segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

SALMO 126 - CÂNTICO DE TRANSPARÊNCIA E FÉ

Não sei dizer desde quando identifico-me de maneira especial com o Salmo 126, mas já faz anos que tenho-o como meu salmo preferido, e releio-o eventualmente sempre cheio de emoção pelo que seus dizeres me transmitem. Só agora resolvi escrever algumas das minhas meditações sobre este salmo para que outros também possam com ele se deleitar, então fiz uma tradução própria do salmo a partir da Bíblia Hebraica, e é com base nela que vou expor aquilo que tanto me fascina neste salmo, procurando fugir tanto quanto possível do linguajar técnico a que nos submetemos nas academias, que em vez de tornar o conteúdo claro, obscurece-o para aqueles que não convivem entre os doutores.

Comecemos então pelo texto. Antes de lê-lo, saiba o leitor que eu procurei mantê-lo bem literal, ou seja, tão fiel ao original quanto possível. Talvez tal fidelidade torne o texto um pouco mais difícil, e com certeza o fará parcialmente diferente do que habitualmente encontramos nas Bíblias em língua portuguesa, todavia, essa opção mostrar-se-á de grande valor para nossa interpretação.

SALMO 126

1. Canto de subida (de peregrinação)

Quando Javé fez Sião voltar do cativeiro foi como se nós (estivéssemos) sonhando.

2. Então, nossa boca foi cheia de riso, e nossa língua de júbilo.
Então diziam nas nações: Grandes coisas Javé (está) para fazer com estes.

3. Grandes coisas Javé (estava) para fazer conosco; ficamos alegres.

4. Faz voltar nossa sorte Javé, como as correntes do Negueb.

5. Os que vão semeando com lágrimas, com júbilo colherão.

6. (Quem) vai andando e chorando levando o saco (de sementes), certamente virá com gritos de júbilo trazendo seus feixes.


1 – Parecia uma Grande Bênção
A primeira parte do Salmo 126 está, na minha opinião, entre os versículos 1 e 3. Assim, nos dedicaremos primeiro a esta seção individualmente.
O salmo começa com um título: “Canto de subida”, que é significativo para que entendamos o propósito do autor. O mesmo título pode ser encontrado em todos os salmos de 120 a 134, que formam um conjunto de textos que possuem algumas características peculiares. Cantos de subida ou de peregrinação eram nada mais que canções compostas especialmente para serem entoadas durante a peregrinação dos judeus até Jerusalém, onde celebravam suas festas religiosas. Como era de se esperar, estes salmos falam, dentre outras coisas, do Templo em si e da alegria de celebrar na casa de Deus (Sl 122.1; 132.7-9), no monte santo do Senhor (Sl 121.1; 125,1-2); falam de como Deus respondia às orações e de como é de Jerusalém que eles acreditavam que ele se manifestava a seu povo (Sl 128.5; 132,13-14; 134). Vindos de toda parte, os judeus faziam soar em todo o país nos dias de festas os seus cânticos de louvor, essas melodias hoje desconhecidas. Elas preparavam os corações para os esperados momentos de alegria, comunhão e culto. A peregrinação de famílias inteiras até Jerusalém por causa da sua fé é, portanto, o que devemos ter em mente enquanto lemos o salmo.

Após o título, o primeiro versículo completa a tarefa de nos informar sobre o momento histórico em que este salmo foi escrito. Ele diz que os cativos já haviam voltado para Sião. Se temos um salmo de peregrinação, sabemos que existia um Templo religioso em atividade, e se os cativos já voltaram, estamos no período pós-exílico. Este Templo tão mencionado nos salmos de subida era o Templo edificado pelo povo conforme nos informa o livro de Neemias. Ele não era tão belo e portentoso quanto o Templo de Salomão, destruído quando os Babilônios conduziram Judá ao exílio, mas era eficiente em seus serviços. Isso, porque na maior parte do tempo a religião oficial de Israel era controlada pelo Estado, pelo rei, e servia-lhe mais como instrumento de dominação e extorsão do que como instrumento de adoração e intercessão em favor do povo. Agora, após o exílio, não havia um poder estatal estruturado capaz de controlar a religião oficial desta forma, o que dava ao povo total controle sobre as atividades desse novo e humilde Templo.

