissolvera-se para boa parte dos segmentos cristãos de nossos dias.

Voltando a usar a linguagem analógica da Bíblia, diríamos que hoje os alimentos disponíveis são bem melhores que os do passado; são comercializados em níveis nunca vistos, permitindo o acesso de pessoas antes isoladas, são enriquecidos com mais vitaminas, proporcionando-nos mais vigor físico e a maior expectativa de vida que a humanidade já conheceu. Entretanto, há quem prefira que os cristãos não cresçam, preferem mantê-los subnutridos a ver o seu desenvolvimento. Refiro-me à resistência que há entre alguns grupos cristãos em relação ao desenvolvimento intelectual dos membros das igrejas, ao medo de que aquele que antes parecia tão crente, se afaste da fé quando adquire conhecimento. Esta atitude contrária ao desenvolvimento do cristão é anti-bíblica e anti-natural.

Lembre-se da sua infância. Quando somos crianças, as fábulas são encantadoras, e de alguma forma pensamos que carruagens podem voar de verdade nalgum lugar deste mundo ou de outro. Nos contos de fadas homens podem ser imortais e vencer seus inimigos com super-poderes, e para nossa lógica infantil, não há conflitos entre estas fantasias e a realidade. Com o passar do tempo, deixamos de acreditar nas fábulas e essas coisas passam a ser bobagens. Talvez tu não lembres, mas essa transição certamente trouxe consigo confusões, talvez crises, mas as superaste como era de se esperar e finalmente chegaste a ser um adulto. Quando um crente estuda teologia ou cursa uma faculdade, passa pela mesma crise. Aprendendo a pensar de maneira mais científica, questiona e em muitos casos deixa de acreditar nas fábulas que seus pais religiosos lhe contavam para que sonhasse. Aos poucos o encanto da religião se quebra, enquanto que a realidade se faz conhecer.

Antes da maturidade, as crianças pensam que os adultos são chatos, que não entendem a beleza dos seus contos de fadas, que desaprenderam como é bom brincar. Os crentes também julgam os teólogos e os cientistas desta maneira, pois questionam histórias que são tão lindas e aceitas por tanta gente há tanto tempo... No entanto, sabemos quem está procedendo de maneira infantil. Duvido que um adulto queira voltar à inocência da infância. Ele sabe que nunca seria independente se não aprendesse a ver o mundo como ele realmente é; sabe que precisa amadurecer, sair de debaixo da saia dos pais e tornar-se independente. Mas nas igrejas alguns acham que é melhor fugir à crise e continuar crendo nas fábulas, vivendo eternamente como um garoto de cinco anos. Esse tipo de crente credita que é melhor ser imaturo, limitado, dependente de outrem para que dê cada passo. Importa-lhe a alegria, a satisfação que as brincadeiras lhes proporcionam, e não o mundo exterior, as outras pessoas, a verdade.

Pra sermos sinceros todos nós, em nossa primeira década de vida, pensávamos que era melhor sermos crianças para sempre, mas inevitavelmente seguimos o desenrolar determinado pelo nosso criador e crescemos. O problema levantado, em suma, é este: quando se trata de desenvolvimento espiritual os cristãos estão agindo contra a natureza, e deixando-se enganar, abrem mão da maturidade pela eterna alegria de ser infantil. Sabemos que o caminho da maturidade cristã, aquele caminho espinhoso de conflitos internos que os nossos jovens atravessam enquanto cursam ingressam em seminários e faculdades, é doloroso e até perigoso. Perde-se por algum tempo, todo o encanto do existir; desmoronam-se os sonhos, compreende-se que super-heróis não existem, que somos finitos... Ainda assim, querer que um crente não encare este caminho de amadurecimento é interromper o ciclo natural da sua vida religiosa. Esse medo de se desviar em decorrência da aquisição do conhecimento é um dos maiores inimigos da fé cristã dos nossos dias; é uma luta ridícula para manter a fé num nível elementar e manipulável, que acabará por torná-la cada vez menos relevante perante a sociedade que esta religião supostamente pretende salvar.

