sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

COMO VIVER BIBLICAMENTE NO SÉCULO XXI

Primeiras Palavras

Tenho escrito muito, dezenas de páginas por semana, e gosto muito do que faço. Mas ao contrário do que se pode pensar, não escrevo somente porque tenho a intenção de ensinar, escrevo também para aprender. É escrevendo que penso melhor, que desenvolvo e organizo idéias, e tal exercício tem me servido muito bem. Se estás lendo este texto no meu blog, poderás notar que meu último texto, intitulado “O Futuro a Deus ‘Não’ Pertence”, é um exemplo do que estou falando, onde mais registro pensamentos do que qualquer outra coisa.

Hoje, voltei às letras apressadamente para meditar e ensinar algo que julgo ser de grande importância. Todo cristão busca conhecer Jesus e vê nele o maior exemplo a ser seguido, mas em algum momento da sua vida deve se perguntar como é possível realmente assemelhar-se a Cristo, posto que ele descrito em tão alto padrão. Em alguns aspectos imitar Jesus não é problema; todos sabem sentar na casa dos amigos e compartilhar uma boa ceia, todos concordam que é preciso orar, que é preciso dividir o que sobre Deus aprendemos com os outros... Todavia, quantos estão prontos a aceitar o celibato que ele aceitou? Quantos deixam casa e família para anunciar o Reino de Deus aos pobres de outras regiões? Quantos abrem mão dos poucos pães e peixes que possuem para alimentar os famintos?

Não precisamos nos alarmar por isso. É absolutamente normal que façamos uma leitura seletiva da Bíblia, o problema é que geralmente essa seleção não é consciente, mas instintiva. Em decorrência dessa inconsciência, muitos selecionam como normativos para suas vidas textos que não precisávamos levar ao “pé da letra”, enquanto descartam outros muito mais relevantes. O objetivo desse texto é distinguir três aspectos básicos da religiosidade bíblica, e avaliar qual ou quais deles são relevantes para o cristão que pretende agradar a Deus em pleno século XXI. Essa tarefa primeiro nos proporcionará, a mim e ao leitor, aprendizado, e depois nos fornecerá subsídios para a vida cristã comprometida e coerente.

Devo mencionar que mais uma vez devo a John Dominic Crossan a distinção dos três aspectos da religiosidade bíblica que vou expor, o que deixou-me encarregado apenas de transmiti-la aqui em linguagem mais acessível ao meu leitor. Aos interessados no tema peço que leiam “O Nascimento do Cristianismo”, ed. Paulinas, pp. 321-328.

Três Aspectos da Religiosidade Bíblica

A religiosidade bíblica desenvolveu, durante os vários séculos em que os judeus padeceram sob o domínio de impérios estrangeiros, diferentes alternativas de resistência à opressão baseadas na fé. Na verdade, os judeus adotaram e adaptaram formas de resistência pré-existentes em outras culturas, gerando movimentos diversos que de hoje de maneira muito genérica chamamos de “judaísmos”. O que aproxima essas diferentes formas de resistência é o que chamamos de escatologia, ou seja, a expectativa de que as circunstâncias desfavoráveis seriam transformadas no “fim”, seja esse “fim” o fim de um império, de uma era, do mundo, da sua vida terrena etc.

A primeira dessas formas de religiosidade judaica é o que chamamos de apocalipsismo. Nela, nega-se o mundo presente através da crença de que Deus intervirá de maneira decisiva na história para pôr fim às injustiças. João Batista era adepto do apocalipsismo, e advertia seus ouvintes sobre a “ira vindoura” (Lc 3.7). O anúncio do Reino de Deus, comum a João Batista e a Jesus, é também tipicamente apocalíptica, pois implica necessariamente no fim de todo governo humano para que Deus assuma o comando. O apocalipsismo não é somente esperança futura, traz consigo também certo grau de violência, que se não é humana, ao menos é divina. O que se espera é, falando francamente, uma matança dos inimigos para a inauguração de um novo mundo purificado, uma guerra do Armagedom sanguinária que inspirou muitos apocalípticos a buscarem a justiça através da guerra.

