terça-feira, 20 de dezembro de 2011

EX-AMOR - SAMBA




http://www.youtube.com/watch?v=m9eKbqdIlBA&feature=youtu.be

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

POR QUE OS CRENTES NÃO SABEM LER A BÍBLIA?

A reflexão que vos proponho já começa com um problema: o título. Quem disse que os crentes não sabem ler a Bíblia? Bem, eu disse, é minha a afirmação. Vou tentar justificar minha posição nas próximas linhas, mas pode ser que estas não sejam suficientes para alguns leitores.

Como professor de interpretação bíblica e exegeta, não tenho dúvida de que os crentes (epíteto que aplico aqui aos que crêem na própria sacralidade da Bíblia nos círculos cristãos) são maus leitores. Quando tenho o raro privilégio de ver alguém “de fora” lendo a Bíblia, noto imediatamente que a falta de fé libera o leitor para descobrir no texto sentidos muito mais ricos. Todavia, não posso negar que o prestígio que a Bíblia alcançou em nossa sociedade se deve à má leitura dos crentes. Foram eles que me imputaram o amor pelo texto bíblico, e também foram eles que afastaram e afastam os não cristãos da Bíblia, posto que quem não lê a Bíblia, pensa que a lê nos comportamentos dos crentes, que convenhamos, não é nada bíblico.

Mas tenho um motivo muito específico para evocar esta discussão hoje. Quero tentar explicar como se dá a leitura do crente empregando aqui um referencial teórico da linguística. Esta explicação não é a única, não esgota a questão, mas ao menos deve lhe acrescentar algo. Passo então à parte mais técnica deste breve ensaio, onde vamos tratar das chamadas “instâncias da enunciação”.

1 – Quem é o autor da Bíblia?

Há muito tempo criou-se algumas categorias que pretendiam distinguir devidamente os níveis ou instâncias envolvidas num ato de comunicação entre seres-humanos. Eu tenho trabalhado isso com afinco nos meus textos sobre interpretação bíblica, mas quero fornecer aqui uma espécie de resumo simplificado desta teoria. Para começar, todo ato de comunicação, seja ela por meio da fala, da escrita, da pintura ou de qualquer outra forma, sempre pressupõe dois lados. Um lado é o do indivíduo que comunica, e o outro o do que recebe a comunicação. Se eu falo ou escrevo, obviamente penso que alguém me ouve ou lê, e por isso sempre há um receptor da minha comunicação, ao menos na minha imaginação.

Contudo, as coisas são mais complexas, pois entre estes dois lados, passa a existir a comunicação ou enunciado como preferem alguns. Este é o conteúdo da comunicação, minha carta, música, quadro... Aí é importante notar que esta comunicação, depois de criada, é independente do seu autor ou leitor. Por exemplo, eu posso escrever aqui mesmo um parágrafo que não corresponde exatamente àquilo em que acredito, posso falar de mim mesmo de maneira falsa, me retratando como um personagem cheio de virtudes, ou posso falar dos meus alunos sem, contudo, expressar o que eles realmente são. Assim, o enunciado não pode nos dizer tudo sobre o comunicador ou sobre o receptor.

Para finalizar, o problema cresce quando, por meio da análise de um enunciado, tentamos recriar ou criar a personalidade do seu produtor ou de seus destinatários. Um texto pode nos dar informações sobre seu autor, mas não sabemos se estas correspondem à realidade, e por isso, no fim das contas só teremos mesmo acesso a um autor-personagem, ou autor-implícito, que só existe no nível textual, mas que pode não corresponder em nada ao real autor do texto. O mesmo ocorre com o destinatário, que até mesmo na mente do autor podia corresponder a uma imagem deturpada do destinatário real a quem ele pretendia comunicar. Chamo de leitor-implícito aquele destinatário inaginário para quem um texto quer se dirigir.

Essas instâncias da enunciação estão bem estabelecidas há séculos, mas ainda não foram assimiladas pelos leitores não especializados da Bíblia (e de qualquer outro tipo de literatura), talvez porque os teóricos ainda não conseguiram expô-las de maneira simples. Enfim, vamos ver algumas das implicações que estas informações trazem para a leitura bíblica:

1) A Bíblia é um conjunto de enunciados, e ao lermos suas páginas, não temos acesso real nem aos autores nem aos destinatários destes enunciados; daí descobrimos que nossas análises de seus textos sempre se resumem ao estudo de conteúdos que não correspondem, ou melhor, não sabemos quanto correspondem, à realidade histórica. Noutras palavras, ler a Bíblia não é ver os fatos como aconteceram (se é que aconteceram), é ler narrativas fictícias que podem ou não inspirar-se em fatos. Para o estudo da Bíblia, o melhor a fazer é dedicar-se ao seu conteúdo sem ansiedade, sem fazer relações com a história. Os eventos narrados e os personagens que atuam não precisam ter existido para que o conteúdo bíblico nos comunique sua mensagem.

