terça-feira, 27 de julho de 2010

A MULHER QUE UNGIU JESUS – (Parte Final)

Chegamos ao último verso da perícope fazendo uma pergunta: O texto já não estava completo após a sentença do v. 11 disseminar o pensamento central jesuânico e o v. 12 responder que Jesus interpretou positivamente o ato da unção porque estava prestes a morrer? Por que existe um versículo 13? Este último versículo parece dispensável para a narrativa, mas já que ele existe, quando o lemos vemos que é marcante e o autor não o pôde descartar. Ele diz apenas isso: Em verdade vos digo: onde for pregado este evangelho em todo o mundo será falado também o que esta fez para sua lembrança.

A partir do posicionamento favorável de Jesus, sabemos que os evangelistas concordavam também com a ação da mulher, e quem melhor explica a sublime declaração de louvor de Jesus para com ela John Dominic Crossan, que em O Nascimento do Cristianismo comenta a versão marcana assim:

“Essa mulher não identificada crê nas profecias sobre morte e ressurreição de Jesus feitas por ele em Mc 8.31; 9.31 e 10.33-34. Ela crê nelas e sabe, portanto, que se não ungi-lo para o sepultamente agora, nunca poderá fazê-lo mais tarde. É por isso que recebe a espantosa declaração de louvor, sem paralelo em todo o evangelho” (p. 590).

No texto, a mulher não só quis fazer uma boa obra, ela o fizera porque acreditava que o corpo de Jesus merecia um tratamento fúnebre digno, mas crendo que ele ressuscitaria, ela não esperou sua morte para fazê-lo. Era a única chance de dar ao corpo mortal de Jesus tal tratamento, mas a atitude acima de tudo quer expressar que aquela mulher foi a única que creu em sua ressurreição antes das aparições, e creu também em sua morte, sofrendo por ele antes mesmo de sua prisão. Isso responde tudo.

A admirável hipótese proposta por Crossan, que já vínhamos apresentando ao longo da exegese, explica ainda outro detalhe, que é o fato de os sinóticos não darem nome a esta mulher. Ela diferencia-se das demais mulheres nomeadas que depois irão ao túmulo de Jesus para ungi-lo em Mc 16.1, e obviamente não o encontram lá. A intenção delas demonstra que não creram nas promessas de ressurreição como aquela mulher anônima crera. Em outras palavras, esta mulher não está entre aquelas que seguiam Jesus desde a Galiléia, pois aquelas não creram nos avisos de Jesus e sofriam pelo morto que já voltara a viver.

Outra conclusão a que podemos chegar a partir da interpretação de Crossan, é que a fé e a demonstração de gratidão dessa mulher, que era de Betânia, devem ser relacionadas à entrada de Jesus na casa do leproso Simão. Ela parece ser agora, alguém próxima ao leproso, e vendo como Simão foi tratado de modo surpreendentemente acolhedor pelo Galileu que com ele comeu, creu também em suas palavras e missão. Foi por não conter sua gratidão e fé que ela ungiu Jesus com seu valioso perfume antes de sua morte e ressurreição. O gesto inclusivo que destacamos no começo, expresso na menção à casa de um leproso como cenário para a narrativa, só faz sentido assim.

É verdade que alguns detalhes descobertos por Crossan em sua exegese a partir do evangelho de Marcos não estão tão claros em Mateus. Aqui não há, por exemplo, uma clara intenção das mulheres discípulas de ungir o corpo de Jesus após sua morte, e isso dificultaria a explicação para a omissão da identidade da mulher se lêssemos apenas Mateus (compare Mc 16.1 com Mt 28.1). Podemos supor que o próprio autor de Mateus, ao aproveitar o material marcano, não tenha notado esse detalhe enriquecedor de Marcos que distingue essa mulher anônima das demais seguidoras, porém, Mateus não tirou da perícope o principal, a fé diferenciada desta mulher, fato que a fez especial e levou Jesus a louvá-la de maneira surpreendente.

