quarta-feira, 20 de março de 2013

HISTÓRIA DA LEITURA BÍBLICA: A Idade Média e as Novas Maneiras de Ler a Bíblia



Sabemos que os textos que hoje compõem a Bíblia são todos anteriores ao cristianismo como religião independente. Os mais recentes deles datam das primeiras décadas do segundo século, período em que pretensos discípulos de Jesus ainda estabeleciam as fronteiras identitárias que enfim distinguiriam os cristãos dos judeus. Embora os judeus já possuíssem sua coleção de textos sagrados e tenham sido os verdadeiros autores desses textos, a Bíblia que hoje lemos é o resultado de um processo de escolha, canonização e divulgação que se deu pelas mãos dos cristãos. Assim, ainda que os textos em questão sejam mais antigos que o cristianismo, e que os judeus também tenham desenvolvido suas próprias tradições interpretativas desses livros, pode-se dizer que o estabelecimento do cânon bíblico que o ocidente ainda respeita se deu paralelamente à instituição do cristianismo como religião institucionalizada. O estabelecimento de um cânon bíblico não era o início, mas o final de um período de elaboração e uso de textos que em geral são selecionados pelo gosto popular e pela voz de certas “autoridades” até receberem o selo da instituição. E se essa instituição em determinado momento da história adquiriu o poder de determinar quais textos eram os sagrados e quais os profanos, não causa nenhuma surpresa que ela também tenha adquirido o poder de mediar a leitura desses mesmos textos entre os “leigos” que como vimos, eram quase sempre analfabetos.
 A leitura bíblica veio a desempenhar um novo papel relevante na história da leitura desde a Idade Média, estabelecendo a leitura silenciosa como uma prática comum. Ainda que os textos continuassem sendo conhecidos pelos leigos através da mediação de leitores nos cerimoniais litúrgicos, sermões e proclamações públicas, no interior das igrejas, na vida monástica, a Bíblia e outros textos religiosos eram lidos silenciosamente, murmurados e meditados cuidadosa e repetidamente.
A leitura e a cópia dos textos sagrados se transformam em exercícios religiosos como a oração ou o jejum, mas o uso da Bíblia nesses séculos de devoção religiosa vai além das práticas de leitura, pelo que os livros em sua materialidade ganham novo status. O livro religioso passa a valer por si, como objeto sagrado, amuleto cuja posse é desejável mesmo entre aqueles que não a podiam ler por inaptidão com o latim com a escrita em si. Essa estima em relação à própria materialidade dos textos bíblicos é um fenômeno que ainda testemunhamos no mundo contemporâneo, e que possui grande relevância como forma de mediação religiosa da leitura. Queremos dizer que desde o momento que um leitor toma uma Bíblia em suas mãos, a presença de instituições religiosas se faz notar e busca condicionar a leitura. Voltaremos a essa questão outras vezes, mas pensemos provisoriamente no impacto que capas de couro com belas letras douradas que anunciam a sacralidade do texto, e a legitimação dada pelo nome de alguma "autoridade", desempenham previamente sobre um leitor iniciante.


 Voltando à Idade Média, homens letrados e influentes ligados às instituições religiosas manusearam a Bíblia com frequência e elaboraram leituras condizentes com suas respectivas realidades, além de desenvolverem métodos de análise e interpretações que influenciariam povos e gerações diversas na posteridade. Já por volta do século III, pensadores como Clemente e Orígenes em Alexandria, tornaram-se célebres entre os “pais da igreja” afirmando que nos textos bíblicos havia mais do que aquilo que chamavam de “sentido literal”, e insistiram na necessidade de se buscar um sentido místico ou alegórico das escrituras. Entre fins do século IV e início do V, o influente Agostinho faria da interpretação alegórica um modelo para a leitura bíblica medieval, assim como ajudaria a estabelecer o valor normativo da tradição eclesiástica na interpretação. Deveras, durante a Idade Média a Bíblia se tornou um documento misterioso, e seus aspectos literários estiveram em segundo plano, sufocados pelos acentos místicos cujo acesso estava limitado a apenas poucos privilegiados, membros do clero capazes de lidar com a Vulgata em língua latina.

É bom ressaltar de antemão que essa interpretação alegórica da Bíblia não desapareceu por completo com o nascimento de abordagens críticas, pelo contrário, ela continua presente em grande parte das leituras feitas por leigos e até por líderes religiosos mais desvinculados dos pressupostos acadêmicos de leitura. Acontece que a leitura do tipo “literal”, que procura pelo significado consensual presente nas palavras e frases, ou por seu sentido imediato, histórico, pretendido pelo autor, torna o texto inútil para as comunidades leitoras que se reuniram em torno de um texto em busca de mensagens religiosas. Por um lado essas comunidades de fé já recebem o texto por intermédio das instituições religiosas, que atestam a sacralidade de cada palavra nele contida, pelo que rejeitar o texto deixa de ser uma possibilidade. Por outro lado o texto divino precisa ter algum valor pragmático, precisa servir à comunidade leitora que requer dele mensagens úteis em seu próprio mundo. Por conta disso, segue existindo o impulso pela produção de leituras “mais que literais” do texto bíblico, cujos resultados podem ser questionados pelos críticos literários que a considerariam más leituras, mas que servem aos interesses da comunidade leitora e acabam por dar maior legitimidade ao texto, que lhes parece mesmo divinamente criado e capaz de falar com leitores de todas as gerações e em quaisquer circunstâncias. Vejamos como John B. Gabel e Charles B. Wheeler constataram esse mesmo fenômeno de leitura nos primórdios do catolicismo romano, quando as memórias literárias de um tipo de judaísmo marginal formado por camponeses passavam a ser lidas sob novas condições sociais, políticas, econômicas e religiosas:

Como poderiam os ensinamentos de Jesus, dirigidos aos seus simples seguidores galileus, ou o conselho de Paulo, dado a tênues comunidades cristãs espalhadas aqui e ali no mundo antigo, ser aplicados a uma Igreja altamente organizada, opulenta e poderosa, cujo centro era Roma? Mais uma vez, era preciso interpretar a Bíblia com extrema liberdade para que a estrutura eclesiástica – tão diferente da Igreja primitiva descrita nos Atos – encontrasse sua garantia na palavra de Deus. (2003, p. 236)

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