O apocalipsismo não se extinguiu, como podes pensar, e grupos de várias religiões continuam esperando um evento salvífico como a volta de Cristo, o arrebatamento da igreja, o fim do mundo... O ponto negativo é que nessa espera alguns crêem que o tempo está se esgotando e querem “converter” os outros à força. Estes e gostam de textos que dizem para quem não tem espada adquirir uma (Lc 22.36), ou que os inimigos do homem estarão na sua própria casa (Mt 10.36). Outros, mais radicais, crendo que a hora chegou se suicidam, ou partem para a guerra civil como uma forma de dar início ao julgamento escatológico como fizeram os judeus em 66-70 d.C. e Che Guevara na América há algumas décadas. Pena que a vitória pela espada nunca é definitiva, e quem vence pela espada tem que manter seu governo também pela espada, numa tensão que a qualquer momento pode explodir em novas batalhas.

O segundo aspecto da religiosidade judaica é chamado de ascetismo. Os adeptos dessa forma de religião combatem o mundo através do isolamento e da purificação individual. São ascéticos os monges e as freiras, que separam-se do mundo, seguem padrões rígidos de alimentação e jejuns, e fazem votos de castidade. Eles esperam aproximar-se de Deus afastando-se do mau que está no mundo, e consideram-se vocacionados para tal forma de vida. Protestam assim dizendo pelas atitudes de renúncia que o que há “lá fora” não é bom. João Batista era também um desses, pois isolou-se no deserto, não comia nada além de gafanhotos e mel, vestia-se humildemente, purificava-se a si e aos seus discípulos através de um banho ritual, e ao que tudo indica não tinha mulher (Mt 3.1-6). Jesus não foi tão radical na prática ascética quanto João; comida livremente e não parece ter adotado qualquer banho ritual em seu seguimento. Todavia, Jesus também deixou sua casa e família pela sua missão, não tinha esposa, e isolava-se para tempos de oração. Assim ele inspirou nossos padres ou mesmo evangélicos que gostam de subir montes e jejuar em busca de santidade.

O último tipo de religiosidade que quero mencionar é o chamado eticismo (de ética). Só pela estranheza que o nome nos transmite, já dá pra imaginar que este é o aspecto menos mencionado pelos religiosos de hoje. Neste caso a resistência ao mundo não é feita em isolamento físico, mas em mudança de atitudes cotidianas. O foco não está na intervenção de Deus, mas na mudança da sociedade injusta através das ações justas dos adeptos, inspirada, todavia, no conhecimento de um Deus que é justo. Esse tipo de religiosidade ensina a não mais participar de qualquer instituição promotora da injustiça, a não mais colaborar com a violência, com a desigualdade social, a crer que mudando as pessoas mudamos o mundo. Uma característica marcante desse tipo de religiosidade é que ela se nega a reagir a ações violentas (Mt 5.39), motivo pelo qual nasceu desde os primórdios do cristianismo a idéia de que o martírio era um privilégio a ser recebido com alegria.

Sem dúvida Jesus e os seus primeiros seguidores eram sérios adeptos desse eticismo. Jesus ensinou a dar a outra face aos que nos agridem (Mt 5.39), crendo que tal atitude resultará em vida eterna (Mt 10.28); ensinou a não dar as costas aos que nos pedem (5.42), a não cobrar pelas boas ações praticadas (Mt 10.8), a não tratar ninguém com preconceito (Mc 2.17) etc.

Que Aspecto da fé Bíblica Devemos Viver?

Tu deves ter notado que os três aspectos que distinguimos estão misturados na Bíblia e aparecem em medidas diferentes a cada personagem. Alguns são mais apocalípticos, outros mais radicais e individuais, e outros mais adeptos da sabedoria e da vida comunitária. A questão é, então, aprender a distinguir em nossa própria vida esses três aspectos e avaliar se nossas atitudes estão de acordo com nossas expectativas escatológicas. Isto é, como acreditamos que as coisas erradas podem mudar? Estamos agindo de acordo com essa nossa fé?

Minha opinião pessoal é que do apocalipsismo podemos aproveitar a fé de que esse mundo repleto de coisas negativas será transformado, e que Deus está nos esperando no fim para receber os “justos”. Mas essa esperança não deve resumir-se em passividade e nem tampouco culminar em violência. Outro ponto que merece destaque na opção pelo apocalipsismo é que a volta de Jesus, o arrebatamento, ou seja lá qual for a intervenção divina que se espera, não pode ser prevista. A atitude a se tomar é de vigilância, de esperança. Essa esperança de melhoria e a fé de que Deus não planejou tanta coisa ruim é sadia para todos nós.