Com base na coerência dessa última interpretação, vemos a outra leitura proposta pelo evangelho de João, que destaca a ganância de Judas e diminui o ato de fé da mulher que lá ganha até um nome, como desnecessária para a interpretação dos sinóticos.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

A MULHER QUE UNGIU JESUS – (Parte XIII)

“Pois lançando este perfume sobre o meu corpo, para o meu sepultamento fez”. Este é v. 12, que com apenas uma frase encerra a fala de Jesus e uma seção da narrativa, podemos dizer que nele é que Jesus mostra a razão de sua aprovação em relação à ação da mulher mais abertamente. O Jesus do texto, como já mencionamos, sabia de sua morte próxima e vê a unção que recebeu como um ato de preparação para a cerimônia fúnebre. Lendo o texto dentro do contexto da paixão, descobrimos que agora o que está em jogo é a perseguição dos inimigos, a morte na cruz, a ressurreição... Não parece sensato nesta ocasião fazer suposições que se distanciam demais desses temas. A unção imposta a Jesus pela mulher deve ser interpretada como a preparação antecipada de um corpo para seu sepultamento, e nada mais.

Vamos nos aprofundar mais nisso fazendo uma pequena análise do contexto maior, isto é, comparando o sentido de nossa perícope com a mensagem de todo o evangelho. Este passo metodológico exige que conheçamos o livro de maneira abrangente para evitar que defendamos hipóteses equivocadas com base em poucos versículos isolados.

Com o que estudamos até aqui, diríamos que para o evangelho de Mateus como um todo, escrito quando a oportunidade de se fazer o bem a Jesus já se esgotara há décadas (80-90 d.C.), o apelo para se fazer o bem aos pobres é que está em vigor. Isso se confirma principalmente pela leitura de Mt 25.31-46 (texto exclusivo do evangelho de Mateus), onde ensina-se que a maneira de servir a Jesus no mundo agora é servindo aos “pequeninos”. Assim, quem dá de comer ao faminto, por meio dele alimenta Jesus; quem hospeda um forasteiro, dá também acolhida a Jesus; quem veste o pobre que está nu, está vestindo Jesus, e assim por diante. Não que Jesus passou a ser após a crucificação uma pessoa carente dessas coisas, o que se pretende com esse texto é transmitir toda boa ação, seja ela motivada por gratidão a Jesus ou pelo senso de responsabilidade social, às pessoas com que os leitores conviviam. Então o texto de Mt 26.6-13, onde focamos nosso estudo, não pode ser usado para se afirmar que Jesus dava pouco valor à ação social. Quando ele diz que os pobres eles sempre teriam, temos uma frase que deve ser lida a partir do momento que se passa, às vésperas da morte de Jesus. O texto está dizendo que naqueles dias, que já não existem mais, fazer o bem a Jesus era a maior de todas as prioridade; mas aquele tempo passou.

Temos que ter em mente que Jesus já não existia (ao menos corporalmente) para os leitores do evangelho, e que a ação da mulher, ainda que defendida por Jesus, não poderia ser imitada outra vez. O que se deveria imitar não é a atitude da mulher, mas sua fé, que a levou a ungir o corpo ainda vivo de Jesus.

A principal pergunta a ser respondida pela exegese era exatamente esta: Mateus 26.6-13 diminui a responsabilidade social do leitor? A resposta é não. A seguir, vamos encerrar finalmente nossa exegese falando de seu último versículo.

segunda-feira, 12 de julho de 2010

A MULHER QUE UNGIU JESUS – (Parte XII)

Quando nas postagens anteriores falamos da creia como o modelo literário adotado pelo autor para construir a narrativa da unção de Jesus em Betânia, afirmamos que a sentença ou máxima conclusiva deta creia estava concentrada no v. 11, e que esta, na versão de Mateus, possui características da poesia semítica. Comprovar essa afirmação exige de nós, exegetas, uma análise das formas, do paralelismo utilizado na construção de tal sentença, que dá à máxima o dito semitismo. Vejamos as diferenças e semelhanças dessa sentença no quadro abaixo, e notemos como estas destacam a “oportunidade” reduzida de se fazer o bem a Jesus, motivo pelo qual o ato da mulher foi aprovado por Jesus:

pois

sempre tendes

os pobres

convosco

mas

nem sempre tendes

a mim

convosco

Se lermos a mesma passagem na versão de Mc 14.7, veremos que ali esta questão da oportunidade é ainda mais clara, pois está escrito também “... e quando quiserdes podereis a eles fazer bem...”. Parece-nos, também com base no quadro acima, que a motivação do autor de Mateus para eliminar tais palavras se deve apenas às suas preferências formais, ou seja, ele as excluiu para criar um paralelismo semítico neste ponto, fortalecendo as palavras de Klaus Berger citadas anteriormente sobre as possibilidades das sentenças das créias judaicas. Concluímos que consciente de que estava trabalhando sob uma créia, o evangelista deu destaque à sentença que responde os discípulos e apóia a mulher, fazendo dela uma espécie de dito sapiencial das vésperas da Paixão Cristo que saltava aos olhos semíticos pela sua repetição poética.

