quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O SERMÃO DA MONTANHA (Mt 5-7): INTRODUÇÃO

O Evangelho de Mateus nos apresentou Jesus nos seus primeiros capítulos utilizando-se de narrativas, de apropriação de profecias, criando uma história mítica, teologicamente relevante, que nos levou a identificar Jesus mais como Messias que traz em si muitas das expectativas religiosas daquela cultura, do que como o homem que ele realmente pode ter sido. A partir de agora, ele vai agora nos aproximar de Jesus através de uma nova estratégia literária, vai nos colocar no lugar de ouvintes, de onde poderemos conhecer parte do conteúdo que, segundo o evangelista, Jesus ensinava. Temos dos capítulos 5 a 7 do evangelho uma grande coleção de textos formulados como um grande discurso às multidões que seguiam Jesus.

Embora este discurso tenha sido construído com abundante material herdado de fontes mais antigas que o Evangelho de Mateus, a verdade é que ele está direcionado para o grupo mateano (Overman, 1999, p. 103), o que levou Paulo R. Garcia a denominá-lo como um “código de pertença à comunidade de fé” (2001, p. 185). Empregando a autoridade de Moisés e de outros célebres personagens vétero-testamentários e aplicando-as a Jesus,[1] Mateus o faz subir a montanha e de lá proclamar a Lei dos judeu-cristãos, a fim que eles se vejam como os fiéis praticantes da Torah, e não como dissidentes seguidores de um líder subversivo que foi morto. Nesta construção, a referência topográfica (montanha) é muito significativa; mais uma vez, não poderemos ignorar os paralelos intertextuais que existem entre os atos e a missão de Jesus com os atos e a missão de Moisés. A subida de 4.25-5.2 marca o início desse conjunto literário cuja moldura se fecha em 7.28-8.1, quando Jesus acaba o seu discurso e desce do monte com muitos seguidores. Vejamos o quadro comparativo das expressões usadas nas duas extremidades dessa moldura, conforme nossa adaptação da proposta de Dale Christian Allison (1987, p. 192):

A) Grandes multidões o seguiram (4.25)

B) Subiu a monhanha (5.1)

C) Ensinava-os (5.2)

C’) Ensinava-os (7.29)

B’) Descendo ele da montanha (8.1)

A’) Grandes multidões o seguiram (8.1)

Esta é a primeira evidência de que o primeiro discurso de Jesus foi composto com grande esmero estrutural. Se o autor dedicou tanta atenção para fazer de seu livro uma obra formalmente criativa, quanto mais atenção dermos a esta característica, mais proveitosa será nossa leitura. Passaremos então, a partir da próxima seção, e comentar cada uma das unidades textuais deste grande discurso sem perder de vista a idéia de que nele, cada passagem foi cuidadosamente encadeada num lugar estratégico.



[1] Veja por exemplo Moisés em Êxodo 19.3; 24.12-13,18; 34.2,4; Dt 9.9; 10.1,3, depois Abraão em Gn 22.2,14, e também Elias nos montes Carmelo e Horebe em 1Rs 18.18-46; 19.8-18.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O DIABO E OS EVANGÉLICOS – EXORCISMOS COLETIVOS NA MÚSICA EVANGÉLICA

Nesta última postagem sobre o tema do Diabo entre os evangélicos vamos tratar brevemente de uma canção intitulada “Levanta-te Senhor”, de Marcos Witt,[1] cantor evangélico mexicano muito popular na América Latina e nos Estados Unidos. No Brasil, há em São Paulo até uma filial do chamado “Instituto Canzion”,[2] instituição idealizada por Marcos Witt e sua irmã Lorena para a formação de “ministros de louvor”.

Há apenas algumas observações a serem feitas. Primeiro, observamos superficialmente que as evangélicas brasileiras parecem receber influências dos círculos pentecostais latino americanos quando o assunto gira em torno das imagens de Satanás e seus demônios de forma mais radical. Neste trabalho não procuramos aprofundar essa constatação, pelo que deixamos os leitores interessados encarregados dessa pesquisa. Para começar a análise, a canção que foi gravada em português e que pode ser ouvida em inúmeras igrejas evangélicas traz uma evocação dizendo: “Levanta-te, levanta-te Senhor”. Daí foi extraído o próprio título da canção (Levanta-te Senhor). Deus é evocado para entrar na guerra e dispersar os inimigos.

Fujam diante de Ti os Teus inimigos

Se dispersem diante de Ti

Todos aqueles que aborrecem Tua presença

Essas primeiras estrofes da canção são evidentemente adaptações de uma passagem do Antigo Testamento, mais precisamente de Números 10.35, que diz: “Era, pois, que, partindo a arca, Moisés dizia: Levanta-te, SENHOR, e dissipados sejam os teus inimigos, e fujam diante de ti os aborrecedores”. O compositor se apropria neste caso de algumas palavras que segundo o narrador de números eram ditas por Moisés sempre que o povo de Israel, que peregrinava pelo deserto, levantava seu acampamento e partia levando para outro lugar levando a “arca da aliança”. Ou seja, o Deus de Israel os guiava e os protegia, era uma entidade convidada a ir diante do povo enquanto andavam e a permanecer com eles quando acampavam. O versículo é empregado na canção de maneira própria, mas também evoca Deus no sentido religioso e militar. Agora não há peregrinos, mas este Deus guerreiro é chamado para auxiliar o povo que canta em suas batalhas contra os inimigos.

Essa questão dos inimigos é particularmente curiosa, pois a princípio, ao apresentá-los, a canção trata de reinos, monarquias, impérios, principados...:

Tua presença reinará sobre todo império

Tua presença reinará, governará sobre todo principado

Se nos limitarmos a ler as palavras a partir de suas relações e oposições semânticas, julgaremos erroneamente que estamos falando de batalhas militares entre poderes políticos, mas este discurso se dá agora num ambiente eclesiástico, onde os signos devem ser lidos a partir de outras referências. Agora, é o Novo Testamento em sua leitura fundamentalista que funciona como elemento formador da linguagem evangélica, que nos oferece os discursos mais úteis para entender o uso religioso dos vocábulos. Primeiro, quando a canção nos diz que a presença de Deus reina, nos faz lembrar do “Reino de Deus”, expressão comum nos evangelhos que desde então já não se refere somente ao poder monárquico e a um domínio territorial, mas que diz respeito às expectativas apocalípticas de transformação da realidade por meio de uma intervenção poderosa e definitiva de Deus. Do mesmo modo, para entender termos políticos como “império” e “principado” temos que nos voltar para o Novo Testamento, talvez agora para as cartas paulinas e deutero-paulinas, que transmitiram aos cristãos de todas as gerações o sentido religioso e demoníaco que se pode dar aos “impérios” e “principados” (1Co 15.24; Ef 1.21). Ali também a expectativa apocalíptica aparece nas afirmações de que estes poderes demoníacos que governam o mundo serão aniquilados quando Deus impor pela força o seu domínio pleno.

Mas a canção ainda segue com uma terceira parte ainda mais curiosa, onde há verdadeiros “exorcismos”. O cantor nomeia diferentes “espíritos”, na verdade chamando-os pela suposta influência que eles exercem sobre os seres humanos. Assim, temos o “espírito de temor”, de “maldade”, de “rancor”, de “prostituição”, de “enfermidade”, e os contraditórios espíritos de “ambição” e “miséria”... Após o cantor evocar estes espíritos, os ouvintes devem em uníssono expulsar os tais ordenando: “fora!”. Trata-se aí de uma canção que é quase um ritual de libertação coletiva, talvez com relações indiretas com a ideia de que o cristão que sofre algum tipo de ataque externo de demônios pode libertar-se a si mesmo.

Há evidentes dificuldades hermenêuticas na canção. Embora nossa análise tenha sido apenas introdutória, já foi possível notar que textos diversos e cuja origem e contexto históricos são bem distintos são aplicados em conjunto; esta forma de apropriação é bastante comum à leitura bíblica religiosa, especialmente à fundamentalista. Não há barreiras para se afirmar que o Deus que se levantava com os judeus peregrinos agora se levanta com todo cristão que precisa combater as forças das trevas; ele luta junto deles não mais contra as nações vizinhas que deveriam ser expulsas da terra de Canaã, mas contra poderes espirituais que exercem diferentes formas de poder e controle neste mundo. A presença de Deus e a vinda do Reino também perderam na leitura seu caráter apocalíptico de esperança escatológica; já não dizem respeito ao futuro, mas ao exato momento em que se canta e expulsa demônios coletivamente. Também notamos que embora os demônios continuem a princípio sendo tratados como impérios e principados como na tradição paulina, a preocupação atual já não é territorial; agora importa o domínio que eles exercem sobre o indivíduo, o que é uma nova redução do coletivo para o pessoal, tendência típica da religiosidade destes nossos dias.

Referências Bibliográficas

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BROWN, Rebecca. Prepare-se para a Guerra. Rio de Janeiro: Danprewan, 1998.

BROWN, Rebecca. Vaso para Honra. Rio de Janeiro: Danprewan, 2001.

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SCHWARTZ, Seth. Were the Jews a Mediterranean Society? Reciprocity and Solidarity in Ancient Judaism. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2010.

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WHITE, Hayden. A Questão da Narrativa na Teoria Histórica Contemporânea. In. NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da (orgs.). Nova História em Perspectiva (Vol. 1 - Propostas e Desdobramentos). São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 438-483.Justificar



[1] marcoswitt.net

[2] http://www.institutocanzion.com.br/