Quanto ao ascetismo, creio que devemos modernizá-lo ou mesmo descartá-lo. Não acredito que o mundo será transformado pelo nosso isolamento, antes, ele nos escarnecerá. Não vejo valor algum em banhos rituais como o batismo, nem em isolamentos como fazem os monges ou os evangélicos em vigílias nos montes. Também não consigo imaginar nenhuma utilidade para os jejuns, para a assiduidade supersticiosa a todas as reuniões da igreja, ou para a castidade. Nem creio também, que o cristão de hoje deve abrir mão dos seus bens simplesmente por acreditar que a pobreza é uma virtude. Assim, em minha opinião, do ascetismo pouco se aproveita para nossos dias. Talvez a eventual prática da meditação e a abstenção de alimentos prejudiciais à saúde ou a produtos como cigarro e bebidas possa nos servir, mas em qualquer implicação espiritual. O perigo é que adotando o ascetismo em qualquer medida, sempre corremos o risco de escorregar para o rigor da lei, que sem qualquer motivo racional proíbe um de cortar o cabelo, outro de usar roupa vermelha, outro ver TV, outro de ir à faculdade, outro de se casar com pessoa de outra religião, outro de praticar esporte etc.

Porém, não há qualquer “contra-indicação” à adoção completa da religiosidade ética que predominava em Jesus e na primeira geração de cristãos (conforme os testemunhos textuais dos primeiros trinta anos de cristianismo). É desse aspecto da religiosidade bíblica que aprendemos a amar o próximo como a nós mesmos, e assim, se toda ação por nós praticada estiver condicionada por esse princípio do amor, não há como errar. O cristianismo ético baseia-se na vida real, trata dos problemas que as pessoas enfrentam no dia a dia e fala ao mundo em linguagem clara e sábia. Ele pode ser facilmente adaptado a cada nova geração, o que a torna viável e de fácil aplicação a toda cultura.

No cristianismo ético, não há criatividade para se criar animais mitológicos ininteligíveis que nunca são compreendidos e só levam a intermináveis discussõesteológicas, e nem há limites doutrinários que sem notarmos tornam-se abusivos e servem para que líderes opressores controlem as massas. Tudo é avaliado por um só critério: isso faz bem ao próximo? Então devemos fazê-lo. Isso faz mal ao próximo? Então deve ser rejeitado. Essa me parece a parte que devemos prestigiar da religiosidade bíblica; talvez, ela seja a única realmente necessária.

Eram estas as coisas que eu tinha a dizer hoje. Agora tu podes descartar o que leu, reler o texto para assimilá-lo com maior clareza, ou fazer logo sua opção e seu auto-exame. Seja qual for tua escolha, faze-a conscientemente. Decide o que vais vivenciar e o que pretendes descartar da Bíblia, e não te enganes pensando que alguém é capaz de ser tudo isso ao mesmo tempo, pois se tal coisa fosse possível, teríamos uma figura estranhíssima que certamente não desejaríamos imitar. A maneira distinta com que cada profeta, apóstolo ou messias da Bíblia montou sua própria religiosidade é sinal de que não estamos errando ao fazer isso; erramos mais quando abaixamos a cabeça e anulando a capacidade de discernir que Deus nos deu seguimos um padrão religioso que alguma igreja nos ditou. ¡Viva la revolución!

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

O FUTURO A DEUS “NÃO” PERTENCE

Introdução

Antes de entrar no assunto desta mensagem, preciso fazer algumas considerações a meus leitores. Primeiro, sou um pesquisador e escritor do campo da religião, e tenho trabalhado em dois campos distintos simultaneamente: um deles é acadêmico, desenvolvo artigos científicos e no momento preparo minha dissertação de mestrado. O acesso a estes trabalho é mais restrito, pois estão sendo publicados em revistas científicas das faculdades brasileiras e são destinados a outros pesquisadores. Segundo, tenho escrito desde 2005 textos de pequena extensão que são bem mais acessíveis. Estes são publicados em igrejas cristãs e geralmente os divulgo em meu blog (www.compartilhandonoblog.blogspot.com). Os dois campos são distintos, um excessivamente acadêmico, outro prático, reflexivo e até devocional; mas eles também se tocam eventualmente. Algumas vezes, um texto acadêmico é resumido para alcançar um público não especializado (como fiz com o texto “Um Rei dos Nossos...”), em outras, um texto breve é re-trabalhado para transformar-se em texto científico (como foi o caso de “Jesus era contra o Divórcio?”).

O texto que abaixo apresento é um texto da classe “popular”, ou seja, apresenta uma reflexão breve, sem demasiada argumentação ou preocupação com a fundamentação das idéias. Uso assim esse instrumento para divulgar em forma escrita um pensamento antigo, que precisa ser aperfeiçoado e confrontado com a opinião de outros. Caso essas idéias sejam aprovadas nesse primeiro teste, penso na possibilidade de lhe aperfeiçoar.

Meu leitor pode estar se perguntando por que nos últimos textos me tornei tão formal. Neste caso, quis ser cuidadoso porque o que vamos ver é uma verdadeira “heresia”, um pensamento totalmente contrário àquilo que a igreja e mesmo os teólogos tradicionais pensam. Não estou tratando de um assunto que domino, mas expressando idéias que me parecem relevantes no âmbito teológico. Assumo o risco de receber críticas, na verdade, é o que espero, para saber quão coerente é esta minha idéia.


Conteúdo

Tenho reconhecida aversão às idéias pré-concebidas que a chamada “teologia sistemática” ensina aos estudantes de teologia. Me parece que falta transparência à teologia sistemática, pois tais idéias não são apresentadas como hipóteses, o que realmente são, desenvolvidas por pensadores de várias gerações. Tais idéias são apresentadas como certezas, método de educação antiquada que impede o aluno de pensar por si mesmo, já que estará sempre influenciado pelas idéias pré-estabelecidas dessa teologia.

O caso que tenho em mente enquanto escrevo é a idéia de que Deus é Onisciente (que aceito), que conduz à idéia de que ele sabe tudo sobre o passado, o presente e o futuro (que rejeito). Os teólogos crêem que Deus vê o “tempo” em sua totalidade, conhecendo tudo o que acontece do princípio ao fim da história. Supostamente tais conceitos tiveram origem na Bíblia, mas sinceramente não sei como essa idéia pode ser defendida com a Bíblia. Que textos falam disso?

Outra vez, quero enfatizar que aceito a idéia de que Deus conhece todas as coisas, o que questiono é que Deus conhece o futuro, o que em minha opinião, não existe. Sempre que debato este tema, cito o mesmo exemplo, e ele não poderia faltar aqui, onde quis registrar exatamente essas minhas dúvidas. Meu exemplo começa com uma pergunta: Deus conhece, por exemplo, a constituição física dos extra-terrestres? Se existem extra-terrestres, ele a conhece, mas se eles não existem, então Deus não deixa de ser Onisciente se não conhecer o que não existe. Assim, para mim Deus conhece todas as coisas, mas não conhece o futuro simplesmente porque ele não existe.

Um leitor da Bíblia que se preze, antes de concordar comigo, vai perguntar coisas como: E as profecias? E o Apocalipse? Deus não anuncia na Bíblia as coisas que ainda virão e, portanto, as conhece com antecedência? Bem, primeiro a profecia não é sempre uma previsão futurista. Na verdade, a maioria das profecias são locais e podem ser explicadas em termos humanos. Se um economista moderno diz que a próxima potência mundial será a China, isso não precisa ser atribuído à inspiração divina; ele observou, estudou, e já pode dizer o que virá, embora possa se enganar e o diga sem riqueza de pequenos detalhes. Na profecia do Antigo Testamento, a inspiração divina não anula esse elemento humano, o dom de observação e a inteligência do profeta. Com base na fé em um Deus de direito e justiça, e com base na observação astuta do cenário político nacional e internacional, os profetas avaliavam as injustiças dos seus dias e o papel internacional exercido pelo seu país, e previam o fim das dinastias pela tomada da nação por um império muito superior militarmente, que aliás, já estava dominando diversas outras nações mais poderosas que Israel. Mais que previsões futuristas, a profecia me parece a aplicação quase sempre precisa dos princípios lógicos de causa e efeito, embasadas na fé em um Deus bom.

Sobre a literatura apocalíptica, a questão é um pouco diferente. As previsões apocalípticas não podem ser facilmente localizadas nem no tempo nem no espaço, motivo pelo qual a interpretação dada aos seus símbolos muda de geração para geração. Como os apocalípticos tratam especialmente do fim dos dias, suas previsões não se concretizaram até hoje, e não há nada além da fé que nos faça crer que ainda se concretizarão. Mas supondo que Deus lhes tenha revelado seus planos para o fim dos tempos, ainda temos que lidar com a linguagem mitológica e simbólica que empregaram para descrever suas visões, repletas de ambiguidades. Assim, mesmo crendo, também não vejo a previsão apocalíptica como prova de que o futuro já está escrito. Os visionários vislumbraram animais de muitas cabeças, chifres e olhos, e não as coisas como realmente serão. Quer dizer que o plano divino lhes foi apresentado por meio de representações, e não como um filme dos fatos, que não existem. Deus lhes contou ludicamente o que pretende realizar, mas não lhes mostrou nada de concreto.

Outra questão precisa ser esclarecida: Se para mim não há futuro, isso não quer dizer que Deus não faz planos para o futuro. Todos fazemos planos, mas Deus, o Criador, não só faz planos como assegura que seus planos se cumprirão. Se Deus porventura fizer previsões, elas não são relatos de fatos prontos, mas de planos que Deus pretende cumprir. Deus é, portanto, capaz de fazer previsões, mas também pode mudar de idéia sem ter que reescrever o fim já determinado. Talvez isso traga alguma luz à eterna questão do “arrependimento” de Deus, que intriga todos os que começam a ler a Bíblia.

Minha conclusão é que não há destinos escritos, não há predestinações, mas projetos divinos que devem acontecer. Quando o Senhor anuncia algo que quer fazer, nós podemos dizer que já sabemos o futuro, mas ninguém, nem mesmo Deus, vê o futuro. Se algum vislumbre do porvir nos for concedido, não significa que este futuro está determinado e nada é capaz de alterá-lo. Em muitos casos, o plano divino é feito a partir das ações humanas, e mudam de acordo com a mudança das nossas atitudes.

Diante desta reflexão, não são necessárias grandes mudanças. Deus continua sendo o Criador Soberano do universo, e nosso destino continua em suas mãos. O que realmente pode mudar é nossa atitude imediata, já que deixando de se conformar com um futuro pré-estabelecido que nos leva a esperar passivamente, aceitamos a responsabilidade de trabalhar em todo o tempo em concordância com a vontade divina para que no final, o melhor destino possível nos seja concedido. O futuro, então, está sendo escrito hoje, e Deus espera que nós façamos o melhor, para escrever um final feliz para nossas histórias.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

JESUS ERA CONTRA O DIVÓRCIO?

Desta feita gostaria de falar sobre o texto de Mateus 5.31-32, que trata da sempre polêmica questão do divórcio. O assunto é relevante para a atualidade mas gera ainda muitas controvérsias, que como veremos, não se devem ao texto bíblico em si, mas às nossas próprias tradições. Antes de começar, para fazer justiça, devo dizer que boa parte das considerações que farei já haviam sido publicadas bem antes de mim por Gerhard Lohfink, que ao escrever o livro Agora Entendo a Bíblia: para você entender a crítica das formas (São Paulo: Paulinas, 1978), tratou do mesmo texto e divulgou conclusões muito semelhantes. Claro que eu também divulgo algumas novidades, ou não se justificaria meu estudo e eu apenas lhe indicaria a leitura da obra de Lohfink. Ao leitor, peço que veja este primeiro parágrafo como um prefácio, e o próximo como uma introdução metodológica. Peço desculpas por ter que introduzir o assunto falando de algumas questões mais técnicas, colocando o leitor a par de pressupostos importantes para o estudo dos evangelhos, que caso não fossem comentados, poderiam provocar dúvidas e parecer que nos contradizemos. Porém, faço isso de maneira sucinta, num só parágrafo; portanto, não desista da leitura nesta primeira página, seja perseverante. Depois dela cito o texto de Mateus 5.31-32 numa tradução minha; não se assuste se alguma coisa estiver diferente da versão que você conhece da sua Bíblia, eu vou explicar aos poucos estas diferenças. Aí sim, vou direto ao assunto evitando demasiados rodeios. No final faço algumas considerações práticas que são as partes mais importantes deste estudo.