terça-feira, 6 de julho de 2010

A MULHER QUE UNGIU JESUS – (Parte XI)

Na definição breve de Archibald M. Woodruff, “Uma créia é uma anedota curta, em que um personagem de destaque age e/ou fala em uma maneira memorável”; e nas palavras de Paulo R. Garcia, “A creia tem como finalidade apontar uma lição, através de uma fala ou de um evento da vida de uma personagem”. Com base em tais definições, procuraríamos em nossa perícope por essa tal máxima que critica valores tradicionais nas palavras de Jesus, e entenderíamos a ação da mulher e a crítica dos discípulos como a situação criada para conduzir a créia a seu objetivo.

A tal sentença ou máxima conclusiva está, em nossa opinião, concentrada no v. 11, mas antes de falarmos sobre ela, vejamos algo mais que Klaus Berger acrescenta à definição das creias e que nos servirá a seguir: “De acordo com a forma da créia clássica, a resposta (ou parte dela) muitas vezes é formulada como uma gnome (máxima) ou sentença [...] Aí o horizonte judaico das créias se manifesta. Nas creias pagãs estão nesse lugar sobretudo citações de Homero”. Então, a partir das palavras de Berger, imaginamos que um autor de origem judaica, conhecedor das tradições religiosas de Israel e também das memórias de Jesus de Nazaré, letrado no idioma grego e envolvido num ambiente helenizado (como é o caso do autor de Mateus), poderia não só compreender o uso do gênero creia como também aplicar uma máxima sapiencial jesuânica como seu ensinamento principal. Assim podemos explicar a narrativa da unção em Betânia, seja na versão marcana ou na mateana, como uma creia que recebe uma máxima jesuânica e um contexto narrativo próprio da paixão de Cristo.

O autor de Mateus parece ter compreendido bem o uso marcano da créia, mas foi mais semítico em sua redação, como atesta o arranjo dado em sua versão para moldar a sentença do v. 11 em estilo poético judaico. No v. 10 Jesus abre sua fala acusando os discípulos com uma pergunta, dizendo que com o que diziam eles causavam aborrecimento, molestavam ou afligiam aquela mulher. Em seguida, no v. 11, Jesus rebate o argumento dos discípulos de que era melhor ter vendido o perfume para dar seu valor aos pobres através da sentença decisiva: “Pois sempre tendes os pobres convosco, mas a mim nem sempre tendes”. As palavras de Jesus na verdade não negam a necessidade de se ajudar os pobres, e até confirmam o que acima dissemos, que o Movimento de Jesus era formado e cercado por pessoas despossuídas e carentes de todo tipo de ajuda. A defesa da mulher concentra-se mesmo na “oportunidade, ou seja, os pobres temos a vida toda para ajudar, mas não há muitas oportunidades para se fazer o bem a Jesus, posto que como sabemos, ele estava prestes a ser assassinado.

A MULHER QUE UNGIU JESUS – (Parte X)

Continuamos estudando Mateus 26.6-13, agora chegando ao v. 10, que já começa nos mostrando que a opinião de Jesus não está alinhada às palavras dos seus discípulos. Literalmente o texto diz: “Porém, Jesus conhecendo, disse-lhes:”. O particípio do verbo saber/conhecer (gnósko), outro acréscimo mateano à sua fonte marcada (Mc 14.6), passa-nos o sentido de que Jesus então ficou sabendo do que os discípulos diziam entre si. Quer dizer que há outro ponto negativo na fala dos doze que é o segredo, ou a não transparência de suas posições. É como se notassem a omissão de Jesus em relação à ação da mulher como aprovação, tecendo então seus comentários maliciosos “pelas costas”. Na versão mateana eles não expuseram sua fala abertamente, mas murmuravam entre si e assim assemelharam-se aos inimigos de Jesus que criticavam-no entre si mas sempre perdiam quando com ele debatiam. Porém, de alguma forma não revelada no texto Jesus toma conhecimento do que eles estavam dizendo e responde, dirigindo-se exclusivamente aos discípulos.

Agora cabe uma observação mais técnica. Esta perícope de Mateus foi classificada como sendo uma créia por Klaus Berger, gênero conhecido através dos tratados gregos de retórica que apresenta uma máxima pronunciada pelo personagem principal em resposta a uma determinada situação. Como esse assunto de estudo do gênero literário usado pelo autor será mais trabalhoso, deixo-o para a próxima postagem, que exigirá de todos nós maior dedicação.