Karl Marx é um pensador conhecido pela crítica que fez à religião, chamando-a de ópio do povo. Ele escreveu: “A crítica da religião destruiu as ilusões do homem para que ele pense, aja, construa a sua realidade como homem sem ilusões chegado à idade da razão...”. Era de se esperar que a igreja repudiasse esse pensador. No entanto, nós, cristãos de hoje, podemos concordar com Marx em certa medida, certos de que se nossa fé possui fundamentos, não precisa temer as críticas, e que caso as críticas destruam certos fundamentos da nossa fé, estes não estavam firmados em verdades, sendo a sua queda um benefício para nosso crescimento. Acreditamos que a religião do século XXI não precisa ser infantil, estruturada sobre mitos e ilusões, e que é possível unir a religião ao pensamento científico. Esta deve ser a missão do estudioso da teologia e das ciências das religiões que pretende contribuir com o cristianismo, e a primeira tarefa desses novos cristãos será acabar com a idéia de que o crente saudável é o crente desnutrido, sem alimento sólido, sem instrução.

É necessário, para a sobrevivência sadia da igreja cristã deste século, que ela se deixe transformar. A liderança cristã, em vez de manter as pessoas na ignorância crendo em mitos que estão em completa desarmonia com o pensamento do homem atual, deveria desejar que todo seguidor de Jesus progredisse em sua caminhada cristã até orgulhosamente falar como o apóstolo Paulo: “Quando eu era menino, falava como menino, sentia como menino, pensava como menino; quando cheguei a ser homem, desisti das coisas próprias de menino” (1Co 13.11).

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

MINHA HISTÓRIA CONTADA POR OUTROS

Sou um grande admirador do compositor brasileiro Chico Buarque, e uma das suas canções que mais me fascina dentre tantas outras geniais de sua autoria, é “Futuros Amantes”. Nela, Chico faz conjeturas sobre um possível futuro em que a cidade do Rio de Janeiro já não é habitada, mas está submersa e é então um rico campo de pesquisa científica sobre uma civilização do passado. Dentre os achados dos escafandristas que recolhem objetos nas casas há muito desabitadas, está um “amor” não vivido, que após longo tempo escondido, talvez num fundo de armário qualquer, é redescoberto para que possa, quiçá, ser finalmente desfrutado por outros amantes. Sem dúvida, esta é uma canção gerada sob uma singular inspiração, e prova da grande capacidade do seu compositor.

Mas, interpretar a belíssima canção de Chico Buarque não é o propósito deste meu texto. Acontece que motivado pela beleza da canção de Chico, passei desapercebidamente a fazer também minhas próprias conjeturas. Peço licença ao leitor para que daqui por diante, passe a expô-las.

Em meu devaneio, o lugar futuramente explorado por arqueólogos não é o Rio de Janeiro, mas a igreja da qual fiz parte por anos, localizada na cidade de São Paulo. Imaginei-a como uma preciosa descoberta arqueológica que finalmente vinha à luz depois de séculos, por que não dizer milênios. Pensei nos pesquisadores, que cuidadosamente escavariam e catalogariam cada um dos diversos objetos encontrados no interior da grande e obsoleta construção. Máquinas completamente antiquadas, instrumentos musicais que ninguém mais saberá manusear, cadeiras em abundância... estes são exemplos dos objetos que a princípio serão encontrados. Depois, automóveis surgirão da terra, material vastamente encontrado por onde quer que no futuro se escave. Finalmente, os exploradores dessa estranha civilização chegarão à parte mais rica do sítio arqueológico, a parte do prédio onde anteriormente funcionava a secretaria da igreja, a administração, a tesouraria, salas de reuniões... Mesas e gavetas tornar-se-ão, nos meses subseqüentes, objetos preciosos para a pesquisa sobre os antigos habitantes dessa terra; cada caneta ou fragmento de papel será enviado para cuidadosa análise de especialistas, que por sua vez, descobrirão, dentre os nomes mais proeminentes daquela estranha e subdesenvolvida comunidade, o meu.

Os arqueólogos não vão demorar a encontrar diversos livros, todos encadernados modestamente, atribuídos à minha autoria. Enquanto este material é encaminhado para cuidadosa análise, novos textos meus submergirão de debaixo das pedras para falar aos nossos descendentes. Dezenas de pequenos artigos sobre diversos assuntos, alguns maiores falando sobre doutrina cristã antiga, outros sobre a Bíblia, sobre a comunidade etc. Imagine comigo que agora o número de estudiosos chamados à análise desses textos e de nossa antiga cultura cresce à medida que o número de objetos também cresce. A esta altura, algumas universidades de países mais desenvolvidos já estarão pesquisando sobre os primeiros relatórios desta pesquisa, e meu nome será então citado nas revistas científicas e nas teses dos doutores. Honras póstumas não são tão bem vidas, mas... De repente, nova festa entre os pesquisadores: equipamentos moderníssimos que nem concebemos agora conseguirão acessar informações de nossos extintos computadores. Ah, então boa parte da minha obra literária deste período será completamente conhecida.