Então, devemos dizer de pronto que a passagem sobre Jesus e o divórcio está presente não somente em Mt 5.31-32, mas também em Marcos 10.1-12 e Lucas 16.18. Poderíamos estudar todos os textos, ou escolher um deles. Já que escolhemos Mateus, é necessário justificar essa escolha. Em geral, os estudiosos concordam que sempre que um texto aparece em Mateus, Marcos e Lucas, a versão de Marcos é a mais antiga, e que os demais autores teriam copiado seu conteúdo uns 20 ou 30 anos depois. Porém, vê-se neste caso que a versão de Marcos está enriquecida com um contexto narrativo criado por ele próprio, o que torna o texto mais extenso. Nas versões de Mateus e Lucas, estão preservadas somente as palavras de Jesus, o que leva-nos a crer que aí temos uma versão mais original do dito de Jesus, fazendo-o mais útil para nosso propósito. Em seguida notamos que a versão de Mateus é mais completa que a de Lucas, que omite a citação à Lei do Antigo Testamento. Por tudo isso, preferimos Mateus para este estudo, embora as conclusões alcançadas aqui possam se aplicar à análise dos outros evangelhos sem maiores problemas.

Mateus 5.31-32

“E foi dito: ‘O que despede sua mulher, dê-lhe certidão de divórcio’. Mas eu vos digo que todo o que despede sua mulher (exceto caso de relações sexuais ilícitas) a faz adulterar, e o que casa com a despedida é feito adúltero”

Procurarei explicar a partir daqui o texto em si, mas deixa-me situar textualmente as palavras de Jesus primeiro: Estamos lendo um texto que faz parte de um conjunto de textos que vai de Mt 5.17-48, onde Jesus lembra uma série de mandamentos conhecidos do Antigo Testamente e os re-interpreta. É fácil notar uma estruturação no texto através da repetição do refrão: “Ouvistes que foi dito... Porém eu vos digo...”. Assim, o evangelho de Mateus apresenta Jesus como um seguidor da Lei, mas que possui uma interpretação própria desta Lei, que diferenciava-o e a seus seguidores dos demais judeus. Os mandamentos que Jesus interpreta e radicaliza são sobre homicídio, adultério, divórcio, juramentos, vingança e amor aos inimigos. Nosso tema no momento é apenas o divórcio.

Essas observações já nos dão alguns caminhos para interpretar o texto: Jesus cita um mandamento de conhecimento de toda a sua audiência: “E foi dito: ‘O que despede sua mulher, dê-lhe certidão de divórcio’”. Evidentemente ele está citando de memória uma tradição jurídica de Israel, que está baseada apenas na primeira parte do que podemos ler em Deuteronômio 24.1-4. Vou usar minhas próprias palavras para explicar esse texto: A Lei diz que um homem podia repudiar sua esposa caso não se agradasse mais dela, achando algo de inconveniente (Dt 24.1). Sem dúvida, esse “inconveniente” (hebr. ‘ervah) é uma palavra de interpretação ambígua que já nos tempos de Jesus gerava controvérsias. Poderíamos traduzir por “vergonha”, ou seguir outras traduções que o expressam por “coisa indecente”, “imoralidade sexual” ou “coisa feia”. A maneira como a interpretamos pode mudar completamente o sentido do texto, e nos dias de Jesus os homens justificavam seus divórcios associando a esta palavra qualquer motivo irrelevante (Lohfink, pp. 139-140).

Entregando à mulher uma carta, qualquer homem podia mandar a mulher embora, sem ter que dar qualquer explicação a juízes ou sacerdotes. Ela não é tão bonita quanto aquela? Tchau! Ela já não é tão jovem ou está sempre mal humorada? Adeus! Ou será que ela está com uma hemorragia que não cessa, que os curandeiros não resolvem, e por isso não lhe serve mais sexualmente? Tudo podia dar vazão a um divórcio, e a Escrituras, segundo a interpretação predominante, lhes autorizava a agir assim.

Notem que só os homens tinham esse poder. Na verdade, os textos de Deuteronômio e Mateus são escritos sob a ótica masculina, e esse é um elemento essencial para que os interpretemos. Jesus está, portanto, falando aos homens da sua geração, que certamente conheciam e aplicavam a Lei do Antigo Testamento a seus matrimônios da maneira que lhes era conveniente. Contudo, sob a ótica feminina as coisas seriam interpretadas de maneira bem diferente.

Em geral, a mulher no mundo antigo dependia economicamente do marido. Embora hoje os antropólogos acreditem que elas tinham maior autoridade na direção da casa, da família e na administração dos bens, a natural função matriarcal as impedia de viverem de maneira independente. Mulheres independentes, no antigo oriente, eram tratadas como prostitutas, mulheres de reputação questionável. Veja, por exemplo, o caso de Raabe, que é chamada de prostituta, mas que talvez fosse apenas uma mulher solteira, uma costureira independente economicamente, que vivia com sua família (Js 2.5,6,13). Como mais de 90% da população vivia do produto escasso que com muito suor tirava da sua roça, uma mulher despedida pelo marido via o novo casamento como a melhor opção de sobrevivência.