Na Bíblia, a diferença entre o Templo pré-exílico e o Templo pós-exílico é facilmente identificável nos livros dos profetas. Os primeiros grandes profetas como Elias e Isaías, viveram antes do exílio e acirradamente acusavam os reis e condenavam a religião nacional, anunciando que Deus acabaria por destruir essas monarquias e seus edifícios religiosos que patrocinavam a opressão do povo. Todavia, profetas pós-exílicos como Malaquias possuíam opiniões absolutamente diferentes; eles tinham diante de si um novo Templo, construído e administrado pelo próprio povo. Por isso o apoiavam e incentivavam a fidelidade do povo ao mesmo.

Pois bem, o exílio na Babilônia ocorreu entre 597/587 e 539 a.C., e a inauguração do novo Templo se deu 515 a.C. Nossos salmos de subida são então, provavelmente produções do final do sexto e do quinto séculos a.C. No primeiro versículo de Salmo 126 o autor se refere à volta do exílio em 539 a.C., e fala como se fora testemunha ocular dos acontecimentos, como se estivesse entre os cativos que viajaram de volta à já esquecida terra natal. Ele diz que para aqueles que voltavam, isso era como um sonho. Sim, eles não podiam acreditar que de uma hora para outra, o império babilônico fora derrotado pelos persas, que decidiram repatriar aquele povo. Eles não podiam dar outro motivo para isso, era um milagre, obra de Javé.

No versículo 2 o autor dá ênfase ao sentimento de euforia que sentiram através de uma tradicional estrutura de paralelismo. Ele repete a mesma frase com sinônimos, para expressar enfaticamente e com o estilo poético mais elegante da sua língua, como ele e seus patrícios estavam felizes quando ganharam a liberdade

Na segunda parte do versículo 2, o leitor que conhece bem o Salmo 126 deve ter notado que minha tradução difere das traduções comumente encontradas nas Bíblias. Eu escrevi: “Grandes coisas Javé (está) para fazer com estes”. Primeiro, o verbo entre parênteses está subentendido, ou seja, não existe no texto hebraico. Mas isso não é raridade, ocorre com muita freqüência e cabe ao tradutor e interprete escolher o tempo verbal de acordo com o restante do texto. Deixei o verbo no presente, embora isso faça a minha tradução diferente das demais, porque logo a seguir no texto hebraico temos um verbo no infinitivo com uma preposição (la‘asot), cuja tradução mais óbvia é “para fazer”. Portanto, a opção dos tradutores normalmente é alterar o texto hebraico para chegar à “fez”, eu todavia, preferi manter o infinitivo e tive de acrescentar o verbo estar para dar sentido ao texto. Mas este não é o único motivo que me levou a traduzir o texto assim, no entanto, deixemos este outro motivo para outro momento.

No versículo 3, o mesmo problema com a tradução se repete. Aqui, porém, o verbo estar que está subentendido foi deixado no pretérito: “Grandes coisas Javé (estava) para fazer conosco”. O verbo fazer outra vez foi mantido no infinitivo seguindo aos mesmos critérios adotados no versículo anterior, diferentemente do que ocorre na versão “Almeida Revista e Atualizada” (RA), que traduz de maneiras diversas o verbo que é idêntico nos versículos 2 e 3 no texto hebraico.

Deixando agora de lado esse problema de tradução e voltando a falar do conteúdo, temos que o autor do salmo, nesta primeira parte, traz à lembrança dos adoradores que peregrinavam para Jerusalém a marcante volta do exílio, e descreve com grande beleza o sentimento de alegria que os libertos experimentaram naqueles dias. Entretanto, segundo a minha tradução, o autor descreve a alegria de um povo que estava a caminho, ansiosos por vislumbrar (pela primeira vez para a grande maioria) a terra que seus pais foram forçados a abandonar. Segundo o autor, tanto os ex-exilados que caminhavam como também os estrangeiros que viam tal peregrinação ficavam admirados, e tinham a expectativa de que Deus faria coisas grandes por aquele povo. Aquela libertação era, aos seus olhos, apenas o começo de um grande milagre. Por isso, na minha opinião, a melhor maneira de traduzir o texto é dizendo que Javé estava para fazer grandes coisas por eles. O salmista não queria afirmar que Javé fez tais coisas, mas expressar a esperança que eles tinham naquele momento com base na libertação; ao menos é assim que eu entendo este texto.

