A
Bíblia é, como sabemos, uma coleção de textos de datação indeterminada, cujo
acesso só é possível através de um custoso processo de comparação de milhares
de manuscritos. Na verdade nós sabemos bastante sobre os modos de produção dos
textos bíblicos, e temos nesses documentos sinais de práticas literárias de
evoluíram por séculos, o
que faz com que qualquer tentativa de se escrever sobre a história da leitura
bíblica coincida com a própria história da escrita.
Por exemplo, podemos notar que a grande maioria dos textos bíblicos são
compilações de textos menores e de origens provavelmente independentes; são
coleções de fragmentos de tradição oral e escrita unidos por um processo
redacional mais recente. Alguns livros bíblicos parecem mesmo sugerir uma
herança cultural antiquíssima, refletindo em breves unidades textuais, tempos
em que a escrita mais comum devia ser a cuneiforme, em tabletes de materiais
simples como argila, pedra ou madeira.
Mas os materiais mais comuns na produção dos textos bíblicos foram o papiro e
depois o couro, que deu origem ao rolo que chamamos de “pergaminho”.
Essa nova tecnologia contribuiu com a durabilidade dos textos e com a produção
de livros maiores, mas a prática de escrita seguiu em grande parte presa aos
modestos limites dos tabletes, pelo que a crítica moderna sempre tem que lidar
com a questão da delimitação das perícopes,
examinando textos de tempos em que sequer haviam divisões entre as palavras,
sinais de pontuação ou mesmo parágrafos.
Nos dias de Jesus e em meados do
primeiro século, boa parte das tradições literárias das religiosidades judaicas
já havia se consolidado o formavam coleções de textos que depois seriam
chamados de Antigo Testamento. Mas
é preciso levar em conta que esses rolos não costumavam ser encontrados nas
casas das famílias comuns, mas nos templos, nas sinagogas, nas mãos de escribas
que também estavam envolvidos com serviços administrativos do império... Além
da não padronização de uma coleção canônica desses textos até a virada dos
séculos I e II, há vários outros motivos que explicam a escassez de cópias dos
textos bíblicos entre as massas: primeiro, devemos nos lembrar que a
alfabetização não era uma característica comum a qualquer parte do chamado
mundo clássico,
e os estudiosos estimam que o nível de alfabetização da terra judaica nos
primeiros séculos estava abaixo dos 3%; segundo, mesmo
para os letrados a posse de uma grande coleção de textos que tinham que ser
copiados manualmente por profissionais e em folhas de papiros importadas era algo
economicamente inviável; e mais importante ainda, é que a
posse de livros e a atividade da leitura individual eram simplesmente
inconcebíveis naquela cultura que quase sempre transmitia seus conhecimentos
através da oralidade. Quer dizer que os textos bíblicos não eram copiados para
serem comprados, levados para casa e lidos; eles existiam principalmente para
serem ouvidos. Ou seja, mesmo nos rituais religiosos, a memória era o principal
instrumento, e os textos, quando entravam em cena, eram lidos por algum orador
para que os demais ouvissem. Assim, as memórias e tradições orais eram escritas e
copiadas de geração em geração para sua preservação, com a finalidade de serem
novamente re-oralizadas pela prática da leitura coletiva.
Sobre a história das práticas de
leitura e a predominância da transmissão oral no mundo antigo também escreveu
Robert Darnton:
[...] mesmo depois de
os livros terem adquirido sua forma moderna, por muito tempo a leitura
continuou a ser uma experiência oral, desempenhada em público. Em algum momento
indeterminado, talvez em alguns mosteiros no século VII e seguramente nas
universidades do século XIII, as pessoas começaram a ler sozinhas em silêncio.
É possível que a passagem para a leitura silenciosa tenha implicado uma maior
adaptação mental do que a passagem para o texto impresso, pois ela fazia a
leitura uma experiência individual e interior. (2010, p. 199)
O cristianismo antigo ainda desempenhou
um papel importante relativo à história do livro por adotar mais cedo que
qualquer outro grupo social, o códex de papiro em lugar dos rolos. Segundo John
Dominic Crossan, “nos anos 200, a proporção cristã de rolo para códice era de
um para treze. Essa vitória do códice para o rolo aconteceu só devagar e tarde
para a literatura grega, mas quase instantaneamente e logo para a literatura
cristã” (2004, p. 170). É difícil explicar porque os manuscritos cristãos,
desde os mais antigos que hoje dispomos, já eram códices; mas ao ajudar a
popularizar essa nova tecnologia que diferente do rolo possibilitava consultas
quase que instantâneas a qualquer ponto de um livro, os cristãos contribuíam
com o futuro do livro como instrumento de pesquisa.
Pode-se imaginar que a partir do
momento que o cristianismo galgou seu lugar no mundo gentílico,
institucionalizando-se inclusive, o número de cópias dos textos e o número de
leitores tenham aumentado bastante. No entanto, é preciso ter cautela para não superestimar
os níveis de alfabetismo e as práticas de leitura do Império Romano. Para
fechar essa seção, gostaríamos de citar algumas linhas de William V. Harris em Ancient Literacy (1989) que mostram que
as condições de leitura bíblica não mudaram muito até o quarto século. Ele
escreveu especificamente sobre o começo do cristianismo imperial sob
Constantino:
Após a fundação de Constantinopla, em 324, o imperador escreveu a Eusébio para
encomendar 50 volumes de pergaminho (somatia) das escrituras para
as igrejas da nova capital. Sua
ação não teve nenhum tipo de precedente clássico,
e se originou de uma importante
mudança cultural, a ascensão de uma religião patrocinada pelo Estado, que dependia muito
da palavra escrita. Mas ao mesmo
tempo a carta do imperador indica a continuidade
das condições antigas, pois ele encomendou livros que a maior parte
dos fiéis ouviria a partir de leituras em
voz alta, e ele esperava que 50
volumes atendessem às necessidades
espirituais da cidade capital. (Harris,
1989, p. 285)
2 comentários:
Valeu Anderson, seu blog é imprescindível às minhas pesquisas.
Ao ler seu texto me lembrei de Bart, quando em seu livro relata Orígenes se queixando das cópias que dispunha. Ele diz:
"As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela nigligência de algum copista ou pela audácia perversa de outros; ou eles descuidam de verificar o que transcreveram ou, no processo de verificação, apagam ou acrescentam trechos, como mais lhe agrade." Isso é III século. O que é inerrância mesmo? kkkkkk
Acho que devemos resignificar a teologia ou até mesmo, ter a coragem de extinguí-la. Obrigado, Anderson pela sua contribuição.
Valeu Anderson, muito bom.
Valderi Junior/ICEC
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