É exatamente isso que Jesus revela com suas palavras. Se o lermos com atenção, veremos que o texto diz que os homens estavam forçando as mulheres ao adultério quando se divorciavam delas (... o que despede sua mulher a faz adulterar). Mandar a mulher embora era o mesmo que obrigá-la ao novo casamento.

Outro ponto curioso: O adultério só é aplicado à mulher. Outra vez, a tradição bíblica é machista, pois os homens que despediram suas mulheres certamente tomavam outras esposas e não eram chamados de adúlteros por isso (Lohfink, p. 140). O adultério de Deuteronômio era um crime apenas feminino, e a Lei visa proteger a honra dos homens e também sua propriedade, e não a manutenção da instituição familiar, como hoje gostamos de pensar romanticamente. Esse aspecto machista da Lei Jesus não condena ou ao menos não menciona aqui, mas ele vê um mal ainda maior que estava por trás de toda essa tradição.

Depois, o texto do Antigo Testamento e o de Mateus pioram ainda mais a vida das mulheres ao dizer que um homem não pode se casar com uma mulher divorciada, ou torna-se adúltero também. Pronto! Agora, as mulheres que eram despedidas por qualquer capricho nem podiam encontrar outro marido para lhes sustentar! Os homens queriam mulheres virgens, e não repudiadas. Mas note que em minha tradução o texto diz que “... o que casa com a despedida é feito adúltero”. Deixei o texto assim de propósito, porque o verbo “adulterar” está na voz passiva, indicando que este homem que assume a mulher despedida como esposa é também vítima do primeiro marido, que a despediu.

Enfim, a Lei bíblica era seguida nos dias de Jesus, mas o resultado desta Lei era uma grande injustiça. Mulheres eram condenadas à desonra e à miséria; outras eram feitas adúlteras, assim como seus novos maridos; e tudo em nome de Deus. A verdade que Jesus traz à luz é que a mulher que se casa de novo e o homem que desposa uma divorciada, embora não sigam a Lei e sejam chamados de adúlteros, são melhores do que o religioso que com apoio nas Escrituras despediu sua mulher por qualquer motivo.

Coloquei entre parênteses em minha tradução de Mateus 5.31-32 algumas palavras que são reconhecidas por todos os estudiosos como um adendo de Mateus, porção que não estava no texto original que ele copiou de Marcos. Por meio deste acréscimo, me parece que o grupo de Mateus voltara a tolerar a “carta de divórcio” e a conseqüente punição da mulher somente em caso de “relações sexuais ilícitas”, sejam essas relações o que forem. Acho que essa correção não foi uma boa idéia de Mateus, pois esse adendo poderia gerar novas interpretações duvidosas, e invalidar toda a mensagem de Jesus conduzindo-os de volta à antiga condição. Mas deixemos esse problema de lado e sigamos à conclusão?

O Jesus de Mateus não vê problema na Lei do Antigo Testamento, embora ela seja, como já mostramos, escrita exclusivamente sob uma ótica masculina. O adultério só existia quando mulheres se envolviam com outras pessoas que não seus primeiros maridos, ou quando homens se envolviam com mulheres divorciadas. Porém, havia uma brecha na Lei que levou a hipocrisia masculina a um nível intolerável. Eles despediam suas mulheres não quando elas os traíam, mas por qualquer coisa, sem preocupar-se com a vida delas depois disso. Era uma atitude que fundamentavam citando a Bíblia, mas que na realidade era motivada por puro egoísmo, por uma completa ausência de amor humano. Jesus volta-se contra essa “brecha”, revela a crueldade que está por trás da interpretação adotada pelos homens do seu tempo.

