sexta-feira, 24 de agosto de 2012

DISCURSOS RELIGIOSOS DESIGUAIS EM NOME DO AMOR

Amigos, acabo de ver uma postagem feita no Facebook, de autoria cristã evangélica, que me deixou bastante contrariado. Vou acrescentar a imagem abaixo e peço que leiam. Depois, incluo aqui os mesmos comentários que fiz ao texto na internet. Reflitam e opinem, por favor:



Meus comentários no Facebook: A honra é só para o marido? Só ele é ousado e capaz de enfrentar desafios? De que autoridade estão falando que só uma parte tem? E a esposa é uma criança indefesa agora? Acho que as intenções são ótimas, mas esse ensinamento só mantém as estruturas desiguais que a sociedade machista estabeleceu para a sociedade em geral. As diferenças existem, mas na família e no mundo, a igualdade deve ser o princípio regente. As mulheres deviam questionar qualquer tipo de pedido à "submissão" não justificada a não ser por princípios religiosos tão antigos quanto a poligamia.


Análise Crítica para o Blog:


Realmente, nota-se que o texto foi produzido com a intenção de ajudar casais a viverem de maneira mais harmoniosa. Pede-se respeito, carinho, companheirismo, demonstrações de amor... Todavia, os pedidos feitos a homens e mulheres são diferentes, e não parecem separados com base nalguma explicação psicológica. Notemos que o homem precisa ser apoiado, honrado, respeitado... O marido é um líder na família, um conquistador que enfrenta desafios e precisa de apoio para vencer corajosamente os adversários externos. Ele protege a família, cuida da esposa como se ela fosse uma criança indefesa, e merece respeito especial. Por sua vez, a esposa não parece ter os mesmos desafios, sua atuação é basicamente interna, voltada para o lar e para o marido. A mulher é fraca, precisa que outro a proteja, é dependente, e no final deve respeitar a “autoridade” do homem e não criticá-lo.
É importante ressaltar que a grande manipulação empregada é a intimidação, quando a “inquestionável” autoridade de Deus é evocada para justificar a submissão feminina.
Por fim, nos parece evidente que todo o discurso religioso trabalha pela manutenção da estrutura familiar mais tradicional em os homens são líderes das suas casas, autoridade que não deve ser discutida, apenas aceita. O papel das mulheres é cuidar do lar, servir ao marido; ela é fraca e incapaz de enfrentar os mesmos desafios, pelo que o lugar mais apropriado dela é mesmo o lar. Estamos falando de donas de casa apenas. Em suma, esses conselhos supostamente religiosos só mantêm as estruturas desiguais e machistas que o cristianismo estabeleceu para a sociedade em geral. O texto age como destinador, pedindo que os casais se submetam ao modelo tradicional de família hierarquizada e machista, e seu grande argumento é que esta é a vontade de Deus. Os destinatários cujos valores religiosos são semelhantes serão os mais facilmente manipuláveis, e quando aceitam tal contrato julgam obedecer a Deus, e não a este outro enunciador religioso e antiquado.
Se por um lado podemos dizer que eram boas as intenções, por outro podemos afirmar que o autor do texto é também alguém que foi manipulado pelo discurso religioso formulado a séculos, e que também julga ser alguém a serviço de Deus. A grande questão é pela aplicabilidade desse modelo familiar na sociedade moderna em que as mulheres não atuam exclusivamente no lar, nem são mais aqueles sujeitos frágeis, despreparados para a vida fora de casa, completamente dependentes economicamente dos seus maridos. As mulheres modernas também são confrontadas com outros contratos sociais que sugerem que elas devem ser livres das antigas opressões machistas, que elas não devem aceitar a desigualdade. Assim, a igreja evangélica expressa-se de maneira antiquada, ultrapassada, e produz mais problemas que soluções. Sem dúvida casais passam a viver de maneira mais harmoniosa frente a tais conselhos, mas no geral, o discurso evangélico vai se mostrando cada vez mais desatualizado e desnecessário diante da sociedade que o cerca, produzindo cidadãos conservadores e preconceituosos quanto aos demais, e se tornando cada vez mais depreciada. Sugeriríamos que tais empreendimentos voltados para os valores familiares se tualizassem, mas para isso seria necessário, antes de mais nada, aprender a ler a Bíblia fora da perspectiva fundamentalista que impera nesse meio religioso. Não dá mais para continuar dizendo às mulheres: sejam submissas aos homens, porque é assim que Deus quer e pronto.

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

NOVO ARTIGO PUBLICADO: TEOLOGIA E LITERATURA BÍBLICA

Gostaria de comunicar a recente publicação de mais um artigo meu. A Revista Theos (http://www.revistatheos.com.br/), periódico da Faculdade Teológica Batista de Campinas, novamente abriu-me um importante espaço para compartilhar nossas ideias, contribuindo assim com autores e pesquisadores como e com os estudiosos de teologia em geral.

Acessem o link da revista e baixem este ou outros artigos que lhes interessar.

Anderson.

ISSO É NOTÍCIA OU DISCURSO RELIGIOSO?