2 – A Oração de um Decepcionado

O salmo muda radicalmente no versículo 4. O autor parece fazer uma breve oração, um pedido que pode, à primeira vista, parecer completamente contraditório com o que fora dito nos versículos anteriores. Ele pede para que Deus os restaure, para que faça mudar a sorte deles. Isso quer dizer, que após a libertação e a expectativa de que agora Deus faria grandes coisas em favor deles, houve uma decepção, o que motiva a oração do salmista peregrino.

Essa interpretação é facilmente confirmada se voltarmos por alguns momentos nossos olhares para a história de Israel. Jerusalém e o Templo de Salomão foram deixados em ruínas quando os babilônios os dominaram e levaram toda a elite do povo cativa. A visão daqueles felizes libertos quando chegavam em Jerusalém deve ter sido desanimadora. Não havia ali nada que lembrasse a glória da cidade que seus pais lhes contavam. Na verdade, a Babilônia passou a ser um habitat muito mais saudável para eles, que ao longo dos anos, já haviam ali se estabelecido. Sabe-se que foi grande o número de judeus que optou por manter suas vidas na antiga cidade de exílio em lugar de se mudar e trabalhar na reconstrução da terra dos seus antepassados.

Agora é possível compreender porque deixamos nossa tradução tão diferente das demais. O salmista, se foi realmente uma testemunha ocular dos fatos que descreve, se esteve realmente entre os que voltaram do exílio, passou por um período de grande euforia até que finalmente chegou à desolada cidade de Jerusalém. Ali ele via que na realidade, o sonho não era tão bonito assim, e deve ter sido difícil encontrar ânimo para começar a lenta e difícil restauração. Esse homem chocado com a realidade dificilmente faria uma afirmação como aquela do versículo 2, onde até nas nações dizia-se que Deus fizera grandes coisas por eles. Não, Deus estava para fazer, mas ainda não fizera. A libertação era um milagre para eles, mas era apenas o começo de algo muito bom que provavelmente ainda estava por vir.

Justifica-se assim a oração feita no versículo 4. Decepcionado com a realidade, o salmista que antes cantava jubiloso agora clama por restauração. Só mesmo Deus para transformar aquele grande monte de entulho em algo digno novamente. Ele emprega as correntes do Negueb poeticamente, deseja que assim como os leitos d’agua normalmente secos tornam a se encher após as chuvas de inverno, que a sorte volte aos filhos de Israel trazendo vida.

Se estamos enganados quando dizemos que o autor não afirma que Deus fez coisas grandes por eles, mas que estava para fazer, como se explica a oração do verso 4? Por que se pede restauração se o Deus já fizera coisas grandiosas? Alguns intérpretes, baseando-se nas traduções mais populares em língua portuguesa, pensam que a sorte a ser restaurada como as correntes do Negueb se refere a um número maior de exilados que o autor desejava que voltassem para a terra natal, assim como o primeiro grupo. Contudo, mesmo que este fosse um desejo do autor após a reconstrução do Templo, o anseio por ver sua cidade reedificada, sua casa de pé, seu campo cultivável, era sem dúvida a sua prioridade. Este era, acredito, o motivo da oração das primeiras gerações de judeus que voltaram do exílio. Mesmo após a reinauguração do Templo, não podemos duvidar de que o país ainda devia apresentar um cenário de desolação, que faz jus à oração que lemos. Levaria ainda um século para que a Palestina e seus habitantes desfrutassem de certa ordem, reestruturada politicamente sob a hegemonia dos administradores do Templo.

3 – Uma Promessa que Alimenta a fé

A última parte do Salmo 126 também está estruturada em forma de paralelismo. Os dois versículos praticamente dizem uma só coisa, que quem sai ao campo triste para semear, não deixa de colher com alegria. Ele fala do que era bem peculiar àquele povo que vivia do trabalho nos campos; todos sabiam que quem semeia espera colher do que plantou. Mas, com base no que acima o salmista já dissera, entendemos que o ato de semear aqui é empregado de forma analógica, e serve como uma promessa que tem por finalidade dar ânimo aos peregrinos do humilde Templo.