Segundo esta leitura, a ação de Jesus não parece dedicada em primeiro plano à questão do divórcio ou ao adultério, mas à injustiça resultante de divórcios injustificados. Daí podemos fazer algumas considerações mais práticas, para que este estudo nos sirva bem no dia a dia:

1) Jesus não discute a validade da Lei, mas a interpretação que se faz dela, mostrando-nos como é fácil usar a Bíblia para justificar nossos atos injustos. Eis aí uma evidência de como é importante levar a sério o estudo da Bíblia. Em todo caso, não é preciso saber grego, mas interpretar a Bíblia juntamente com a vida, priorizando sempre o amor ao próximo, mesmo quando amar significa deixar passar algum versículo “despercebido”;

2) Se no exemplo que lemos Jesus mostrou-se contra o divórcio, foi porque o resultado deste ato era a incapacidade de ser feliz das mulheres depois de divorciadas. Hoje esse problema praticamente não existe fora da igreja, pois as mulheres são independentes economicamente, ou podem ser se assim quiserem. O mesmo argumento não pode ser empregado para defender a indissolubilidade do matrimônio nos dias de hoje;

3) Jesus não atacou diretamente a carta de divórcio de Moisés, seu problema era salvar a vida de muitas mulheres que sofriam por tal costume. Hoje, muitas pessoas querem abolir a opção do divórcio tratando-o como pecado imperdoável, mas ao fazerem isso acabam produzindo novas injustiças com pessoas que se divorciaram. Tratar quem se divorciou com preconceito, negar-lhes novas oportunidades, é em certa medida voltar à injustiça que Jesus condenou. Veja que Jesus tratou o segundo marido “adúltero” como uma vítima, e não o condenou. Meu conselho é este: prefira a companhia dos divorciados do que a companhia dos moralistas, lembre-se que Jesus andou com prostitutas, mas não com fariseus;

4) Pelo menos no texto que lemos Jesus não mudou o conceito machista de adultério que sua sociedade tinha; mas julgamos que ele estava no caminho. A busca por justiça de Jesus era também uma luta pela dignidade das mulheres. Nós já caminhamos dois mil anos e temos superado a maior parte desse problema; temos mudado essa desigualdade de gêneros e hoje reconhecemos que todas as pessoas possuem os mesmos direitos. Assim sendo, quando lemos um texto como esse em nossos dias, temos que escolher entre duas opções: Ou nós concertamos o machismo exposto na Lei bíblica negando qualquer “carta de divórcio” e aceitamos que os homens podem ser adúlteros, proibindo assim qualquer tipo de relacionamento fora do primeiro casamento, ou damos “carta de divórcio” a homens e mulheres, direitos iguais de começar de novo suas vidas em novos relacionamentos. Em ambos os casos, estejamos também conscientes de que estamos nos distanciando do que a Bíblia realmente diz; mas se optarmos pela segunda opção, ao nos distanciarmos da Lei também nos aproximamos do amor que Deus nos ensinou e que supera toda aplicação rígida de mandamentos.

Por hora já basta! Minha tentativa nestas páginas foi usar a prática exegética que geralmente é tão acadêmica, numa linguagem mais acessível. Por isso não cito textos gregos ou hebraicos, não examino variantes textuais nos manuscritos, não uso notas de rodapé, não forneço referências bibliográficas para todas as afirmações que faço, etc. Peço, então, desculpas aos amigos exegetas que esperavam tais coisas deste breve trabalho. Coloquei-me aqui a serviço da igreja, e não dos acadêmicos, coisa que raramente tenho feito. O objetivo deste estudo, que preparei em apenas 3 horas, será atingido quando ao ser lido ele dissolver algumas dúvidas comuns dos cristãos de hoje, quando ajudar as igrejas a aplicar os textos bíblicos de maneira mais coerente com as exigências da vida moderna, e quando consolar o coração de pessoas que como eu divorciaram-se, e ouviram de outros que cedo ou tarde acabariam por pagar pelo pecado cometido. Creiam que é possível ser mais feliz depois do divórcio do que antes dele, e que não há nada de demoníaco em aceitar essa felicidade.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

O MUNDO DÁ VOLTAS

Nascido na periferia com uma moradia sonhou
Queria jogar na Espanha e comida e sua mesa faltou
Criado pela mãe solteira, desde cedo ele trabalhou
Amor com açoite ele teve até que a idade chegou

E o menino pobre um dia falou: Deus, como fui feliz!

Nascido bebê de provêta, teve tudo que desejou
Sua casa era grande e formosa e comida em sua mesa sobrou
Criado pela empregada, desde cedo ele mandou
Toda regalia ele teve até que idade chegou

E o menino rico um dia falou: Deus, como fui infeliz!

O mundo dá voltas. Hora é sim, hora é não
Por que tanto importa viver de ilusão?



Letra da música "O Mundo dá Voltas", que escrevi em 2007.