O exemplo abaixo foi tirado de um “blog” que defende o chamado “criacionismo científico”, proponho que o analisemos segundo os critérios apresentados nas páginas anteriores, sobre as estratégias dos discursos religiosos:
“MEC diz que criacionismo não é tema para aula de ciência”. Este é o título da matéria feita pelo Jornal Folha de São Paulo, do dia 13/12/2008, onde a secretária da Educação Básica do Ministério da Educação, Maria do Pilar, mostra a opinião do MEC sobre o assunto, informando que não considera a teoria do Criacionismo Científico uma ciência, tendo como base a opinião da maioria dos cientistas na área. Leia sua declaração: "[O ensino do criacionismo como ciência] é uma posição que consideramos incoerente com o ambiente de uma escola em que se busca o conhecimento científico e se incentiva a pesquisa".
Opinião divergente tem o grupo Pueri Domus Escolas Associadas, uma rede laica que reúne 160 escolas no Brasil inteiro, que apoia a exposição da teoria criacionista nas salas de aula, e sobre o assunto vale o comentário do Lilio Alonso Paoliel-lo Júnior, diretor de conteúdo da rede associada, informando que o ensino das duas teorias é um benefício para promover o debate: "Negativo seria não deixar que a discussão acontecesse. É uma questão de posição pedagógica. O conteúdo é aceito por pais das escolas laicas e das religiosas", diz o diretor.
Como dissemos, essa suposta notícia está postada num blog de opinião declarada a favor do criacionismo (teoria baseada na leitura literal de relatos míticos da Bíblia que contam como Deus criou o mundo, teoria religiosa que vê do darwinismo evolucionista seu grande rival). Saber qual a posição do enunciador já nos ajuda a identificar os caminhos da argumentação. Notemos que o texto segue os critérios jornalísticos, parece imparcial, narrado em terceira pessoa, e o narrador nunca expõe sua opinião diretamente.
Aqueles recursos que criam a sensação de imparcialidade, objetividade, cientificidade, estão todos presentes. Vemos toda a atenção dada aos nomes das pessoas, à data e fonte da publicação, às instituições envolvidas. Temos também as citações, e a primeira, que está de acordo com a posição do MEC e com “cientistas da área”, e da secretária da educação. Nesse caso a citação é completamente desnecessária; as palavras de Maria do Pilar não dizem nada que já não tenhamos compreendido a partir do texto anterior. Temos aí um recurso de ancoragem do texto com a realidade, e como leitores, sentimos que estamos sabendo das coisas como realmente aconteceram.
Mas o narrador quer ir adiante, quer demonstrar que há um problema na decisão dos primeiros, então usa outra instituição, o colégio Pueri Domus que é uma instituição de ensino voltado para crianças cujas famílias possuem alto padrão econômico. É interessante notar que, embora essa instituição não tenha a mesma “autoridade” que o MEC nem o conhecimento específico dos “cientistas da área”, o narrador quer exaltar suas virtudes para fazer de sua opinião algo convincente. Então ele usa a designação “laica”, para dizer que eles não são cristãos fanáticos defendendo uma causa religiosa (acusação certamente recorrente contra os defensores dessa opinião), e diz que o Pueri Domus conta com 160 escolas no Brasil, um recurso quantitativo que procura dar importância à instituição. Só então vemos a segunda citação, desta vez, de um representante do Pueri Domus que apoia o ensino do criacionismo nas escolas de nível fundamental.
O diretor do colégio diz que seria negativo não deixar que a discussão ocorresse, ou seja, não permitir que se ensinasse o criacionismo ao menos junto com outras teorias supostamente mais científicas. O argumento é de caráter científico, evoca a liberdade de expressão e o direito que temos à informação, a liberdade de escolha. Todavia, ignora que a questão é outra; o problema é que a escola é, na primeira opinião, lugar para se discutir temas científicos, e o criacionismo, por não ser considerado científico por aqueles, não deve ser discutido na escola. Claro que o direito a se discutir o tema é dado a todo cidadão, mas noutro ambiente, quiçá, na igreja. Mas não é isso o que o texto quer nos dizer; lendo-o, temos a impressão de que o MEC está infligindo os nossos direitos, que há uma espécie de “perseguição” ou de preconceito contra o criacionismo. Todavia, o que está em pauta é a cientificidade do criacionismo, que parece ser questão resolvida para o enunciador, e que por isso apresenta a notícia tentando defender sua causa diante de um público religioso e de pretensões racionais.

Fonte: http://criacionismocientifico.blogspot.com.br/2008/12/saiu-na-folha-mec-diz-que-criacionismo.html

terça-feira, 21 de agosto de 2012

OS DISCURSOS RELIGIOSOS E SEUS RECURSOS RETÓRICOS


Já dedicamos algumas páginas à análise dos discursos religiosos, mas até então, nossas observações se resumiram ao conteúdo dos discursos. Nossa atenção esteve voltada para as ofertas, tentações, intimidações... Desta feita nossa análise dos discursos religiosos se voltará para questões externas, para recursos retóricos, características literárias, estratégias empregadas durante o processo de enunciação dos discursos que têm por objetivo conduzir o leitor à aceitação dos valores defendidos no texto. Passamos a outro nível da linguagem, o discursivo, e já não será apenas o conteúdo que nos importará, mas principalmente o modo como esse é transmitido.
            Conhecemos diversas estratégias linguísticas que visam criar no texto sentidos de realidade, objetividade, imparcialidade, e é claro que esses recursos são abundantemente empregados nos textos religiosos. Sabemos, por exemplo, que a narração em terceira pessoa transmite ao leitor a impressão de distanciamento, de racionalidade, diferente da passionalidade comum aos textos narrados em primeira pessoa. Não é por acaso que os textos acadêmicos são narrados em terceira pessoa, e geralmente no plural, para o leitor tenha a sensação de estar lendo teses, hipóteses e argumentos não de um sujeito individual, mas de toda uma comunidade científica. Assim, em vez de dizer “minha hipótese é...”, o acadêmico diz “nossa hipótese é...”. Também são recursos desse tipo o emprego de muitas aspas com citações alheias que servem mais para confirmar uma ideia defendida do que propriamente para acrescentar algo novo. Nas citações, o autor toma emprestado a autoridade de outro, tenta nos convencer por meio de breves fragmentos descontextualizados de que suas afirmações são verdadeiras e de ampla aceitação. Apesar da aparente objetividade desse linguajar acadêmico, a própria evolução de cada uma das áreas do conhecimento humano é prova de que mesmo os argumentos mais bem desenvolvidos acabam, num momento futuro, sendo reconsiderados.
            Outro exemplo de discurso que faz uso abundante desses recursos retóricos é o discurso jornalístico. Faz-se na imprensa o uso constante de citações, exibe-se amostras de documentos, trechos de supostas gravações telefônicas, e tudo isso passa a ideia de que realmente foi empreendida uma grande investigação. Apesar de toda a informação ser selecionada e interpretada pelo autor do discurso, têm-se a impressão de que este apenas está transmitindo a notícia, contando os fatos sem emitir opiniões pessoais ou fazer julgamentos; isso, contudo, é mera sensação criada pelo modo como o texto está construído, é o resultado das estratégias literárias bem empregadas para convencer o outro. O curioso é que lendo os jornais, pensamos que as evidências de um determinado crime que anunciam parecem claras, e somos conduzidos a fazer julgamentos precipitados; depois, quando um verdadeiro julgamento ocorre, os advogados tratam de esclarecer quantas daquelas evidências podem ser interpretadas de outras maneiras, como um olhar diferente revela a insuficiência das provas, e nós, que só tivemos acesso à informação parcial dos jornais, ficamos revoltados quando os supostos criminosos são inocentados e não compreendemos como aquelas “provas indiscutíveis” não foram consideradas.
            Nesses textos jornalísticos, também encontramos o uso abundante de menções a lugares, datas precisas, horários exatos, nomes completos, idade e profissão de pessoas envolvidas na notícia... Muitas vezes, se prestarmos atenção podemos notar que muitos desses detalhes eram simplesmente desnecessários, porém, eles também são recursos retóricos. O vínculo que este detalhamento cria com a suposta realidade histórica faz o destinatário sentir que o assunto realmente aconteceu como está sendo narrado. Amarrar a ficção com aquilo que nos parece histórico confunde nosso senso de realidade, assim como também o seu contrário, quando elementos fantásticos nos levam desacreditar os fatos possivelmente históricos que estão contidos num determinado discurso.
            Falamos de discursos acadêmicos e jornalísticos porque ambos são bons exemplos de como algumas estratégias podem produzir o sentido de distanciamento entre os fatos narrados e o próprio narrador, passando a impressão de imparcialidade, objetividade. Mas também devemos considerar as estratégias contrárias, que procuram aproximar o leitor através de discursos mais passionais.
            Tomemos como exemplo agora os discursos publicitários. Um dos recursos retóricos empregados pelos publicitários é criar uma identificação entre o produto que oferecem e o público. Para isso, eles precisam determinar com exatidão seu público alvo, e produzir discursos capazes de atingi-los. Temos assim a criação de um destinatário da mensagem, um estereótipo que o discurso quer manipular. Por vezes, podemos mesmo notar que tal mensagem não nos causa nenhum interesse, mas isso pode ser apenas um resultado previamente previsto; ou seja, pode ser que não estejamos entre os sujeitos que são “alvos” da mensagem. Para criar identificação com o destinatário, é sempre melhor usar uma linguagem mais informal, narrações em primeira pessoa, se dirigir ao outro como “você”, criar cenários com os quais o outro se identifique. É assim que procedem, por exemplo, os políticos antes das eleições. Se eles querem atingir os evangélicos, aparecem na TV com ternos, bíblias, visitam igrejas, terminam seus discursos falando de Deus... O objetivo é fazer com o público evangélico pense que o tal candidato é “um deles”. Caso determinada empresa automobilística queira vender um carro luxuoso e de valor elevado, ela tentará atingir um público de poder econômico elevado com imagens que enaltecem o conforto, a classe ou o status das pessoas que possuem tal automóvel, e fará o seu carro circular em lugares bonitos, com ruas limpas e sem trânsito.
            Literariamente, vemos que para obter esse efeito de proximidade, de identificação, o autor cria personagens, cenários e enredos que parecem reais para seu público. Isso também acontece nos discursos religiosos; na Bíblia, Jesus, seus discípulos e os fariseus, são personagens que mudam de acordo com os interesses dos autores. Como eles são verdadeiros papéis temáticos, poderemos sempre notar que Jesus fala o que Deus falaria, que não erra, que não se confunde, e é de quem podemos esperar sempre verdades absolutas. Por outro lado, os discípulos são os personagens com os quais os leitores dos evangelhos deveriam se identificar, e se numa comunidade eles precisavam ser repreendidos, Jesus trata nos textos de chamar a atenção deles; mas se noutro grupo os discípulos precisam de consolo e motivação, Jesus trata de exaltá-los e reafirmar o privilégio que eles têm. Os fariseus não são diferentes, como rivais, assumem a cada evangelho novas características que facilitam a identificação desses personagens com os rivais concretos do grupo que produzia o evangelho.
            Ainda falando dos evangelhos, vemos que seus narradores, embora sejam diferentes entre si, assumem características comuns. Nenhum deles tem nome, não estão envolvidos pessoalmente na história que contam e por isso narram sempre em terceira pessoa, possuem conhecimentos privilegiados que só eles e Deus poderiam ter, estão sempre de acordo com Jesus, procuram se ocultar deixando muitos dizeres importantes por conta dos próprios personagens... Nas chamadas “cartas paulinas”, por sua vez, as estratégias do narrador são outras. Ele usa a primeira pessoa, e embora diga que a carta seja de autoria coletiva, fala como se só houvesse um autor a maior parte do tempo, e este autor assume a personalidade de um apóstolo Paulo ideal. Enfim, vamos a seguir nos dedicar a alguns poucos fragmentos religiosos, bíblicos ou não, para ver mais de perto o funcionamento desses recursos retóricos que temos discutido.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O TEXTO E SUAS LACUNAS: CHICO BUARQUE




