sexta-feira, 29 de agosto de 2008

MINHA HISTÓRIA CONTADA POR OUTROS

Sou um grande admirador do compositor brasileiro Chico Buarque, e uma das suas canções que mais me fascina dentre tantas outras geniais de sua autoria, é “Futuros Amantes”. Nela, Chico faz conjeturas sobre um possível futuro em que a cidade do Rio de Janeiro já não é habitada, mas está submersa e é então um rico campo de pesquisa científica sobre uma civilização do passado. Dentre os achados dos escafandristas que recolhem objetos nas casas há muito desabitadas, está um “amor” não vivido, que após longo tempo escondido, talvez num fundo de armário qualquer, é redescoberto para que possa, quiçá, ser finalmente desfrutado por outros amantes. Sem dúvida, esta é uma canção gerada sob uma singular inspiração, e prova da grande capacidade do seu compositor.

Mas, interpretar a belíssima canção de Chico Buarque não é o propósito deste meu texto. Acontece que motivado pela beleza da canção de Chico, passei desapercebidamente a fazer também minhas próprias conjeturas. Peço licença ao leitor para que daqui por diante, passe a expô-las.

Em meu devaneio, o lugar futuramente explorado por arqueólogos não é o Rio de Janeiro, mas a igreja da qual fiz parte por anos, localizada na cidade de São Paulo. Imaginei-a como uma preciosa descoberta arqueológica que finalmente vinha à luz depois de séculos, por que não dizer milênios. Pensei nos pesquisadores, que cuidadosamente escavariam e catalogariam cada um dos diversos objetos encontrados no interior da grande e obsoleta construção. Máquinas completamente antiquadas, instrumentos musicais que ninguém mais saberá manusear, cadeiras em abundância... estes são exemplos dos objetos que a princípio serão encontrados. Depois, automóveis surgirão da terra, material vastamente encontrado por onde quer que no futuro se escave. Finalmente, os exploradores dessa estranha civilização chegarão à parte mais rica do sítio arqueológico, a parte do prédio onde anteriormente funcionava a secretaria da igreja, a administração, a tesouraria, salas de reuniões... Mesas e gavetas tornar-se-ão, nos meses subseqüentes, objetos preciosos para a pesquisa sobre os antigos habitantes dessa terra; cada caneta ou fragmento de papel será enviado para cuidadosa análise de especialistas, que por sua vez, descobrirão, dentre os nomes mais proeminentes daquela estranha e subdesenvolvida comunidade, o meu.

Os arqueólogos não vão demorar a encontrar diversos livros, todos encadernados modestamente, atribuídos à minha autoria. Enquanto este material é encaminhado para cuidadosa análise, novos textos meus submergirão de debaixo das pedras para falar aos nossos descendentes. Dezenas de pequenos artigos sobre diversos assuntos, alguns maiores falando sobre doutrina cristã antiga, outros sobre a Bíblia, sobre a comunidade etc. Imagine comigo que agora o número de estudiosos chamados à análise desses textos e de nossa antiga cultura cresce à medida que o número de objetos também cresce. A esta altura, algumas universidades de países mais desenvolvidos já estarão pesquisando sobre os primeiros relatórios desta pesquisa, e meu nome será então citado nas revistas científicas e nas teses dos doutores. Honras póstumas não são tão bem vidas, mas... De repente, nova festa entre os pesquisadores: equipamentos moderníssimos que nem concebemos agora conseguirão acessar informações de nossos extintos computadores. Ah, então boa parte da minha obra literária deste período será completamente conhecida.

Acho que não haverá muito mais o que se escavar ali. Anos se seguirão na tentativa de reconstruir as estruturas sociais, as hierarquias eclesiais, a religião do lugar escavado. Os primeiros resultados começam a revelar o funcionamento da instituição religiosa, e por meio dos meus escritos, nascem as primeiras definições sobre aquela comunidade de fé. Contudo, intriga-me imaginar que, como a maior parte do material escrito encontrado pelos arqueólogos são meus textos, eles tentarão reconstruir em particular a minha vida, e com a ajuda de psicólogos tentarão definir minha personalidade. Escreverão que eu era um homem profundamente religioso, que dava extremo valor à doutrina da igreja, mas que por não estar preso às tradições, teria contribuído significativamente para o desenvolvimento da teologia da comunidade com minha pesquisa e idéias. Diriam, provavelmente, que eu revolucionara a forma de administração da igreja, crescendo pouco a pouco em autoridade até tornar-me ou o líder da comunidade, ou um dos líderes mais proeminentes dela. Julgariam com tudo isso que minha atividade ali durara mais de dez anos, e até aqui não teriam acertado em praticamente nada. Claro que eles não saberiam disso tão cedo, e felizes dariam seguimento às pesquisas.

Em determinado momento, surgiria uma grande barreira para a compreensão dos futuros estudiosos sobre a minha vida: notarão que minha atividade sofreu uma interrupção abrupta, e o motivo de tal parada tornar-se-á a uma das buscas mais intrigantes das ciências daquele tempo. Os meios de comunicação, semana após semana, divulgarão os novos resultados da pesquisa. Uma das primeiras hipóteses, penso eu, diria que eu teria saído da igreja para desenvolver meu trabalho nos Estados Unidos. Uma oportunidade dessas lhes pareceria natural depois de tão bem sucedido serviço local. Obviamente, como não encontrarão nenhuma evidência de que eu tenha continuado trabalho semelhante em qualquer outro lugar do mundo, esta hipótese nunca seria provada, e aos poucos cairia em descrédito. Uma segunda hipótese me apresentará como rebelde, homem agressivo com as palavras que ao invés de revolucionar a vida da igreja local, trouxe divisão ao grupo social que freqüentava. Conseqüentemente, eu teria sido banido da comunidade após caloroso debate numa assembléia solene. Neste estágio, alguns me comparariam a mártires, fazendo-me mais um herói injustiçado da fé cristã. Esta segunda hipótese, todavia, também não permanecerá por muito tempo, já que nenhum sinal de divisão ou conflito na igreja será encontrado que evidencie esta suposta saída conturbada; a própria permanência dos meus textos tratará de desmascarar a idéia de um conflito radical. Enfim, sem mais alternativas, os estudiosos mais conceituados do mundo acadêmico chegarão a um consenso e dirão que eu certamente desapareci da igreja porque morri no ano de 2008.

Claro que se o avanço das pesquisas correr desta maneira os estudiosos não terão acertado muita coisa a meu respeito. Talvez o “amor” que Chico Buarque trouxe de volta à vida seja mais fácil de reviver do que uma alma, que embora nos escombros da história pareça ser apenas mais “uma”, é mais um universo inesgotável ao mais hábil explorador.