2) Ignorando a necessidade de distinguir as instâncias narrativas, a tradição criou autores, leitores, e deu uma falsa historicidade a eles e aos personagens bíblicos, de modo que hoje, mais que o conteúdo dos textos, estas tradições se tornaram importantes fontes de informações para os leitores da Bíblia. Assim, antes de lermos as cartas de Paulo e as avaliarmos, somos instruídos sobre a erudição e a coragem do apóstolo.

Por isso fiz no início deste item a pergunta: quem é o autor da Bíblia? Esta pergunta é muito importante para nossa discussão, pois determina todo o entendimento que alguém pode ter dos textos. Vamos à próxima seção, onde quero demonstrar onde exatamente se encontra o erro dos crentes.

2 – A Bíblia não traz Contos de Fadas Reais

Quando um crente abre uma Bíblia, ele primeiro ignora a distância cheia de subjetividade que separa um texto de seu autor. Os textos bíblicos, mais ainda, na maioria das vezes não nos dizem nada sobre sua autoria, datação, ou mesmo em que circunstâncias foram produzidos; estas informações, quase sempre são retiradas ou da tradição cristã (que não é segura) ou de informações indiretas tiradas dos textos. Se o crente soubesse quão problemático é aplicar tais dados à leitura dos textos, os deixaria de lado e aproveitaria as narrativas como faz o descrente, mas como não sabe, apropria-se de numerosas fábulas sobre os heróicos apóstolos e profetas e então passa às leituras imaginando que os contos de fadas um dia foram reais.

E isso pode ficar pior. O leitor crente não só confia demasiadamente nos mitos sobre os personagens bíblicos como também possui uma estranha concepção de “inspiração divina” para cada palavra ali registrada. A Bíblia é a Palavra de Deus para o crente, o que infelizmente quer dizer para ele que Deus é um escritor. E se Deus é um escritor, ele deve ser o mais hábil de todos os escritores, não esquece nada, não mente, não comete erros ortográficos... O crente mesmo não sabe explicar bem como se dá essa autoria divino-humana (que neste caso são super-homens, pessoas escolhidas que também não cometeriam erros), então escolhe como lhe convém se um texto é mais divino ou humano. Quando alguém mostra ter encontrado um problema, um erro, uma contradição, ou uma informação que historicamente não se confirma, esse alguém é rebatido com um argumento religioso, e ponto final.

Outra consequência problemática dessa ideia sobre autoria é a de que as narrativas bíblicas são diferentes de todas as outras narrativas do mundo. Só as narrativas bíblicas correspondem aos fatos, posto que por motivo que ainda ignoro, a ideia que os crentes fazem de Deus não permite que ele faça brincadeiras ou conte histórias fictícias. Dizer que alguma narrativa bíblica é mítica é um pecado para o crente, mas para o resto do mundo, certamente é mais pecado dizer que as narrativas bíblicas são históricas. Bastaria lê-las como lemos qualquer outro texto da antiguidade.

O resultado inevitável da prévia e impensada aceitação desses pressupostos equivocados sobre autoria, só pode ser a má leitura de que falei desde o título. Hoje não hesito em dizer que os crentes, os que mais lêem e veneram a Bíblia, são também os que menos desfrutam da riqueza de seu conteúdo. Para o crente a Bíblia quando é lida alimenta a fé, tira-o do mundo e de alguma forma o põe em contato com o Reino de Deus. Essa espécie de experiência religiosa, mais induzida pelas doutrinas do que propriamente mística, deixa de existir quando o estudioso da Bíblia deixa de ler a Bíblia sempre por meio da interpretação dogmática da sua igreja, e deixa também de estudar através das publicações das editoras também cristãs. Não fossem aquelas asserções, leríamos a Bíblia de outra maneira, a entenderíamos melhor, e negaríamos as opressões religiosas que as pessoas aceitam passivamente.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

O SERMÃO DA MONTANHA (Mt 5-7): INTRODUÇÃO

O Evangelho de Mateus nos apresentou Jesus nos seus primeiros capítulos utilizando-se de narrativas, de apropriação de profecias, criando uma história mítica, teologicamente relevante, que nos levou a identificar Jesus mais como Messias que traz em si muitas das expectativas religiosas daquela cultura, do que como o homem que ele realmente pode ter sido. A partir de agora, ele vai agora nos aproximar de Jesus através de uma nova estratégia literária, vai nos colocar no lugar de ouvintes, de onde poderemos conhecer parte do conteúdo que, segundo o evangelista, Jesus ensinava. Temos dos capítulos 5 a 7 do evangelho uma grande coleção de textos formulados como um grande discurso às multidões que seguiam Jesus.

