Introdução
Seguindo nossos hábitos de leitura, nos
voltamos agora para a Epístola de Tiago para fazer dela o instrumento de nossos
exercícios exegéticos. O principal objetivo é praticar a leitura livre, não
dogmática, que lê atentamente e questiona o texto por conta própria.
Metodologicamente, tentamos identificar as unidades temáticas, as estruturas
que pelas quais se desenvolve o discurso, e sugerir a partir de nossos
conhecimentos já adquiridos, caminhos para o entendimento do texto bíblico. Com
isso queremos dizer que não nos ocuparemos com grandes pesquisas externas,
dificilmente recorreremos à pesquisas bibliográficas, aceitando assim certas
limitações em nossa leitura, que se caracteriza como passos iniciais da exegese
propriamente dita.
Abertura (1.1)
Tiago, servo de Deus e do Senhor Jesus Cristo, às doze
tribos que andam dispersas: saúde.
O texto começa de maneira
tradicional, apresentando seu autor e seus pretensos destinatários, mas mesmo
essas simples colocações dão margem para algumas discussões que podem ser
úteis, como introdução à nossas pesquisas. Primeiro consideremos o autor: sabemos
que a pesquisa bíblica concorda, de modo geral, que esta epístola é uma obra
pseudoepigráfica, isto é, ela na verdade é uma obra de autor anônimo que assume
o pseudônimo “Tiago”. Este recurso é bastante comum dentro e fora da Bíblia,
era usado para tornar mais relevante o conteúdo que se queria transmitir. Tal
empréstimo não se limita ao nome de outrem, mas à autoridade que este
personagem adquirira no contexto social da epístola, produzida provavelmente
nas últimas décadas do primeiro século. Assim, por meio da influência de Tiago,
uma nova geração de seguidores de Jesus poderia ser instruída de maneira mais
eficaz.
Este Tiago que aqui se mostra como um
monoteísta “proto-cristão” (ele se diz servo de Deus e de Jesus Cristo), quer
se dirigir às doze tribos dispersas, isto é, a judeus da diáspora. Porém, essa
é uma definição muito abrangente; é improvável que ele realmente imaginasse que
seria lido por judeus do mundo todo. O mais provável é que ele estivesse se
dirigindo aos cristãos de etnia judaica, ou seja, às muitas e pequenas
comunidades de judeus que criam em Jesus, que estavam espalhadas pelas nações
já naquela época. Isso caracteriza o gênero “epístola”, que diferente de uma
carta que é pontual, pessoal, é pensada desde o início como uma espécie de
“circular”. As epístolas não se dirigem a pessoas ou grupos pequenos, mas são
feitas para grandes públicos, para serem lidas e conhecidas por muitos, como
todos os judeus servos de Jesus Cristo neste nosso caso. No início do versículo
2, vemos que a epístola fala aos “meus irmãos”, o que nos confirma que os
leitores implícitos são mais limitados do que essas doze tribos a quem o autor
primeiro se dirige.
As Provações da Fé
(1.2-4)
2 Meus irmãos,
tende toda alegria quando cairdes em várias tentações, 3 sabendo que
a prova da vossa fé produz a perseverança. 4 E a perseverança tenha sua
obra perfeita, para que sejais perfeitos e íntegros, em nada necessitados.
A
epístola realmente começa no versículo 2, quando encontramos a primeira
asserção de Tiago: “tende grande gozo
quando cairdes em várias tentações”. Aqui temos uma
afirmação estranha, que propõe uma interpretação particular do mundo que vai na
direção oposta àquela do senso comum. Tiago diz aos irmãos que as tentações são
boas, que são motivos de alegria. É obvio que a ideia comum que se tem sobre
tentações é negativa, e por isso, esta afirmação precisa ser desenvolvida,
defendida, explicada. O versículo 3 nos apresenta uma primeira explicação, nos
mostra que as tentações às quais o texto se refere são provas de fé, e que uma
fé que é provada e aprovada produz perseverança. Portanto, para ser uma pessoa
perseverante, cuja fé é segura, é preciso superar os desafios que chamamos de
tentações.
No versículo 4 a argumentação ou
defesa da asserção inicial continua. Diz o texto que a perseverança precisa ter
sua obra perfeita, o que parece querer dizer novamente quão importante é
superar os desafios da fé; e esta perseverança que foi aperfeiçoada por
diferentes tentações vencidas produzem novos resultados, a saber: irmãos
perfeitos, íntegros, em nada necessitados.
Vamos representar graficamente o que
lemos até aqui:
Asserção/Leitura
do Mundo: É bom cair em tentações
Explicações:
· Fé
provada nas tentações = perseverança
o
Perseverança aperfeiçoada = irmãos perfeitos
íntegros
completos
A Falta de Sabedoria:
Um Exemplo (1.5-8)
5 E, se algum de vós tem falta de
sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá liberalmente e não o lança em rosto; e
ser-lhe-á dada. 6 Peça-a, porém, com fé, não duvidando; porque o que
duvida é semelhante à onda do mar, que é levada pelo vento e lançada de uma
para outra parte. 7 Não pense tal homem que receberá do Senhor
alguma coisa. 8 O homem de coração dobre é inconstante em todos os
seus caminhos.
Neste outros quatro versículos,
julgamos ter um exemplo oferecido para tornar mais clara as afirmações feitas
nos anteriores. Antes lemos que o “cristãos” que passa por tentações de fé e as
vence, se torna mais perseverante, e que quando se adquire uma perseverança
perfeita por meio de uma vida de superações, o resultado são cristãos
perfeitos, íntegros, e que não têm falta de coisa alguma. Agora o autor nos
propõe um exemplo, levantando o caso de alguém que não tem sabedoria. A falta
de sabedoria, se identificada, pode ser solucionada através da ação de “pedir a
Deus”. Aí está um exemplo de tentação, ou de prova para a fé. Esse pedido deve
ser feito com fé e sem nenhuma dúvida, pois a dúvida torna o pedido ineficaz,
reprova a fé daquele que pede, e consequentemente, tal cristão não terá nem
sabedoria nem perseverança em sua fé.
Esses versículos nos ajudam a
entender provisoriamente o conceito de “tentação” usada em Tiago; trata-se de
desafios para a fé. Os aprovados são aqueles vivem a partir dessas “certezas”
religiosas sem duvidar. Também entendemos o seu conceito de “sabedoria”, que é
uma forma de gnose, de sabedoria divina que se obtém por meio de um contato
direto com a divindade. Por isso, para adquirir sabedoria não o leitor não é
aconselhado a ler, estudar, meditar... ele deve orar, pedir a sabedoria de
Deus.
Assim, a crítica contra os homens
inconstantes, que por falta de fé se deixam levar pelas circunstâncias, parece
ser o tema da exortação dessas primeiras linhas de Tiago. Aparentemente ele
imagina os judeus cristãos para os quais escreve como pessoas que suportam
tentações, que são provados, desafiados, e pede que eles se alegrem nessas
situações, que superem os desafios por meio da fé, e os motiva dizendo que
aqueles que conseguem vencer tais tentações são aperfeiçoados adquirindo
perseverança. Ainda não sabemos bem que tipo de tentações os tais possam estar
sofrendo em termos práticos, o caso da sabedoria, como já dissemos, foi só um
exemplo. De qualquer maneira, já sabemos que pelo menos segundo a interpretação
que este autor faz da realidade, a fé deles está sendo exigida para que
suportem algumas circunstâncias contrárias.
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