Estamos começando um novo estudo, que como sempre, tem por finalidade nos ensinar a ler textos bíblicos. Dessa vez o tema que nos importa são as "lacunas" das narrativas bíblicas.  Estamos falando de espaços deixados em branco que nem sempre são falhas ou carência de detalhes; essas lacunas podem mesmo ser propositais, e seja como for, se lá estão, acabam servindo para impulsionar a criatividade do leitor, que as preenche por conta própria.

Quando falamos dessas lacunas em relação à literatura bíblica, o estudo de tal recurso retórico mostra-se de especial complexidade. A confusão se instala mais na exegese bíblica do que noutras leituras, porque os estudiosos das metodologias de interpretação bíblica aprendem com muita ênfase a não criar sentidos durante a interpretação, a apenas averiguar o que o próprio texto está dizendo. A exegese por muito tempo afirmou que a busca do exegeta era pelo sentido literal do texto, e esta história acabou por “engessar” a criatividade da leitura bíblica.

Antes de falar de textos bíblicos, vamos lidar como exemplo de uma canção de Chico Buarque chamada “Aquela Mulher”, gravada no álbum “As Cidades” de 1999. O ponto que nos toca está logo no início da letra da canção, que começa dizendo:

Se você quer mesmo saber
Por que que ela ficou comigo
Eu digo que não sei.

            Já nessa primeira estrofe vemos que o autor faz uso de um narrador com identidade própria. Ou seja, não é o próprio Chico Buarque quem fala, mas um personagem seu, um homem que no tempo narrativo tem algum tipo de relação amorosa e sexual com uma mulher. Esta mulher é apenas mencionada, não atua, não fala, não aparece, porém, é construída como um valor desejado por dois sujeitos. O narrador é uma das partes interessadas, e a outra é representada por outro sujeito, também do sexo masculino, que convém chamarmos de narratário. Aí já podemos notar quantas informações estão implícitas, como o texto está construído como uma imitação da vida, de um diálogo entre dois homens que parecem desejar a mesma mulher. De tudo isso, o único elemento que podemos considerar uma realidade histórica extra-textual, é o desejo dos sujeitos do sexo masculino por outro do sexo feminino, e a possibilidade de que a coincidência dos seus desejos os faça atuar como anti-sujeitos, disputando de alguma forma o amor da mesma mulher.
            Mas o que há de mais importante é que o começo do texto não nos apresenta o verdadeiro começo do diálogo. Temos uma conversa incompleta; nos foi permitido ouvir apenas a voz de um dos sujeitos (o narrador), cuja fala já se constitui numa resposta a uma pergunta feita. Aqui temos uma verdadeira “lacuna” sugerida pelo texto. Sabemos que a pergunta que originou a resposta deve ter havido, porém, só podemos imaginá-la. A pergunta que o narratário teria feito ao narrador pode ser depreendida da própria resposta: ele perguntou por que a mulher ficou com o narrador.
Na estrofe seguinte há novas respostas, provavelmente oferecidas a outras perguntas feitas:

Se ela ainda tem seu endereço
Ou se lembra de você
Confesso que não perguntei

A grande atratividade da canção é a ironia com que o narrador responde àquelas perguntas aparentemente indiscretas e indesejadas. Ele mostra respeito aos contratos sociais de civilidade, mas provoca o seu rival de diversas maneiras, e a primeira delas é demonstrando desinteresse completo. Ele diz que durante as “noites”, o que já sugere a intimidade sexual entre ele e a mulher, eles não cuidam do mundo. É assim que ele explica porque (segundo ele) eles nunca conversaram sobre o narratário. Notemos que tal detalhamento é desnecessário; bastava dizer “não sei”, mas ele procura ressaltar provocativamente sua intimidade com a mulher dizendo coisas como “que noites de alucinação passo dentro daquela mulher”.
A ironia se dá pelo fato de o enunciado, o conteúdo da mensagem, que é provocador e até agressivo, negar o estilo ou o gênero. Apesar de tudo parecer uma conversa entre sujeitos civilizado, a provocação contraria as aparências, e atinge seu ápice quando na próxima estrofe o narrador passa a mencionar as supostas palavras da mulher, ditas, tudo leva a crer, exclusivamente a ele. Segundo sua explanação, a mulher teria dito que com “outros homens” sempre se exibiu e “até fingiu sentir prazer”, e que nunca soube antes dele “que o amor vai longe assim”. Tudo isso desqualifica o narratário, o primeiro amante da mulher; tudo desqualifica seu desempenho sexual, deslegitima-o como candidato a amante. É interessante sempre observar como em todas essas provocações, o narrador manteve-se “educado”, sendo capaz de diminuir seu anti-sujeito abertamente sem que isso fosse interpretado como agressão explícita. A ironia é o recurso que o permitiu fazê-lo.
Por fim, ele volta a nos lembrar que o motivador daquelas respostas foi o outro, dizendo: “Não foi você quem quis saber?”. Provavelmente, o narrador sentiu-se desafiado quando o ex-amante o havia abordado com perguntas sobre sua intimidade. Ele extrapolara alguns limites invisíveis ao questionar o outro querendo saber se a mulher se lembrava dele. Sentindo-se desafiado, o narrador parte em contra-ataque, e munindo-se da ironia luta por superar seu rival naquela disputa psicológica. Mas, como temos afirmado, isso tudo aconteceu antes de o texto começar, e por isso este é um caso em que nossa imaginação é instigada, convidada a participar do texto e criar junto com o autor. O que não poderíamos fazer, é criar novos diálogo, acrescentar palavras àquelas que o narrador disse. Isso o autor tomou para si, fez o trabalho completo. Contudo, também nos foi dado o direito de imaginar o final da história, e podemos conjeturar livremente sobre as possíveis reações do narratário, vendo-o constrangido, raivoso, envergonhado...
Por termos ouvido apenas a voz do narrador, que parece atacar o narratário em legítima defesa, obviamente nos identificamos com ele, desfrutamos da sua ironia e achamos “bem feito” que o outro tenha tido que suportar tais palavras. Mas a verdade é que não sabemos, nem nós nem o narratário, se toda aquela história é verdade ou mera ficção retórica. Nunca será possível saber se realmente a mulher disse aquelas coisas, se o amor deles é tão perfeito, se ela deveras despreza o antigo amante como o narrador quer fazer acreditar. Como expectadores, essas dúvidas nos são colocadas para que fiquem, não para que tentemos resolvê-las, o que seria, outra vez, superinterpretar o texto.
Ouça a canção em: http://www.youtube.com/watch?v=CQyBNfxEc2c

terça-feira, 14 de agosto de 2012

NOVO ARTIGO PUBLICADO: ESTUDO SOBRE ROMANOS 1.1-7


Acaba de ser publicado mais um artigo meu. Dessa vez, o periódico acadêmico responsável é a revista Ciberteologia, da editora paulinas. A revista é um periódico digital, on-line, e por isso todos podem acessar e baixar os artigos publicados em PDF gratuitamente.


Esse artigo é o resultado de uma análise da estrutura interna (forma) de Romanos 1.1-7. Produzi a análise em 2010, para usá-la com os alunos de teologia do ICEC. O resultado foi gratificante, nos fez compreender como a tal "estrutura cumulativa" nos ajuda assimilar a lógica argumentativa do autor de Romanos, acompanhando seu raciocínio e entendendo onde ele quer chegar. Recentemente, o mesmo modelo também me ajudou a compreender outra passagem, desta vez em Filipenses, durante outro curso de exegese no ICEC da Zona-Leste de São Paulo.

Então, convido-os a visitar a revista e ler meu artigo. Confiram também os outros títulos, que parecem muito bons.

Anderson de Oliveira Lima

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

O JOGO DAS MANIPULAÇÕES: EDIR MACEDO

 Nas últimas duas postagens eu falei sobre os "discursos religioso" para discutir o que agora eu estou chamando de "jogo das manipulações". Nas duas postagens, descrevi os quatro tipos de manipulações possíveis, com a finalidade de desenvolver nossa capacidade de avaliar os discursos religiosos e entender como os enunciadores dos tais discursos tentam manipular seus destinatários. Agora vou fazer uma rápida análise de um breve discurso religioso, um "twitter" de Edir Macedo. Minha intenção não é aprovar ou desaprovar, julgar e condenar ninguém, mas estudar como se dá a retórica, seus recursos linguísticos para tornar convincente o enunciado. Vamos ao texto:

“Quem raciocina não se satisfaz com migalhas. Pensa grande. Pensa de acordo com os pensamentos do Todo-Poderoso”

Aqui, primeiro o destinatário evoca o tema do “raciocínio” como virtude, um conceito de valoração positiva no seu contexto sócio-cultural. Ou seja, ele se dirige a um público que considera raciocinar uma virtude, algo desejável. Depois, ele fala que o raciocínio leva o ser humano a desejar coisas grandes, o que nós poderíamos associar a seus próprios empreendimentos religiosos, que sem dúvida, estão entre essas coisas grandes de que ele fala. Assim, Edir Macedo tenta redefinir o conceito de “raciocínio” para seu público, faz seu leitor ou ouvinte avaliar sua própria “racionalidade” a partir do tamanho de seus desejos pessoais. Obviamente, Macedo legitima indiretamente sua atividade profissional e suas estratégicas religiosas, ao mesmo tempo em que deslegitima outras, que porventura não considerem essas “grandezas” coisas desejáveis.
Por fim, ele fala que pensar assim como ele é estar em conjunção com os pensamentos de Deus, o que dá ainda maior força retórica às suas afirmações. Então, ele tenta manipular seus destinatários com a chamada “tentação”, fazendo-os desejar a “racionalidade” e a adequação com os pensamentos do Todo-Poderoso, um sujeito que ele silenciosamente diz conhecer melhor que outros. Depois, ele oferece um caminho prático para que estes destinatários alcancem os valores que passaram a desejar, e este caminho é o da grandeza, o da insatisfação com aquilo que ele chama de “migalhas”.
Em nenhum momento Edir Macedo fala de sua religião, de sua igreja, mas não restam dúvidas de que este discurso está em perfeito acordo com esses empreendimentos. Temos um discurso capaz de atingir com eficácia aqueles que compartilham de seus valores, que também consideram as “grandezas” coisas boas, que não priorizam outras virtudes opostas como a “humildade”, a “simplicidade” ou a “igualdade”. Ele toca diretamente a ambição humana por status social, por poder, por prestígio, e diz que Deus também compartilha do mesmo quadro de valores, permitindo-nos unir a religião e a ambição num mesmo projeto de vida.