Embora este discurso tenha sido construído com abundante material herdado de fontes mais antigas que o Evangelho de Mateus, a verdade é que ele está direcionado para o grupo mateano (Overman, 1999, p. 103), o que levou Paulo R. Garcia a denominá-lo como um “código de pertença à comunidade de fé” (2001, p. 185). Empregando a autoridade de Moisés e de outros célebres personagens vétero-testamentários e aplicando-as a Jesus,[1] Mateus o faz subir a montanha e de lá proclamar a Lei dos judeu-cristãos, a fim que eles se vejam como os fiéis praticantes da Torah, e não como dissidentes seguidores de um líder subversivo que foi morto. Nesta construção, a referência topográfica (montanha) é muito significativa; mais uma vez, não poderemos ignorar os paralelos intertextuais que existem entre os atos e a missão de Jesus com os atos e a missão de Moisés. A subida de 4.25-5.2 marca o início desse conjunto literário cuja moldura se fecha em 7.28-8.1, quando Jesus acaba o seu discurso e desce do monte com muitos seguidores. Vejamos o quadro comparativo das expressões usadas nas duas extremidades dessa moldura, conforme nossa adaptação da proposta de Dale Christian Allison (1987, p. 192):

A) Grandes multidões o seguiram (4.25)

B) Subiu a monhanha (5.1)

C) Ensinava-os (5.2)

C’) Ensinava-os (7.29)

B’) Descendo ele da montanha (8.1)

A’) Grandes multidões o seguiram (8.1)

Esta é a primeira evidência de que o primeiro discurso de Jesus foi composto com grande esmero estrutural. Se o autor dedicou tanta atenção para fazer de seu livro uma obra formalmente criativa, quanto mais atenção dermos a esta característica, mais proveitosa será nossa leitura. Passaremos então, a partir da próxima seção, e comentar cada uma das unidades textuais deste grande discurso sem perder de vista a idéia de que nele, cada passagem foi cuidadosamente encadeada num lugar estratégico.



[1] Veja por exemplo Moisés em Êxodo 19.3; 24.12-13,18; 34.2,4; Dt 9.9; 10.1,3, depois Abraão em Gn 22.2,14, e também Elias nos montes Carmelo e Horebe em 1Rs 18.18-46; 19.8-18.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O DIABO E OS EVANGÉLICOS – EXORCISMOS COLETIVOS NA MÚSICA EVANGÉLICA

Nesta última postagem sobre o tema do Diabo entre os evangélicos vamos tratar brevemente de uma canção intitulada “Levanta-te Senhor”, de Marcos Witt,[1] cantor evangélico mexicano muito popular na América Latina e nos Estados Unidos. No Brasil, há em São Paulo até uma filial do chamado “Instituto Canzion”,[2] instituição idealizada por Marcos Witt e sua irmã Lorena para a formação de “ministros de louvor”.

Há apenas algumas observações a serem feitas. Primeiro, observamos superficialmente que as evangélicas brasileiras parecem receber influências dos círculos pentecostais latino americanos quando o assunto gira em torno das imagens de Satanás e seus demônios de forma mais radical. Neste trabalho não procuramos aprofundar essa constatação, pelo que deixamos os leitores interessados encarregados dessa pesquisa. Para começar a análise, a canção que foi gravada em português e que pode ser ouvida em inúmeras igrejas evangélicas traz uma evocação dizendo: “Levanta-te, levanta-te Senhor”. Daí foi extraído o próprio título da canção (Levanta-te Senhor). Deus é evocado para entrar na guerra e dispersar os inimigos.

Fujam diante de Ti os Teus inimigos

Se dispersem diante de Ti

Todos aqueles que aborrecem Tua presença

Essas primeiras estrofes da canção são evidentemente adaptações de uma passagem do Antigo Testamento, mais precisamente de Números 10.35, que diz: “Era, pois, que, partindo a arca, Moisés dizia: Levanta-te, SENHOR, e dissipados sejam os teus inimigos, e fujam diante de ti os aborrecedores”. O compositor se apropria neste caso de algumas palavras que segundo o narrador de números eram ditas por Moisés sempre que o povo de Israel, que peregrinava pelo deserto, levantava seu acampamento e partia levando para outro lugar levando a “arca da aliança”. