terça-feira, 19 de junho de 2012

O SUJEITO TEOLÓGICO


A fim de aprofundar os conceitos anteriormente expostos sobre a teologia e seu lugar no ambiente acadêmico e religioso, seguiremos desenvolvendo o tema a partir de um novo modo de ver. Procuraremos definir o “Sujeito Teológico”, que é um sujeito ideal e imaginário, que possui as principais virtudes que defendemos; ele será construído a partir da comparação didática com outros sujeitos estereotipados que criamos, o “Sujeito Religioso” e o “Sujeito Científico”. Tais personagens são fictícios, representam posições extremas, baseadas na união de características observáveis individualmente em sujeitos concretos. Por incluírem em suas descrições virtudes e defeitos presentes nos diferentes grupos sociais que observamos e para os quais atuamos, estes “sujeitos” podem nos ajudar a refletir sobre o posicionamento do teólogo no mundo atual, nos levando à reflexão construtiva.

O Sujeito Religioso: Comecemos definindo o “Sujeito Religioso” como aquele que usa a fé para interpretar o mundo. O “Sujeito Religioso” é fundamentalista, assume como verdades inquestionáveis os elementos de fé que assimilou, e julga tudo o que o cerca a partir de seus próprios dogmas. Como não podia deixar de ser, o “Sujeito Religioso” não está aberto ao diálogo quando qualquer de seus dogmas religiosos é questionado, e embora saibamos que tais dogmas são aceitos pela fé e estabelecidos pela autoridade religiosa, para este sujeito eles possuem mais valor ou são mais seguros do que qualquer resultado da aplicação de métodos científicos empíricos. Como resultado, o “Sujeito Religioso” vive em constante conflito com a racionalidade científica, que sempre está em transição ao oferecer novas formas de entender o mundo.
Dentre os muitos elementos negativos que resultam da postura fundamentalista, poderíamos destacar algumas que estão bem presentes em nosso cotidiano. Por exemplo, o “Sujeito Religioso” constrói sua identidade criando fronteiras imaginárias os homens, cria grupos antagônicos baseados principalmente na opção religiosa de cada um, e isso pode acabar por autorizar conflitos entre o “nós” e o “eles”. Muitas “guerras santas” tiveram seus reais interesses mascarados religiosamente, e mesmo quando a violência não é uma opção, a discriminação, a intolerância e o desrespeito para com as diferenças pode ser uma realidade. Assim, o “Sujeito Religioso” costuma rotular os grupos sociais, geralmente dividindo o mundo em duas partes, a dos “santos” e a dos “pecadores”, a dos “irmãos” e a dos “mundanos”, a dos “filhos de Deus” e a dos “filhos do Maligno”... Tudo isso reflete uma visão limitada do mundo, uma leitura condicionada pelo dogma que resulta no desconhecimento do outro.
Além de dividir a espécie humana em duas partes, também podemos constatar que o “Sujeito Religioso” mantém essa ótica dualista de mundo (céu e terra, bem e mal), em outras instâncias da vida. Para alguns deles, a terra é um terreno tenebroso, amaldiçoado, destinado à destruição. Não surpreende que para os tais, toda a materialidade é tratada com desprezo, e que o “Sujeito Religioso” negligencie seu papel na preservação da natureza, sua responsabilidade na ordem política, sua importância no âmbito social. Estes “desajustes” não são para ele meramente resultados da ação humana irresponsável, mas efeitos irreparáveis da criação, e a solução para tais desajustes está na expectativa de intervenções divinas, e isso em termos bem mitológicos. Se para esse tipo extremo de “Sujeito Religioso” a ordem problemática do mundo não é um problema cuja solução necessite de sua participação, é claro que outros desajustes sociais também ganham legitimação religiosa, e que os tais resistem às mudanças. Assim, a fé mantém sistemas opressivos, incentiva a hierarquização humana, a desigualdade socioeconômica, o machismo, a repressão contra a liberdade filosófica...
Como já dissemos, nosso personagem chamado “Sujeito Religioso” reflete uma leitura extrema que fazemos de sujeitos concretos que usam os dogmas religiosos como critério para interpretar o mundo. O que importa é afirmar que esta posição, mesmo que não assumida de maneira tão radical, não é a que consideramos ideal para o “Sujeito Teológico” que procuramos formar. O discurso do sujeito religioso é abrangente para o fiel em termos cosmológicos, porém ineficaz em seus efeitos práticos e na sua influência externa. Sua fundamentação religiosa e resistência injustificada para com a racionalidade científica é vista como postura antiquada, como elemento limitador para sua visão de mundo, e com efeito, tal discurso possui alcance restrito, fica preso ao círculo de uma mesma confissão religiosa, e produz poucos resultados para além do indivíduo e seu grupo mais íntimo.

O Sujeito Científico: Em radical oposição ao anterior, o “Sujeito Científico” ou racional é aquele que assume a ciência e seus métodos como elemento capaz de explicar o mundo. A sua suposta racionalidade empírica, todavia, resulta numa forma invertida de fundamentalismo, onde a “ciência” assume mesmo poderes sobrenaturais e concentra todas as esperanças do indivíduo. O não reconhecimento das limitações inerentes à racionalidade científica é também uma forma de dogmatismo, tão cega quanto qualquer fanatismo religioso, pois o cientista contemporâneo deve saber das limitações dos seus métodos, da subjetividade das suas escolhas e leituras, e da transitoriedade dos resultados da sua ciência.
            Como acontece com o “Sujeito Religioso”, o “Sujeito Científico” acaba rotulando os seres humanos. A princípio, podemos supor que seu critério de avaliação seja o conhecimento, todavia, em muitos casos a opção religiosa é o elemento utilizado para tal classificação. Desta maneira, pode o “Sujeito Científico” agir de maneira contrária à sua racionalidade ao considerar o indivíduo religioso sempre um ignorante, antiquado, infantil... Portanto, a racionalidade desse tipo não é capaz de pôr fim aos preconceitos e às falsas fronteiras que dividem a humanidade em nosso imaginário.
            Além do que já foi dito, o “Sujeito Científico” pode ser caracterizado pelo pragmatismo que condiciona suas ações. Ou seja, todo seu empenho está baseado na necessidade, na demanda, e sua ciência como instrumento para ler o mundo acaba servindo como um facilitador para nossa cultura de consumo. O “Sujeito Científico” emprega seu tempo e pesquisa tendo em vistas o resultado prático e lucrativo, e a religião naturalmente será um produto cultural de importância relativa. Não é fácil notar que em todo esse processo produtivo existe uma carência de fundamentação ética, a qual é substituída por leis e ameaças, cujos resultados em nossa sociedade já demonstram sua insuficiência. Mesmo assim, o “Sujeito Científico” continua acreditando na racionalidade, na sociedade perfeita que é construída por meio da democracia e de códigos legais mais abrangentes. Se o sistema não funciona, a culpa é dos seres “não racionais”, que votam por motivos religiosos, que por ignorância não entendem nem obedecem as normas estabelecidas.
            Sem dúvida, o discurso do “Sujeito Científico” parece mais atual, porém, ainda se mostra inocente quando não sabe reconhecer sua insuficiente e não é capaz de reconhecer o valor de explicações alternativas para a existência. Por mais atualizado que seja cientificamente, ele continuará sem respostas para antigas crises existenciais dos seres humanos, e naturalmente, essa lacuna continuará sendo preenchida pela mitologia, linguagem que continua sendo de domínio religioso.

O Sujeito Teológico: Diferente dos outros sujeitos descritos, o “Sujeito Teológico”, que não precisa necessariamente ser um teólogo, é aquele que sabe articular o conhecimento religioso e científico, tirando de ambos os elementos necessários para interpretar o mundo. Noutras palavras, ele é alguém que assume a racionalidade científica e suas explicações, mas que não considera isso um empecilho para a fé que é necessariamente não empírica.
            Pode parecer estranho, mas o “Sujeito Teológico” é capaz de assumir Deus como uma hipótese plausível, como o elemento capaz de explicar o que não pode ser explicado cientificamente. Porém suas definições religiosas não admitem dogmatismos. Por estar em conformidade com a evolução da racionalidade científica, o “Sujeito Teológico” entende que por vezes é necessário reformular sua hipótese religiosa, conformando sua fé às conclusões científicas que lhe parecem seguras. Logo vê-se que o “Sujeito Teológico” não é necessariamente um indivíduo religioso, embora possa se manter participante de atividades rituais. Diferente dos outros sujeitos fundamentalistas que descrevemos, o “Sujeito Teológico” está consciente das limitações de seu conhecimento, da transitoriedade de seus pressupostos, e assim se transforma em alguém mais tolerante, que não julga necessário “converter” o outro às suas hipóteses.
            Outra virtude do “Sujeito Teológico” é que ele, por não fazer da religião o fim último de sua ação no mundo, atua de maneira mais eficaz sobre a realidade do que o “Sujeito Religioso”. Todavia, diferente do “Sujeito Científico” que se caracteriza por um pragmatismo consumista, o elemento religioso lhe oferece padrões éticos que o envolvem numa missão de caráter mais humano, permeada por valores que só se justificam através da fé. O “Sujeito Teológico” se torna, dentre os três estereótipos criados, o mais eficaz quando pensamos em temas como o da “consciência ecológica”, quando empreendemos ações sociais que visam alcançar o próximo em sua integralidade, ou quando falamos de verdadeiro ecumenismo.
            O discurso do “Sujeito Teológico”, por conta de tudo o que já dissemos, é o mais maleável. Este sujeito é capaz de dialogar com competência dentro dos meios acadêmicos, pois valoriza a educação formal e pode possuir as competências adquiridas nas instituições de ensino, mas ele não deixa de ser relevante nos círculos religiosos, onde pode se transformar no grande responsável pela transformação social.

sexta-feira, 15 de junho de 2012

O JEJUM E OS DOIS TEMPOS: PROPONDO SOLUÇÕES PARA UM TEXTO DIFÍCIL (MATEUS 9.14-17)


Com frequência textos bíblicos que já lemos dezenas de vezes acabam, num dia qualquer, nos deixando conhecê-los de uma maneira nova. Isso me aconteceu ontem, enquanto lia o Evangelho de Mateus com meus companheiros de estudo do ICEC. Esta postagem traz o resultado essa nova leitura, e propõe soluções que eu mesmo não conhecia para um texto que geralmente não é bem compreendido. Propor novas soluções interpretativas para textos difíceis é uma responsabilidade que nos convida.

O texto dá continuidade à discussão sobre a dignidade dos discípulos de Jesus, que se dava nos versículos anteriores. Foi demonstrado que Jesus escolhia discípulos dentre grupos marginalizados, convida um coletor de impostos para ser um apóstolo (9.9), e tinha comunhão com pessoas que os religiosos em geral condenavam (9.10-13). O Evangelho de Mateus então passa para a discussão sobre o jejum (v. 14-17), que não trata tanto do jejum em si, tema que já foi abordado com mais detalhes em Mateus 6.16-18, mas do modo de vida praticado pelos seguidores de Jesus, o que nos faz lê-los como continuidade ao tema anterior.
O tema é introduzido pela pergunta dos discípulos de João, que são um “personagem coletivo” que representa uma forma de religiosidade distinta. Eles querem saber por qual razão Jesus e os discípulos não jejuam, o que não quer dizer que o evangelho seja contrário ao jejum (v. 14). Os seguidores de Jesus são comparados aos próprios discípulos de João e aos fariseus, e é bem possível que essa resposta tenha uma motivação histórica, isto é, procurava explicar uma contradição real que fora notada entre a prática religiosa dos seguidores de Jesus da geração mateana (anos 80 a 90 d.C. aproximadamente), e a conduta que teria sido própria de Jesus e seus primeiros discípulos.
Jesus responde aos que o questionam com uma metáfora (v. 15), propondo dois tempos distintos, dois personagens, e duas expressões de sentimentos através de ações. Os tempos colocados são: o “durante o casamento”, e o “depois do casamento”. Os personagens apresentados na metáfora são: o “noivo” e os “convidados do noivo”. E as expressões de sentimentos opostos são a “alegria”, própria do primeiro tempo em que a festa de casamento ainda acontece e o noivo está entre os convidados, e o sentimento de “tristeza”, que convém ao tempo em que o noivo já não está com eles e a festa está terminada. Deixando a metáfora e voltando ao tempo da narrativa, Jesus então fala de seu próprio futuro dizendo que ele, como o noivo da metáfora, não estaria com seus discípulos no futuro. Assim, entendemos que os dois tempos aos quais ele refere são o do ministério de Jesus e o tempo posterior à sua morte, quando sua presença física já não seria experimentada. Se Jesus é o noivo, os discípulos são os convidados, e se os dias de Jesus são dias de alegria e festa, o tempo posterior seria de tristeza e jejum.
Mas a leitura não fica mais fácil depois disso. Nos versículos seguintes (v. 16-17) temos dois ditos populares cujo entendimento é difícil. Eles tratam de questões do cotidiano do leitor implícito, de peculiaridades sobre costura, tecidos e vinhos, e nós dificilmente compreendemos o que esses elementos realmente significam a não ser que nos empenhemos em pesquisas e confiemos na opinião de outros autores. A falta de clareza dos signos para os leitores modernos cria verdadeiras lacunas no discurso, as quais que são preenchidas com facilidade pela imaginação. Por isso mesmo esses dois versículos costumam ser lidos alegoricamente e aplicados a diversos contextos diferentes e distantes àquele que o próprio texto os quer aplicar. Ao menos sabemos que a leitura desses dois ditos está condicionada aos versículos anteriores e à metáfora do casamento, e tanto lá quanto aqui a questão da oposição entre dois tempos distintos e dos respectivos comportamentos permanece. Com isso, podemos dizer com alguma segurança que a perícope toda, que une essas unidades textuais de provável origem independente, nos quer ensinar que para cada tempo temos as práticas devidas. Pensando outra vez na pergunta dos discípulos de João, diríamos que existem dois tempos em pauta, aquele em que o noivo ainda está presente, e o tempo de sua ausência. Analogicamente, a resposta de Jesus antecipa sua morte e diz que a vida dos discípulos também pode ser dividida em dois tempos, o tempo com Jesus, e o tempo sem Jesus. Para cada uma dessas fases há condutas ideais, ilustradas pelos exemplos dos tecidos e vinhos novos e velhos, e daí entendemos que a alegria era própria dos dias do ministério de Jesus, enquanto que o jejum e a tristeza seriam naturais depois dele.
Assim, o texto até afirma que Jesus e seus discípulos não jejuavam, mas dá legitimidade ao jejum que já devia ser praticado entre os discípulos da geração de Mateus. Um erro comum dos leitores é interpretar erroneamente os dois tempos, e pensar, por exemplo, que os tempos dos tecidos e vinhos velhos e novos se aplicam ao tempo da Lei e ao tempo da graça, ao tempo do Antigo e Novo Testamentos, ou ao tempo do judaísmo e do cristianismo. Nada disso é correto, pois no texto os tempos que importam estão indicados, e são os do ministério de Jesus, e o da “igreja” sem a presença física de Jesus.

Antes de encerrarmos, deixe-me apenas fazer algumas observações sobre a imagem que usei para ilustrar o texto, como um anexo. Trata-se do evangelista Mateus segundo a leitura de Rembrandt, como o próprio título do quadro diz. Como logo vemos, Rembrandt não era um biblista, aceitou a tradição não atestada de que o apóstolo Mateus era o autor do evangelho, e imaginou este Mateus como um homem sério, escrevendo num livro cujo formato nem existia na época, sentado numa escrivaninha medieval. O autor pintado parece surpreso, olha para lugar nenhum como quem tem a mente ocupada com pensamentos internos, traz uma mão na pena, para a qual não olha, e outra na região do pescoço, como que nos mostrando que algo acontecia com sua própria fala. Realmente, segundo a imagem a voz de Mateus não era de Mateus, mas de um anjo, que está visível na pintura, mas que parece ser invisível para o próprio Mateus no quadro. Este anjo, cuja aparência é tradicional, a de um rapaz jovem com cabelos cacheados, fala ao ouvido de Mateus, provavelmente o auxiliando no processo composicional. Ou seja, a mensagem central da obra de Rembrandt é a de que o Evangelho de Mateus era um livro de inspiração sobre-humana.

quarta-feira, 13 de junho de 2012

A RELIGIOSIDADE SACRIFICIAL NA LITERATURA BÍBLICA


O tema deste capítulo é a religiosidade sacrificial, prática tão antiga quanto a própria religiosidade, e que por isso não pode ser datada ou localizada.
Como temos feito, vamos estudar textos bíblicos, analisar a lógica sacrificial expressa em textos bíblicos, e daí extrair conceitos gerais sobre a religiosidade sacrificial, que sem dúvida poderão servir a análises de outras religiões não vinculadas às tradições bíblicas.
Infelizmente não é possível oferecer apenas uma resposta à existência desse tipo de religiosidade, em que os deuses exigem vidas humanas ou animais. No final do mito do dilúvio em Gênesis 9.5, Deus é o narrador e quer sangue humano, mas neste caso, o texto já aboliu o sacrifício humano substituindo-o pelo sacrifício de animais:
E certamente requererei o vosso sangue, o sangue da vossa vida; da mão de todo animal o requererei, como também da mão do homem e da mão do irmão de cada um requererei a vida do homem.
Assim, a Bíblia traz a memória do sacrifício humano, mas sempre o rejeitando. Em Levíticos 27 temos alguns bons exemplos disso, pois o texto trata de casos em que alguém quer oferecer uma oferta a Deus, dedicando pessoas através do sacrifício (v. 2). Mas o Deus de Levíticos, embora aceite tais ofertas, não quer que seres humanos sejam mortos, então estabelece valores para o “resgate”, isto é, um preço que deverá ser pago um lugar da vida que se queria oferecer. Os homens de vinte a sessenta anos valem seiscentos gramas de prata, e as mulheres trezentos (v. 3-4). Pessoas mais jovens ou idosas que isso valem bem menos (v. 5-7). Caso a pessoa quisesse oferecer uma vida e não tenha prata para pagar o valor estabelecido para o resgate, deveria levar a pessoa viva ao sacerdote, que estabeleceria um valor condizente com suas condições (v. 8).
Embora não encontremos muitas justificativas para o sacrifício humano, segundo a Bíblia Hebraica pessoas são dedicadas a Deus e passam a servi-lo de forma vitalícia por meio de atividades sacerdotais. Este é o caso de uma tribo inteira, os filhos de Levi (os levitas). Segundo Números 3.41, eles devem ser dedicados ao Senhor em resgate por todos os primogênitos do povo de Israel. Esta tribo se tornaria a responsável pelos ofícios religiosos, e não teriam direito a terras como heranças, pelo que também não tinham independência econômica, precisando ser sustentadas pelas demais tribos. Como resultado desse modelo religioso que elege sacerdotes de tempo integral, o Deus deles continuará exigindo ofertas, dízimos, sacrifícios diversos, para a sustento da linhagem sacerdotal.
Números 18.14-16 Deus diz que todo primeiro macho nascido de qualquer ventre pertencerá a Arão, isto é, aos sacerdotes. Por isso, os israelitas deveriam resgatar os primogênitos humanos pelos valores estabelecidos, assim como todos os animais considerados impuros para o sacrifício. Entretanto, há animais considerados puros, e estes não seriam resgatados, mas sacrificados no lugar escolhido. Na cerimônia religiosa, parte do animal era queimada no altar para Deus, e outra parte da carne serviria de alimento aos sacerdotes (v. 17-18).
Nestas primeiras considerações fica claro que na tradição bíblica temos a assimilação de hábitos religiosas antigos, que estão sendo adaptados à cultura e necessidades locais. O sacerdócio e o sacrifício são instâncias inseparáveis dessa antiga tradição religiosa. Olhando por um lado, Deus quer sacrifícios, ele se agrada do derramamento de sangue, do cheiro dos cadáveres queimados, e sem dúvida a prática sacrificial pode ser entendida como um tipo de manipulação do sagrado. Por conta disso, eles precisam de pessoas aptas para manter Deus continuamente satisfeito, e estabelecem ofícios sacerdotais e normas rituais. Por outro lado, a eleição de sacerdotes é um fenômeno social que traz suas implicações econômicas, pois se alguém vai viver exercendo atividades religiosas, outros precisam trabalhar mais para sustentar esses sacerdotes. Daí é preciso exigir sacrifícios, ofertas, dízimos, e de certa maneira controlar a religiosidade popular a fim de que o sistema possa funcionar.