Acho que não haverá muito mais o que se escavar ali. Anos se seguirão na tentativa de reconstruir as estruturas sociais, as hierarquias eclesiais, a religião do lugar escavado. Os primeiros resultados começam a revelar o funcionamento da instituição religiosa, e por meio dos meus escritos, nascem as primeiras definições sobre aquela comunidade de fé. Contudo, intriga-me imaginar que, como a maior parte do material escrito encontrado pelos arqueólogos são meus textos, eles tentarão reconstruir em particular a minha vida, e com a ajuda de psicólogos tentarão definir minha personalidade. Escreverão que eu era um homem profundamente religioso, que dava extremo valor à doutrina da igreja, mas que por não estar preso às tradições, teria contribuído significativamente para o desenvolvimento da teologia da comunidade com minha pesquisa e idéias. Diriam, provavelmente, que eu revolucionara a forma de administração da igreja, crescendo pouco a pouco em autoridade até tornar-me ou o líder da comunidade, ou um dos líderes mais proeminentes dela. Julgariam com tudo isso que minha atividade ali durara mais de dez anos, e até aqui não teriam acertado em praticamente nada. Claro que eles não saberiam disso tão cedo, e felizes dariam seguimento às pesquisas.

Em determinado momento, surgiria uma grande barreira para a compreensão dos futuros estudiosos sobre a minha vida: notarão que minha atividade sofreu uma interrupção abrupta, e o motivo de tal parada tornar-se-á a uma das buscas mais intrigantes das ciências daquele tempo. Os meios de comunicação, semana após semana, divulgarão os novos resultados da pesquisa. Uma das primeiras hipóteses, penso eu, diria que eu teria saído da igreja para desenvolver meu trabalho nos Estados Unidos. Uma oportunidade dessas lhes pareceria natural depois de tão bem sucedido serviço local. Obviamente, como não encontrarão nenhuma evidência de que eu tenha continuado trabalho semelhante em qualquer outro lugar do mundo, esta hipótese nunca seria provada, e aos poucos cairia em descrédito. Uma segunda hipótese me apresentará como rebelde, homem agressivo com as palavras que ao invés de revolucionar a vida da igreja local, trouxe divisão ao grupo social que freqüentava. Conseqüentemente, eu teria sido banido da comunidade após caloroso debate numa assembléia solene. Neste estágio, alguns me comparariam a mártires, fazendo-me mais um herói injustiçado da fé cristã. Esta segunda hipótese, todavia, também não permanecerá por muito tempo, já que nenhum sinal de divisão ou conflito na igreja será encontrado que evidencie esta suposta saída conturbada; a própria permanência dos meus textos tratará de desmascarar a idéia de um conflito radical. Enfim, sem mais alternativas, os estudiosos mais conceituados do mundo acadêmico chegarão a um consenso e dirão que eu certamente desapareci da igreja porque morri no ano de 2008.

Claro que se o avanço das pesquisas correr desta maneira os estudiosos não terão acertado muita coisa a meu respeito. Talvez o “amor” que Chico Buarque trouxe de volta à vida seja mais fácil de reviver do que uma alma, que embora nos escombros da história pareça ser apenas mais “uma”, é mais um universo inesgotável ao mais hábil explorador.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

O que mais te chama a atenção na Bíblia? Para mim, além de seu valor religiosos, a Bíblia é também um livro admirável tanto como literatura como documento histórico. Diferente da maior parte dos outros “tesouros” literários da antiguidade, que foram escritos por pessoas privilegiadas, que tiveram boa educação, dinheiro, ou que viveram em cortes e escreviam para exaltar o nome dos seus reis e imperadores, a Bíblia é um livro do povo. Para mim isso é algo fantástico!

