O Evangelho de Mateus nos apresentou Jesus nos seus primeiros capítulos utilizando-se de narrativas, de apropriação de profecias, criando uma história mítica, teologicamente relevante, que nos levou a identificar Jesus mais como Messias que traz em si muitas das expectativas religiosas daquela cultura, do que como o homem que ele realmente pode ter sido. A partir de agora, ele vai agora nos aproximar de Jesus através de uma nova estratégia literária, vai nos colocar no lugar de ouvintes, de onde poderemos conhecer parte do conteúdo que, segundo o evangelista, Jesus ensinava. Temos dos capítulos 5 a 7 do evangelho uma grande coleção de textos formulados como um grande discurso às multidões que seguiam Jesus.
Embora este discurso tenha sido construído com abundante material herdado de fontes mais antigas que o Evangelho de Mateus, a verdade é que ele está direcionado para o grupo mateano (Overman, 1999, p. 103), o que levou Paulo R. Garcia a denominá-lo como um “código de pertença à comunidade de fé” (2001, p. 185). Empregando a autoridade de Moisés e de outros célebres personagens vétero-testamentários e aplicando-as a Jesus,[1] Mateus o faz subir a montanha e de lá proclamar a Lei dos judeu-cristãos, a fim que eles se vejam como os fiéis praticantes da Torah, e não como dissidentes seguidores de um líder subversivo que foi morto. Nesta construção, a referência topográfica (montanha) é muito significativa; mais uma vez, não poderemos ignorar os paralelos intertextuais que existem entre os atos e a missão de Jesus com os atos e a missão de Moisés. A subida de 4.25-5.2 marca o início desse conjunto literário cuja moldura se fecha em 7.28-8.1, quando Jesus acaba o seu discurso e desce do monte com muitos seguidores. Vejamos o quadro comparativo das expressões usadas nas duas extremidades dessa moldura, conforme nossa adaptação da proposta de Dale Christian Allison (1987, p. 192):
A) Grandes multidões o seguiram (4.25)
B) Subiu a monhanha (5.1)
C) Ensinava-os (5.2)
C’) Ensinava-os (7.29)
B’) Descendo ele da montanha (8.1)
A’) Grandes multidões o seguiram (8.1)
Esta é a primeira evidência de que o primeiro discurso de Jesus foi composto com grande esmero estrutural. Se o autor dedicou tanta atenção para fazer de seu livro uma obra formalmente criativa, quanto mais atenção dermos a esta característica, mais proveitosa será nossa leitura. Passaremos então, a partir da próxima seção, e comentar cada uma das unidades textuais deste grande discurso sem perder de vista a idéia de que nele, cada passagem foi cuidadosamente encadeada num lugar estratégico.
[1] Veja por exemplo Moisés em Êxodo 19.3; 24.12-13,18; 34.2,4; Dt 9.9; 10.1,3, depois Abraão em Gn 22.2,14, e também Elias nos montes Carmelo e Horebe em 1Rs 18.18-46; 19.8-18.
Um comentário:
Preciso ler novamente. Este pequeno porém profundo artigo dispertou curiosidades.
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