Mediante a própria decepção com a cidade desolada, o salmista escreve para que seus compatriotas creiam que trabalhar na reconstrução do país é um esforço que será recompensado. Era o momento de chorar, de derramar lágrimas pela cidade em ruínas, mas sem deixar de trabalhar, de semear. Ao comparar esse ato de fé e sacrifício a ao ato de semear, o autor expressava que eles deveria também crer que todo suor derramado seria recompensado; a colheita era garantida. Em outras palavras, o direito de desfrutar da liberdade na própria pátria, de cultivar a própria terra e dela viver, a oportunidade de criar os filhos entre sua parentela, sob a própria cultura, adorando o Deus dos seus antepassados da maneira como sempre acharam correto, e não mais ter de curvar-se aos deuses ou aos opressores estrangeiros, era o que eles teriam após concluir o árduo trabalho de restauração do país.

Enfim, o salmista aqui canta para dar força aos seus companheiros de peregrinação. Ele lembra da sua libertação, da sua alegria passageira, da sua surpresa desanimadora diante do cenário de morte deixado pelos babilônios décadas atrás nas cidades dos seus pais. Então, provavelmente em pleno processo de restauração do país, ele vai à casa de Deus acompanhado dos seus familiares. Dentre seus muitos motivos de oração, está o desejo de que sua terra volte finalmente a ser digna como lhe contavam os ancestrais. Pede a Javé que lhes ajude na missão de transformar os entulhos deixados pelas batalhas em uma nação livre e próspera. E acredita, apesar de todas as dificuldades que se apresentam, que no fim eles finalmente encheriam suas bocas com um júbilo que não precisa terminar.

4 – Conclusão

O Salmo 126, visto pelo ângulo proposto nos ensina, assim como a maioria dos salmos bíblicos, mais sobre os homens em si do que sobre Deus. Os salmistas usavam suas canções como um meio de abrir o coração diante de Deus, e expressavam seus sentimentos com uma sinceridade que noutras partes da Bíblia não é comum. Eles deixam transparecer o ódio, a angústia, a fraqueza, a esperança e também a falta dela. Os salmos são exemplos de orações que merecem ser seguidos, pois neles, a linguagem poética ou o formalismo não impedem a honestidade, a transparência diante do Deus a quem cultuavam.

Neste salmo, vimos que o salmista pensava que Deus estava fazendo um grande milagre. Mas o milagre, se houve, não era como ele esperava. A vida não foi para ele tão bela como gostaria. Na verdade, a história mostra que o Templo a que ele dedicava-se voltou a ser instrumento de opressão dos mais fracos, e usurpou milhares de camponeses até que novamente acabou em ruínas; a história mostra que outros impérios voltaram a dominar violentamente aquele povo, e com crueldade que provavelmente o próprio salmista não conhecera nem na Babilônia; a história nos mostra que outros males importados como a lepra e a escravidão sob os moldes greco-romanos tornar-se-iam maldições ainda mais difíceis de suportar do que a visão das cidades arruinadas. Ainda assim, cabe a nós seguir o exemplo do salmista. Não conhecemos os dias que virão, não sabemos se realmente as opressões que nos são impostas cessarão neste mundo, se haverá um tempo em que gozaremos de justiça, paz e prosperidade; mas o que faremos se não semearmos nossas lágrimas com a fé de que colheremos com alegria? O que seria de nós se não cultuássemos nosso Deus e se não tivéssemos nele alguém a quem clamar?

Nossas canções, nossas orações e nossos textos, poderiam ser muito mais úteis se neles deixarmos transparecer nossa humanidade. Por que temos medo de falar quando os milagres não são tão bons quanto pensávamos? Por que calamos quando a realidade contradiz o discurso tradicional da fé cristã, como por exemplo, quando a vida no casamento é uma infelicidade ou quando nossos instintos nos levam a desejar a vingança e até mesmo a violência? Por que não reconhecemos que na verdade sabemos pouco ou mesmo nada de Deus e sua vontade? Se os autores “inspirados” da Bíblia assim fizeram com tanta honestidade, como eu poderia pensar que sei das coisas e tentar parecer perfeito?


Anderson de Oliveira Lima – 9 de Janeiro de 2009