AS TENTAÇÕES E PROVOCAÇÕES DE JESUS: Mateus 4.1-11



Já dissemos que Marcos não traz com tantos detalhes a narrativa das tentações de Jesus no deserto. Essa história está presente em Mateus e Lucas (4.1-13), pelo que os estudiosos acreditam que ela tenha sido produzida a partir da chamada Fonte Q. Em nosso comentário dessa narrativa, vamos recorrer a um instrumental específico da Semiótica Discursiva, que identificou a existência de quatro tipos de manipulações, dentre os quais está a tentação. Empregaremos este recurso aqui para demonstrar que as investidas do Diabo não são todas do mesmo tipo, e para entender as razões pelas quais Jesus pôde resistir a elas.
A Semiótica Discursiva se ocupa da narratividade dos textos, e da maneira como um sujeito que pode ser chamado de destinador, manipula outro sujeito para que faça o que ele deseja. A primeira maneira de manipular alguém seria através da “tentação”. Na tentação, o manipulador tenta convencer o destinatário a fazer algo por meio de uma espécie de suborno, pela oferta de valores que este destinatário deseja. Assim, para que a manipulação seja eficaz, é preciso que a oferta seja interessante, desejável. O sujeito é levado a fazer o que o outro deseja, ou a crer no manipulador, para que venha a adquirir o valor oferecido. A tentação, portanto, é ineficaz quando a oferta não é tão desejável ao sujeito que está sendo manipulado. A segunda forma de manipulação é a chamada “intimidação”. Ao contrário da primeira, em vez de oferecer valores interessantes, na intimidação o manipulador ameaça retirar do seu destinatário algum(s) valor(es) que ele possui, ou acrescentá-lo valores que ele não deseja. Uma típica intimidação religiosa é a ameaça do inferno, que pode ser compreendida como a ameaça de se perder a paz, a saúde, a vida, a família etc, dependendo do contexto. O religioso assim é induzido a praticar atos que talvez não desejasse, por medo de sofrer tais consequências.
A terceira forma de manipulação é a “sedução”. Agora já não se trata de promessas e ameaças, mas de exaltações sinceras ou não, que o manipulador faz em relação às características do destinatário. O sedutor é aquele que tenta convencer o outro elogiando-o, notando ou até destacando com exagero as suas virtudes; esse ato aparentemente benévolo, indiretamente leva o destinatário a agir para confirmar a imagem que o outro fez dele. Enfim, também pode-se manipular alguém por meio da “provocação”. Neste caso, em vez de exaltar as características do outro, o manipular deprecia-as, e da mesma forma o destinatário se sente forçado a agir, desta vez para alterar a ideia negativa que o outro faz dele.
Voltando à narrativa de Mateus 4.1-11, Jesus é levado ao deserto pelo próprio espírito e jejua lá por quarenta dias. Tanto o numeral “quarenta” quanto o código topográfico “deserto” são heranças da tradição religiosa judaica, e remetem o leitor ou ouvinte desta nova narrativa às história de Moisés e ao Êxodo, quando este libertador tirou os israelitas da escravidão no Egito e os fez peregrinar por quarenta anos no deserto até que tomassem posse de sua própria terra em Canaã. O cenário evocado para as tentações de Jesus é o de uma nova libertação, de um período de provação que conduzirá o sujeito que for aprovado à vitória. Neste cenário, Jesus está provando sua aptidão, passando por um teste decisivo que lhe capacitará para a missão.
No versículo 3 temos a primeira investida do Diabo. Geralmente nos lembramos que ele desafia Jesus a transformar pedras em pães para matar sua fome. Isso seria uma tentação, pois está-se oferecendo a Jesus algo que ele supostamente desejava durante seu período de jejum. Todavia, os pães não são valores tão desejáveis no ethos religioso do Movimento de Jesus, pois sabemos que eles consideravam a fartura um valor negativo. Os seguidores de Jesus deviam aceitar a pobreza voluntária (Mt 19.16-22) e se contentar com o suprimento de Deus (Mt 6.25-34). Porém, esta tentação não é o ponto mais relevante. Antes de oferecer pães, o Diabo desafia Jesus por provocação, dizendo: “Se és o filho de Deus...”. Lembremos que Deus mesmo havia dito que ele era o filho de Deus em 3.17. O Diabo questiona a sanção positiva dada por Deus, desprestigia o status de Jesus, desafia sua identidade. Por isso dizemos que aqui não temos uma tentação, e sim uma provocação. Mais do que matar a fome, Jesus poderia transformar pedras em pães para provar diante do Diabo que era o filho de Deus. Todavia, Jesus resiste à provocação, e diz que ficaria com a “palavra que sai da boca de Deus” (v. 4).
Algo semelhante acontece depois (v. 5-7). O Diabo da visão apocalíptica outra vez desafia a identidade messiânica de Jesus levando-o para o pináculo do Templo e desafiando-o a se jogar de lá para que os anjos o servissem. Outra vez, temos uma provocação, que tenta manipular Jesus desafiando seu status. Se Jesus se deixasse manipular, se atiraria para que fosse servido por anjos dando provas de sua identidade messiânica, ou seja, agiria para confirmar a imagem que o Diabo estava questionando. Novamente Jesus demonstra que não precisa confirmar sua imagem, pois isso seria duvidar da voz divina. Jesus não é manipulado porque crê na palavra de Deus sobre sua identidade, e também porque não procura ser servido, não faz questão de ser honrado. Novamente, os valores ofertados não interessam, não manipulam, pois Jesus estava no mundo para servir e não para ser servido (Mt 20.28).
Finalmente, a terceira investida do Diabo é realmente uma tentação (v. 8-10). Dessa vez ele oferece a Jesus todos os reinos da terra (os quais lhe pertencem na perspectiva mateana) se ele se prostrasse e o adorasse. O Diabo se faz neste ponto um opositor de Deus, pois quer tomar para si o “servo” que Deus há havia recrutado. Para isso ele oferece poder político, e consequentemente, riqueza. A oferta, no entanto, é desinteressante. Jesus não poderia ser tentado por tais coisas, pois como vimos, segundo seu quadro de valores a pobreza é melhor que a riqueza, assim como o serviço é melhor que o senhorio. Em resposta (v. 10), Jesus mostra que o que mais o incomodou foi a ideia de deixar de servir a Deus para servir ao Diabo, e cita um mandamento do Antigo Testamento (Dt 6.13).
O que vimos é que em nenhum momento Jesus parece ameaçado pela fartura de pães, pela honra de ser servido, ou pelo poder político. Tais tentações são enfatizadas pelos leitores de hoje porque estes valores são positivos (eufóricos) segundo seus próprios quadros de valores. Mas o ethos de Jesus é oposto, e vê honra, riqueza e fartura como valores negativos (disfóricos). Se fossem apenas essas as ofertas, as tentações do Diabo seriam superadas sem dificuldades por Jesus. Então, vemos que as verdadeiras ameaças foram outras; o Diabo atacou a fé de Jesus, e este teve que se apoiar na palavra dita por Deus em 3.17 para continuar acreditando que ele era o filho de Deus, o Messias. Assim, ao adotarmos a classificação da Semiótica Discursiva, chegamos à conclusão de que não temos somente “tentações”, mas principalmente provocações, as quais foram superadas pela fé de Jesus na palavra de Deus, e pela segurança que ele demonstra em relação a sua identidade.
O versículo 11 sanciona positivamente e pragmaticamente Jesus, o recompensa por sua grande vitória dizendo que o Diabo o deixou e que anjos o serviram. Não foi necessário provar nada, Jesus estava seguro de si, e pronto para sua missão.