terça-feira, 12 de junho de 2012

O BODE EXPIATÓRIO DE LEVÍTICOS: RELIGIOSIDADE SACRIFICIAL


Faremos agora novas leituras, e o tema dessas leituras é a religiosidade sacrificial. Vamos estudar fragmentos textuais que possam nos oferecer alguma compreensão sobre a lógica e a teologia daquelas formas de religiosidade que têm, como elemento central do culto, o sacrifício. A primeira leitura é a de um texto longo de Levíticos capítulo 16, que trata de um ritual sacrificial do antigo Israel, e que acabou por dar origem a uma tradição popular. Este é o texto que nos fala do “bode expiatório”:
2 Disse, pois, o SENHOR a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque eu apareço na nuvem sobre o propiciatório.

É necessário fazer algumas considerações para que leitores não experientes compreendam o texto. Primeiro, vemos que todo o texto é narrado como se fosse uma coleção de detalhadas instruções divinas dadas a Moisés. Este personagem, famoso nos mitos de Israel como nação, é aquele que teria recebido de Deus, em suas experiências místicas no alto de uma montanha, os “dez mandamentos”. O nome de Moisés se tornou a autoridade legislativa do povo judeu, e por isso, o texto usa essa autoridade para que Moisés empreste sua autoridade ao conteúdo.
Arão é na narrativa bíblica irmão de Moisés, e foi o escolhido por Deus (ele e sua descendência) para o serviço sacerdotal. Neste Israel idealizado na literatura, o ofício sacerdotal que era sagrado deveria sempre ser exercido pela mesma família, exigência que não pôde ser seguida sempre, em parte porque a própria religiosidade sacrificial centrada em templos e altares não existiu em todas épocas, ou porque dominadores estrangeiros impuseram outras leis para a eleição de sacerdotes.
Então, o que temos aqui são instruções sobre parte do serviço sacerdotal. Todavia, o texto se utiliza de um recurso literário que chamamos de analepse (Marguerat; Bourquin, 2009, p. 112-113), e constrói a narrativa de maneira anacrônica, num tempo passado em relação ao tempo do autor. Ou seja, o texto não foi realmente escrito no tempo em que os fatos narrados acontecem, se é que aconteceram. Assim, Moisés e Arão já eram personagens lendários do passado judaico quando alguém os emprega como personagens para elaborar por escrito um documento que regule a atividade sacerdotal. Enfim, o narrador é Deus, é ele quem fala no texto. Porém, esta voz teria chegado aos nossos ouvidos através da intermediação de Moisés. Vamos agora às instruções propriamente ditas:
Lemos naquele primeiro versículos que Arão não deveria entrar no santuário todo tempo. Este santuário é um lugar específico localizado nalgum templo, ou no “Tabernáculo” neste caso, que era um templo ambulante ideologicamente construído pelas histórias bíblicas. O que nos importa é que este santuário, como lugar de contato entre o humano e sagrado, não pode ser um lugar comum. Assim, mesmo o sacerdote só deve entrar lá nas ocasiões certas, e isso para que não morra. O próprio Deus judeu aparecia naquele lugar, e sua presença era insuportável para os homens; era preciso uma permissão especial para entrar no lugar santo.
Outro detalhe interessante é que Deus aparecia na nuvem sobre o propiciatório. Ali havia um objeto destinado ao culto, o propiciatório. Devia ser algo como um altar para se depositar oferendas. Também havia uma arca, que segundo a tradição bíblica, tinha em seu interior as tábuas com a lei que Deus dera a Moisés. Estes objetos sagrados eram potencializadores da experiência religiosa, eram facilitadores do contato místico, costume ainda muito presente em diferentes formas de religião. E Deus estava eventualmente por ali fisicamente, sob a forma de uma nuvem, que talvez seja a fumaça dos incensos aromáticos que ali eram queimados constantemente.
3 Com isto Arão entrará no santuário: com um novilho para expiação do pecado e um carneiro para holocausto. 4 Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho, e se cobrirá com uma mitra de linho: estas são vestes santas; por isso, banhará a sua carne na água e as vestirá. 5 E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e um carneiro para holocausto.

Neste trecho nós vemos a descrição da roupa de Arão. É impossível explicar porque uma cultura antiga como essa adotou exatamente essas peças e esses tecidos; o texto não explica a origem a não ser como ordem pronta da divindade. Arão deveria se banhar também, e rituais de banho e purificações desse tipo são muito antigos. É bem provável que tenham nascido quando questões de higiene pessoal começaram a ser consideradas necessárias para o bem comunitário, mas como era de se esperar, as justificativas para exigir “pureza” são sempre religiosas, míticas, e não médicas como hoje gostaríamos.
Agora atentemos para os animais exigidos para os rituais sacrificiais. Eles estão listados separadamente, confusão talvez causada por algum problema nas reedições pelas quais o texto pode ter passado. Eles são: Um novilho para expiação do pecado, isto é, um animal que seria oferecido para agradar a divindade pedindo o perdão; um carneiro para o holocausto, uma oferta específica, em que todo o animal era queimado no altar, não restando nenhuma parte para as comuns refeições comunitárias religiosas; e dois bodes também para expiação de pecados.
6 Depois, Arão oferecerá o novilho da oferta pela expiação, que será para ele; e fará expiação por si e pela sua casa.

O primeiro sacrifício é o do novilho, morto no lugar sagrado para purificação de pecados do próprio sacerdote e de sua família. Isso habilita o sacerdote a ter seu contato com a divindade e a interceder pelo povo.
7 Também tomará ambos os bodes e os porá perante o SENHOR, à porta da tenda da congregação. 8 E Arão lançará sortes sobre os dois bodes: uma sorte pelo SENHOR e a outra sorte pelo bode emissário. 9 Então, Arão fará chegar o bode sobre o qual cair a sorte pelo SENHOR e o oferecerá para expiação do pecado.  10 Mas o bode sobre que cair a sorte para ser bode emissário apresentar-se-á vivo perante o SENHOR, para fazer expiação com ele, para enviá-lo ao deserto como bode emissário [para Azazel].

Neste trecho lemos sobre a função dos dois bodes. Arão os leva até a entrada do templo ou tenda, e lança sorte sobre eles, quer dizer, faz uma espécie de sorteio, destinando um para seu Deus e outro para Azazel. Algumas traduções não tracem o nome próprio Azazel, preferindo transformá-lo simplesmente em “bode emissário”, e é claro que as opções religiosas dos tradutores determinam suas escolhas em casos assim (Toorn (et. al.), 1999, p. 128-131). Aqui estamos diante de um problema redacional, onde possivelmente se misturaram tradições religiosas de uma espécie de divindade do deserto e leituras mais recentes que não parecem admitir a existência desse deus. Sem querer nos aprofundar no tema, nos parece que enquanto um bode é sacrificado para Javé, o outro é enviado como oferta a um outro tipo de divindade que não habita no lugar sagrado, mas no deserto, e seja como for, a ideia central é a de que certas transgressões não são suficientemente apagadas nos sacrifícios, e precisam desse outro recurso expiatório, que talvez seja mesmo uma herança religiosa muito antiga vinda de alguma cultura do norte da Síria, como alegam alguns comentaristas. Continuemos a leitura alguns versículos a frente:
15 Depois, degolará o bode da oferta pela expiação, que será para o povo, e trará o seu sangue para dentro do véu; e fará com o seu sangue como fez com o sangue do novilho, e o espargirá sobre o propiciatório e perante a face do propiciatório. 16 Assim, fará expiação pelo santuário por causa das imundícias dos filhos de Israel e das suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e, assim, fará para a tenda da congregação, que mora com eles no meio das suas imundícias. 17 E nenhum homem estará na tenda da congregação, quando ele entrar a fazer propiciação no santuário, até que ele saia; assim, fará expiação por si mesmo, e pela sua casa, e por toda a congregação de Israel.

O bode sacrificado oferece seu sangue ao sacerdote, que deverá aspergi-lo sobre o altar e o próprio santuário. Tudo é considerado impuro, tanto pessoas como objetos, e é por meio do sangue desse animal que eles passam a considerar purificado o ambiente e a sociedade. O mais curioso é o que está por vir, o ritual que se fazia com o segundo bode:
20 Havendo, pois, acabado de expiar o santuário, e a tenda da congregação, e o altar, então, fará chegar o bode vivo. 21 E Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um homem designado para isso. 22 Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à terra solitária; e o homem enviará o bode ao deserto.

O sacerdote faz uma espécie de transmissão das iniquidades do povo para o bode através da imposição de mãos e confissão. Alguém pega o bode carregado com os pecados, e o conduz ao deserto, talvez como oferta àquele Azazel. Importante é que esse bode leva sobre si todos os crimes, é considerado naquele momento o único pecador, e deve ser afastado da comunidade. No final de todo o ritual, são feitos novos banhos de purificação daqueles que tiveram contato com os animais:
23 Depois, Arão virá à tenda da congregação, e despirá as vestes de linho, que havia vestido quando entrara no santuário, e ali as deixará. 24 E banhará a sua carne em água no lugar santo e vestirá as suas vestes; então, sairá, e preparará o seu holocausto e o holocausto do povo, e fará expiação por si e pelo povo. 25 Também queimará a gordura da oferta pela expiação do pecado sobre o altar. 26 E aquele que tiver levado o bode (que era bode emissário) lavará as suas vestes e banhará a sua carne em água; e, depois, entrará no arraial [...] 29 E isto vos será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. 30 Porque, naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis purificados de todos os vossos pecados, perante o SENHOR. 31 É um sábado de descanso para vós, e afligireis a vossa alma; isto é estatuto perpétuo.