Com algumas exceções, os textos que foram reunidos e hoje compõem o livro que regulamenta a nossa fé são obras de pobres e oprimidos. Seus autores, os israelitas, o desenvolveram enquanto viviam ameaças de dominação estrangeira, quando eram cativos na Babilônia, quando tinham que lutar para manter o direito de viver na sua terra e plantar o seu alimento, enquanto suavam no trabalho agrário para superar a terra seca e ainda tinham que pagar tributos abusivos que os reis investiam em luxo e guerra. A Bíblia é, portanto, a voz do povo. Suas reivindicações, seus sonhos, sua fé, não é nada mais que a expressão do homem simples, pai de família que trabalhava na roça de sol a sol e da dona de casa que criava os filhos regulando a comida para que não faltasse no dia seguinte. Esse é o livro dos pobres, o povo de Deus.

Você já notou como as pessoas mais simples são pessoas de fé? Por isso a Bíblia é tão rica em transmitir-nos mensagens que estimulam a fé. Mas há na Bíblia algumas coisas que se repetem freqüentemente, expressões espontâneas dos desejos profundos daquele povo humilde que nós curiosamente ignoramos ao ler o texto sagrado. Me refiro ao clamor pela terra e pelo pão. Esse era o grande sonho daquela gente cheia de fé.

Veja como eles davam importâncias às promessas de Deus quando se referiam a terra: Em Gn 12 Abrão recebe a promessa de que receberia uma grande terra, fértil para produzir muito e alimentar toda a sua grande descendência. A esperança no Êxodo não é somente a libertação, mas também a terra fértil que mana leite e mel (Êx 3.8). O profeta Miquéias anuncia o direito à propriedade nos seguintes termos: “... assentar-se-á cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, e não haverá quem os espante” (Mq 4.4). Jesus, como bom galileu sem grandes posses, também dava valor a terra e dizia que quando a justiça de Deus se manifestasse, todos teriam sua própria terra. Ele disse em Mt 5.4: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra”. E como último exemplo, quero lembrar-lhes que a esperança para o fim dos tempos, para a vida após a morte, também inclui a terra, mas desta vez, um novo céu e uma nova terra compatíveis com nossa condição de seres transformados e imortais (Ap 21.1).

Vimos que o sonho da casa própria não é coisa dos tempos modernos, e que este é também o desejo de Deus para cada um de nós. Todavia, para os israelitas a terra não tinha apenas o propósito de servir de lar e abrigo, era também o meio de sustento da maioria das famílias. A terra era para ser cultivada, era o emprego dos homens, a escola das crianças, o lar das mulheres. O salário que eles esperavam não compraria TV’s de plasma, apenas alimentaria a família e os seus animais, era para o pão de cada dia.

O direito ao pão também percorre as páginas da Bíblia inteira. Os relatos do Êxodo sobre o maná ensinavam os israelitas de todas as gerações a confiar em Deus para a provisão do pão, mostrava-lhes que tudo vem dos céus, de Deus; e também ensinava-lhes a não acumular, a não desejar ter sobras e enriquecer, pois o resultado dessa ganância exacerbada é a falta na mesa do próximo e a punição do Senhor para os gananciosos (Êx 16). Na igreja primitiva, lemos que os irmãos não tinham falta de nada pois partiam o pão entre eles suprindo a necessidade uns dos outros (At 2.42). Finalmente, a mais famosa oração já feita diz: “... o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6.11).

Enfim, a Bíblia é mesmo o livro do povo, que fala das suas necessidades e da sua fé; conseqüentemente, é até contraditório se dizer cristão e negar ao próximo o pão de cada dia, o direito da casa própria, a oportunidade de trabalho. Deus ama os pobres, e a igreja deveria apresentar as mesmas preocupações, lutar pelos mesmos interesses. Como irmãos, deveríamos partir o pão, não acumular para que não se apodreça diante de nós aquilo que falta na mesa do povo de Deus. Lutar pela terra e pelo pão para todos é viver em conformidade com os princípios bíblicos.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