Para finalizar, observemos a imagem que no começo usamos para ilustrar essa leitura de Mateus 4.1-11. As tentações do Cristo são retratadas simultaneamente pelo artista, Sandro Botticelli, no final do século XV. Jesus e o Diabo aparecem juntos em três lugares da imagem, nos cantos superiores e no centro. Cada “tentação” ou “provocação” está aí retratada, e depois, à esquerda e um pouco mais abaixo, temos o final tranquilizador da narrativa, com Jesus e os anjos. Vemos como numa só imagem o artista retratou todas as cenas, fazendo com que tenhamos uma confusão cronológica proposital, ainda que a disposição delas na imagem induza-nos a uma certa sequencialidade de leitura. Vale a pena observar também, que Jesus, o Diabo e os anjos, personagens do texto bíblico que dão nome ao quadro, aparecem em segundo plano no ponto de vista proposto pelo autor, pois a maior parte da imagem se dedica a apresentar pessoas em trajes medievais envolvidos em suas atividades. A clareza com esses são apresentados é maior, são personagens mais “redondos”, mais complexos, e parece que eles seguem em suas próprias rotinas (também religiosas) sem sequer se dar conta do que acontece acima de suas cabeças. É no alto, e num plano não tão visível, que o destino da humanidade está sendo decidido, e para essa ambiguidade que o autor quer nos chamar a atenção, nos dando o privilégio de visualizar quão paradoxal é a vida humana.
Você pode baixar a imagem para sua análise em www.wga.hu