O narrador então abandona as descrições específicas e passa às gerais, estabelecendo a data anual deste ritual, fazendo dele um feriado nacional e religioso.
Por fim, a leitura nos aproximou um pouco de uma forma de religião sacrificial. Há uma teologia implícita, a de que existe um Deus que não tolera o pecado, as transgressões, as impurezas... Esse Deus é, a princípio, uma ameaça constante, e precisa ser aplacado por meio de alguma ação propiciatória. Essa ideia de um Deus ameaçador é típica da religiosidade antiga, onde o mal em suas múltiplas formas era atribuído às divindades miticamente. Mais difícil é entender a origem da lógica sacrificial, que pressupõe que Deus se agrada do sacrifício de animais. De alguma forma, entende-se que o mal deste mundo precisa ser punido, eliminado, e talvez o sacrifício seja uma maneira de colocar outra vida no alvo divino, de forma que os reais pecadores sejam poupados.
Não há, nesta lógica sacrificial, o perdão divino verdadeiro. Há sempre a punição, algum sangue que é derramado para que a ira divina seja aplacada. O bode expiatório não possui um papel central no texto que lemos, mas assumiu na tradição popular um papel importante. Falamos de “bodes expiatórios” quando queremos nos referir a vítimas escolhidas em lugar de outras que na verdade também merecem punição. A religião sacrificial representada por este texto expressa, portanto, uma concepção teológica que foi superada ou revista pelo cristianismo, que interpretou Jesus como uma bode expiatório, o “Cordeiro de Deus”. Assim, partindo da teologia sacrificial, o cristianismo aboliu o sacrifício contínuo de animais alegando que Jesus foi o perfeito e definitivo sacrifício. No judaísmo, a lógica sacrificial também foi perdida quando o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos em 70 d.C. Neste período emergiu um novo tipo de judaísmo, herdeiro do judaísmo farisaico, que passou a cultuar seu Deus fora dos ambientes sagrados e por meio da obediência às leis. Assim, o judaísmo rabínico que surgiria nos próximos séculos deu grande ênfase à literatura religiosa, substituindo altares e sacerdotes por sinagogas e escribas.
Também notamos quão fundamental é a pessoa do sacerdote neste tipo de religiosidade. Ele deve ser especial para que seja considerado apto para interceder junto a um Deus irado pelos homens culpados, e por isso todo sacerdócio se fundamenta em algum argumento religioso que dá legitimidade à sua função. Todavia, ainda que o cristianismo e o judaísmo tenham abandonado a religiosidade sacrificial que este texto de Levíticos nos mostrou, a tradição sacerdotal não morreu nessas religiões. Por muitos motivos os “intercessores” continuaram existindo, seja como mestres, como intérpretes legítimos das leis escritas, como condutores dos novos tipos de rituais, ou como administradores das religiões institucionalizadas.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

LENDO A EPÍSTOLA DE TIAGO


Introdução
Seguindo nossos hábitos de leitura, nos voltamos agora para a Epístola de Tiago para fazer dela o instrumento de nossos exercícios exegéticos. O principal objetivo é praticar a leitura livre, não dogmática, que lê atentamente e questiona o texto por conta própria. Metodologicamente, tentamos identificar as unidades temáticas, as estruturas que pelas quais se desenvolve o discurso, e sugerir a partir de nossos conhecimentos já adquiridos, caminhos para o entendimento do texto bíblico. Com isso queremos dizer que não nos ocuparemos com grandes pesquisas externas, dificilmente recorreremos à pesquisas bibliográficas, aceitando assim certas limitações em nossa leitura, que se caracteriza como passos iniciais da exegese propriamente dita.

Abertura (1.1)
Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze tribos que andam dispersas: saúde.
            O texto começa de maneira tradicional, apresentando seu autor e seus pretensos destinatários, mas mesmo essas simples colocações dão margem para algumas discussões que podem ser úteis, como introdução à nossas pesquisas. Primeiro consideremos o autor: sabemos que a pesquisa bíblica concorda, de modo geral, que esta epístola é uma obra pseudoepigráfica, isto é, ela na verdade é uma obra de autor anônimo que assume o pseudônimo “Tiago”. Este recurso é bastante comum dentro e fora da Bíblia, era usado para tornar mais relevante o conteúdo que se queria transmitir. Tal empréstimo não se limita ao nome de outrem, mas à autoridade que este personagem adquirira no contexto social da epístola, produzida provavelmente nas últimas décadas do primeiro século. Assim, por meio da influência de Tiago, uma nova geração de seguidores de Jesus poderia ser instruída de maneira mais eficaz.
            Este Tiago que aqui se mostra como um monoteísta “proto-cristão” (ele se diz servo de Deus e de Jesus Cristo), quer se dirigir às doze tribos dispersas, isto é, a judeus da diáspora. Porém, essa é uma definição muito abrangente; é improvável que ele realmente imaginasse que seria lido por judeus do mundo todo. O mais provável é que ele estivesse se dirigindo aos cristãos de etnia judaica, ou seja, às muitas e pequenas comunidades de judeus que criam em Jesus, que estavam espalhadas pelas nações já naquela época. Isso caracteriza o gênero “epístola”, que diferente de uma carta que é pontual, pessoal, é pensada desde o início como uma espécie de “circular”. As epístolas não se dirigem a pessoas ou grupos pequenos, mas são feitas para grandes públicos, para serem lidas e conhecidas por muitos, como todos os judeus servos de Jesus Cristo neste nosso caso. No início do versículo 2, vemos que a epístola fala aos “meus irmãos”, o que nos confirma que os leitores implícitos são mais limitados do que essas doze tribos a quem o autor primeiro se dirige.