BREVE HISTÓRIA DA PROFECIA BÍBLICA

É uma tarefa difícil falar sobre as origens da profecia, já que, ao contrário do que se possa pensar, a atividade profética não se limita à antiga nação israelita e nem tampouco à Bíblia. A abrangência do tema “profecia” torna necessário que os pesquisadores da área busquem pistas em toda a história das religiões, tarefa esta que excede os limites deste breve trabalho. Assim sendo, comecemos intitulando o presente trabalho de “breve história da profecia bíblica”, para que somente busquemos nas páginas das Escrituras bíblicas as informações necessárias para descrever a evolução da profecia em Israel no período de tempo em que os livros do Antigo e Novo Testamentos foram escritos.
Os profetas propriamente ditos, aqueles que caracterizaram a porção da Bíblia que nós chamamos de “profetas”, atuaram principalmente a partir do século VIII a.C. Antes deles, personagens do Antigo Testamento que posteriormente foram associados à atividade profética eram conhecidos como “videntes”. Esse parece ser o caso, por exemplo, do influente Samuel. Esses videntes do Antigo Testamento já apresentavam características que seriam preservadas pela história da profecia bíblica como os anúncios públicos dos oráculos recebidos em momentos de transe. Servindo como intermediários entre os homens e as divindades, os videntes cobravam por suas consultas, e alguns deles chegavam a ganhar fama, sendo procurados por pessoas de regiões distantes.
O vidente Samuel marca um período de transição bastante significativo para a história da profecia bíblica, pois coincide com sua atuação a instituição da monarquia em Israel. Essa mudança política influenciaria definitivamente a religião nacional e seus porta-vozes. Personagens populares desse novo momento na história da profecia bíblica são Elias e Eliseu, chamados por alguns biblistas de “profetas de ação”, pois diferentemente dos profetas que atuaram a partir do século VIII a.C., não tiveram sua mensagem preservada em forma escrita a não ser séculos depois da sua morte. A história desses profetas foi preservada parcialmente através da tradição oral que testemunhava de uma geração à outra suas milagrosas atuações que de maneira “lúdica”, falavam ao povo comum e às lideranças políticas e religiosas sobre as vontades de Deus. Vale à pena lembrar que no cânon hebraico, os livros que registram os atos de Samuel, Elias e Eliseu não são considerados históricos como normalmente são classificados hoje, mas livros proféticos “pré-literários”.

Fortemente marcados pela realidade opressora imposta pela administração de uma monarquia (que tirava do povo comum dependente quase que completamente da agricultura ou da criação de animais os recursos para suprir sua abastada corte e seu exército), o discurso profético passa a ser cada vez mais uma forte crítica contra reis e outras autoridades. Os profetas de Israel rejeitam o sistema monárquico como uma maneira idólatra de conduzir a nação, e vêem como ideal o retorno ao sistema tribal em que o próprio Javé os governava e livrava dos inimigos. Esta crítica ao Estado se tornaria a principal característica da profecia bíblica, muito mais presente, inclusive, que as previsões futuristas que hoje são tão destacadas por aqueles que falam a respeito dos livros proféticos da Bíblia.

A atividade profética então cresce na mesma proporção em que as antigas tradições e leis religiosas que preservavam a família e a subsistência do camponês se deterioram. Profetas como Amós, Oséias e Isaías nascem de um período de crise intensa, que resultaria na destruição do país pelas mãos dos assírios (reino do norte) e babilônios (reino do sul). A mensagem desses profetas pré-exílicos girava em torno da idolatria dos reis, da injustiça social exacerbada, da violência contra os fracos e da desintegração da religião dos antepassados. A vitória dos impérios inimigos seria interpretada pelos profetas como conseqüência desses pecados, e não da superioridade militar evidente e dos interesses políticos das nações. Os profetas que observando as circunstâncias predisseram a destruição ganham prestígio, parte de suas palavras são registradas por escrito e com o passar do tempo tornam-se sagradas dentre o povo.

Durante o exílio a atividade profética não cessou, como testemunham os livros de Jeremias e Ezequiel, por exemplo. Agora, como já não há Templo, rei e exército, as ameaças proféticas voltam para a orgulhosa Babilônia. O discurso profético mostra-se versátil nesse período e vemos que além de apontar erros e ameaçar estruturas de poder, os profetas também transmitem esperança para os fracos. A fé em Javé que antes estivera estreitamente ligada à rotina do Templo em Jerusalém é revista, e são os profetas quem transmitem aos exilados ou miseráveis deixados na devastada terra natal a esperança de que um dia sua nação seria vingada e restaurada por um Deus justo, que não os abandonara.

Não se pode afirmar que todas as previsões proféticas cumpriram-se com fidelidade, mas o fim do exílio com a ascensão do império medo-persa, a reconstrução de Jerusalém e do seu Templo, são fatos que consolidavam cada vez mais a tradição profética em Israel. No período pós-exílico, profetas como Miquéias, 3Isaías e Malaquias atuaram principalmente como motivadores, incentivando o povo na reconstrução não apenas das cidades, muralhas e templos, mas também da religião nacional. A promessa de Miquéias de que a glória do segundo templo seria maior do que a do primeiro e a exortação de Malaquias para que o povo obedecesse às ordens de entregar os dízimos no Templo de Jerusalém, mostram o comprometimento dos profetas do período pós-exílicos com a reconstrução de um sistema que seus antecessores condenaram.

A primeira parte de Isaías 24, que é um texto seguramente pós-exílico, pode ser usada aqui para demonstrar uma nova transição pela qual a profecia passava; estamos nos referindo à origem do apocalipsismo. Até então, os profetas limitavam suas críticas quase sempre à própria nação, e suas expectativas de futuro diziam mais respeito às revoluções no campo político. Além disso, os profetas propriamente ditos transmitiam suas mensagens oralmente, razão pela qual os livros proféticos são obras das penas dos seguidores dos profetas. O apocalipsismo ampliou os horizontes da profecia, e anunciou o julgamento de Javé tanto a Israel quanto às demais nações, o fim catastrófico que alcançaria tanto justos quanto ímpios. Outra característica do apocalipsismo bíblico é que os apocalípticos não eram oradores, mas escritores, e em suas obras passam a fazer uso abundante de imagens e linguagem simbólica que muitas vezes era incompreensível para aquele que não pertenciam ao mesmo grupo. Há um número muito grande obras apocalípticas ainda preservadas ao menos parcialmente em cópias que nos permitem saber que o período inter-testamentário foi onde a literatura apocalíptica mais floresceu. No Antigo Testamento, o livro de Daniel é o melhor exemplo de literatura apocalíptica.

Chegando aos textos do Novo Testamento é possível identificar facilmente os traços de toda essa longa história do profetismo em Israel. Temos em João Batista, por exemplo, alguém que vinculava-se à tradição profética para fazer com que sua mensagem fosse recebida de maneira eficaz. No imaginário popular, certamente a visão de um profeta vestido de pêlos, mantendo uma alimentação escassa, separado da sociedade, habitando no deserto e criticando arduamente as estruturas de poder do seu tempo, remetia-os ao libertador Moisés, ao milagreiro Elias, ao corajoso homem do povo Amós... Não julguemos, porém, que o apocalipsismo perdera sua influência nos dias Jesus. É possível identificar ao longo do Novo Testamento inúmeros discursos tipicamente apocalípticos. Mateus 24 é inconfundivelmente um exemplo de como o apocalipsismo ainda estava presente na religião da província da Palestina durante o primeiro século. Além de inúmeras passagens apocalípticas espalhadas pelas cartas, o Novo Testamento possui o mais famoso de todos os livros apocalípticos, o “Apocalipse de João”. Na verdade, foi esse livro quem deu nome ao gênero literário que seu autor empregou, e ele evidencia a forte tendência apocalíptica presente em alguns círculos cristãos no final do século I e início do século II d.C.

Contudo, se levarmos em conta que a literatura profética tornou-se a maior fonte de esperança e também de reivindicações de justiça social para o povo de Israel, será que não podemos identificar influências da tradição profética em quase todos os livros neo-testamentários? Será que apenas oráculos com anúncios futuristas ou textos cheios de imagens das regiões celestiais devem ser considerados aqui? A verdade é que nos dias de Jesus e também da igreja cristã primitiva, a tradição profética tornara-se parte da cultura e não estava mais limitada a alguns videntes que diziam-se chamados por Javé para essa missão. No século I, poder-se-ia identificar características proféticas e apocalípticas em diversos movimentos populares de resistência à dominação imperial romana, dentre os quais, o movimento liderado por João Batista e o de Jesus podem ser inclusos. Nas décadas que precederam à guerra judaica contra Roma em 68-70 d.C., por exemplo, nasceram abundantes pretendentes messiânicos ou mesmo líderes bandidos que reunindo homens que sofriam com a injustiça, manifestavam sua insatisfação de maneira pacífica ou violenta. Seja como for, não se pode negar que os séculos marcados pela atuação dos célebres profetas do Antigo Testamento deixaram marcas permanentes que transcendiam a literatura.

Ainda que aqui tenhamos tratado da história da profecia bíblica de maneira superficial, acreditamos que este pequeno trabalho tenha exemplificado bem o processo de evolução da profecia bíblica, além de deixar claro ao leitor o quanto é abrangente o tema e grande a necessidade de maior aprofundamento para que alcancemos conclusões definitivas.