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

OS DISCURSOS RELIGIOSOS


O objetivo desse nosso novo empreendimento é oferecer algumas definições técnicas e explicações práticas que ofereçam aos interessados nos fenômenos religiosos de modo geral, instrumentos para melhor compreendê-los, avalia-los e criticá-los. Vamos procurar entender como se constrói o discurso religioso, destacar algumas das suas principais características, e quem sabe, teremos mais condições de avaliar suas virtudes e fraquezas. Para começarmos a tratar do assunto, é necessário oferecer algumas primeiras definições, o que nos ocupará nesta primeira parte.
Quando falamos de “discurso religioso”, nos referimos ao conteúdo de qualquer ato de comunicação religiosa, sejam os sermões proferidos nos templos, sejam os textos literários sagrados como a Bíblia ou o Corão, sejam livros didáticos produzidos para “educar” prosélitos etc. Como qualquer outro ato comunicativo, o discurso religioso é necessariamente dialógico, isto é, parte de um destinador (enunciador) para um destinatário (enunciatário), e isso é verdade mesmo nos casos em que esse destinatário é meramente um sujeito imaginário. Nos livros, por exemplo, o autor oferece seus pontos de vista e suas argumentações tendo alguém em mente, mas pode ser que seu livro, quando publicado e impresso, seja lido por um público completamente diferente daquele que ele imaginou, e por isso, nem sempre a comunicação atinge seus objetivos, nem sempre é compreendida como seu destinatário pretendia que fosse.
Outro fator que é relevante em relação a essa relação “dialógica” do discurso religioso, é que ele é sempre ideológico, e de um modo não pejorativo, é manipulador. Isso quer dizer que todo discurso religioso procura convencer seu destinatário de algo, quer movê-lo, levá-lo a realizar alguma ação. Nalguns casos o discurso religioso quer levar o destinatário à conversão, à adesão de seus dogmas, seu modo de vida, seu quadro de valores. Mesmo quando algum discurso pretende meramente informar, ele informa para algum propósito prático, por exemplo, para levar o sujeito “informado” à reflexão que objetiva seu amadurecimento e consequentemente a um novo modo de viver. Com isso, não estamos querendo dizer que o discurso religioso é opressor, dominador ou coisa assim; ele pode ser, como todo tipo de discurso existente no mundo, porém, como todo tipo de discurso, ele procura atingir seu destinatário e convencê-lo.
De posse dessa informação, importa continuar investigando o discurso religioso, que na verdade são “discursos” no plural, para verificar que mecanismos eles usam para atingir seus objetivos. Podemos nos perguntar quais são os “truques” que determinado discurso religioso (que poderíamos considerar bem sucedido por ser capaz de convencer muitos destinatários seus à adesão e obediência) tem empregado? Também podemos perguntar o que falta, ou o que tem sido desinteressante noutros discursos que não conseguem convencer os outros? Logo notaremos que essa avaliação sobre os discursos de sucesso ou de fracasso podem ser bastante desonestas. Alguns discursos na verdade utilizam-se de manobras que poderíamos considerar impróprias para atingir seus objetivos, mostram-se mais agressivos, dirigem-se a públicos específicos e procuram atingi-los em suas maiores fraquezas, enquanto outro parecem mesmo desinteressados numericamente falando, e por isso mesmo são mais informativos do que convidativos. Aqui, a princípio não temos o interesse em elogiar ou depreciar qualquer discurso religioso, embora isso seja de certa forma inevitável no final das contas. Para que não nos mostremos agressivos, vamos empregar nossos conceitos e instrumentos de análise a textos bíblicos, discursos religiosos antigos que podem ser criticados de maneira mais impessoal. Mas antes, convém definir ainda o que aqui estamos chamando de “manipulação”.
Se como já afirmamos todo discurso quer nos convencer de algo ou para algo, e isso é tentar manipular o outro. A manipulação, portanto, não precisa ser imposta, não precisa ser contínua, e nem precisa ter más intenções, como poderíamos supor. Há basicamente quatro tipos de “manipulações”, identificadas e definidas nos manuais de Semiótica Discursiva. Vamos a elas:
A primeira maneira de manipular um destinatário de um ato qualquer de comunicação é chamada de “tentação”. Na tentação, o produtor do discurso tenta convencer o destinatário a fazer algo por meio de uma espécie de suborno, pela oferta de valores que este destinatário deseja. Assim, para que a manipulação seja eficaz, é preciso que a oferta seja interessante, desejável. O sujeito é levado a fazer ou a crer no manipulador para que venha a adquirir o que deseja. A tentação, portanto, é ineficaz quando a oferta não é tão desejável.
A segunda forma de manipulação é a chamada “intimidação”. Ao contrário da primeira, em vez de oferecer valores interessantes, na intimidação o manipulador ameaça retirar do seu destinatário algum(s) valor(es) que ele possui, ou acrescentá-lo valores que ele não deseja. Uma típica intimidação religiosa é a ameaça do inferno, que pode ser compreendida como a ameaça de se perder a paz, a saúde, a vida, a família etc, dependendo do contexto. O religioso assim é induzido a praticar atos que talvez não desejasse, por medo de sofrer tais consequências.
A terceira forma de manipulação é a “sedução”. Agora já não se trata de promessas e ameaças, mas de exaltações sinceras ou não, que o manipulador faz em relação às características do destinatário. O sedutor é aquele que tenta convencer o outro elogiando-o, notando ou até destacando com exagero as suas virtudes; esse ato aparentemente benévolo, indiretamente leva o destinatário a agir para confirmar os elogios feitos. Por exemplo, uma mulher pode chamar um homem para matar uma barata em seu lugar dizendo: “Eu te chamei porque você é um homem tão corajoso...”. Diante da declaração feita em relação a sua coragem, o tal homem se vê forçado a confirmar sua coragem matando a barata, para que o conceito que a mulher tem dele não seja alterado.
Enfim, também pode-se manipular alguém por meio da “provocação”. Neste caso, em vez de exaltar as características do outro, o manipular deprecia-as, e da mesma forma o destinatário se sente forçado a agir, desta vez para alterar a ideia negativa que o outro faz dele. Aproveitando o exemplo anterior, poderíamos imaginar agora que a mulher diz ao mesmo homem e na mesma situação: “Eu tenho medo de barata, mas nem sei por que te chamei, pois você também não teria coragem de matá-la”.
Na próxima seção, vamos começar nossa análise dos discursos religiosos falando sobre um texto bíblico que exemplifica muito bem esses quatro tipos de manipulações. Vamos ler o Evangelho de Mateus 4.1-11, onde encontramos uma narrativa que popularmente é conhecida como “As Tentações de Jesus”.