As Provações da Fé (1.2-4)
2 Meus irmãos, tende toda alegria quando cairdes em várias tentações, 3 sabendo que a prova da vossa fé produz a perseverança. 4 E a perseverança tenha sua obra perfeita, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada necessitados.
               A epístola realmente começa no versículo 2, quando encontramos a primeira asserção de Tiago: “tende grande gozo quando cairdes em várias tentações”. Aqui temos uma afirmação estranha, que propõe uma interpretação particular do mundo que vai na direção oposta àquela do senso comum. Tiago diz aos irmãos que as tentações são boas, que são motivos de alegria. É obvio que a ideia comum que se tem sobre tentações é negativa, e por isso, esta afirmação precisa ser desenvolvida, defendida, explicada. O versículo 3 nos apresenta uma primeira explicação, nos mostra que as tentações às quais o texto se refere são provas de fé, e que uma fé que é provada e aprovada produz perseverança. Portanto, para ser uma pessoa perseverante, cuja fé é segura, é preciso superar os desafios que chamamos de tentações.
            No versículo 4 a argumentação ou defesa da asserção inicial continua. Diz o texto que a perseverança precisa ter sua obra perfeita, o que parece querer dizer novamente quão importante é superar os desafios da fé; e esta perseverança que foi aperfeiçoada por diferentes tentações vencidas produzem novos resultados, a saber: irmãos perfeitos, íntegros, em nada necessitados.
            Vamos representar graficamente o que lemos até aqui:

            Asserção/Leitura do Mundo: É bom cair em tentações

            Explicações:
·       Fé provada nas tentações = perseverança
o   Perseverança aperfeiçoada = irmãos perfeitos
       íntegros
       completos

A Falta de Sabedoria: Um Exemplo (1.5-8)
5 E, se algum de vós tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e ser-lhe-á dada. 6 Peça-a, porém, com fé, não duvidando; porque o que duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento e lançada de uma para outra parte. 7 Não pense tal homem que receberá do Senhor alguma coisa. 8 O homem de coração dobre é inconstante em todos os seus caminhos.
            Neste outros quatro versículos, julgamos ter um exemplo oferecido para tornar mais clara as afirmações feitas nos anteriores. Antes lemos que o “cristãos” que passa por tentações de fé e as vence, se torna mais perseverante, e que quando se adquire uma perseverança perfeita por meio de uma vida de superações, o resultado são cristãos perfeitos, íntegros, e que não têm falta de coisa alguma. Agora o autor nos propõe um exemplo, levantando o caso de alguém que não tem sabedoria. A falta de sabedoria, se identificada, pode ser solucionada através da ação de “pedir a Deus”. Aí está um exemplo de tentação, ou de prova para a fé. Esse pedido deve ser feito com fé e sem nenhuma dúvida, pois a dúvida torna o pedido ineficaz, reprova a fé daquele que pede, e consequentemente, tal cristão não terá nem sabedoria nem perseverança em sua fé.
            Esses versículos nos ajudam a entender provisoriamente o conceito de “tentação” usada em Tiago; trata-se de desafios para a fé. Os aprovados são aqueles vivem a partir dessas “certezas” religiosas sem duvidar. Também entendemos o seu conceito de “sabedoria”, que é uma forma de gnose, de sabedoria divina que se obtém por meio de um contato direto com a divindade. Por isso, para adquirir sabedoria não o leitor não é aconselhado a ler, estudar, meditar... ele deve orar, pedir a sabedoria de Deus.
            Assim, a crítica contra os homens inconstantes, que por falta de fé se deixam levar pelas circunstâncias, parece ser o tema da exortação dessas primeiras linhas de Tiago. Aparentemente ele imagina os judeus cristãos para os quais escreve como pessoas que suportam tentações, que são provados, desafiados, e pede que eles se alegrem nessas situações, que superem os desafios por meio da fé, e os motiva dizendo que aqueles que conseguem vencer tais tentações são aperfeiçoados adquirindo perseverança. Ainda não sabemos bem que tipo de tentações os tais possam estar sofrendo em termos práticos, o caso da sabedoria, como já dissemos, foi só um exemplo. De qualquer maneira, já sabemos que pelo menos segundo a interpretação que este autor faz da realidade, a fé deles está sendo exigida para que suportem algumas circunstâncias contrárias.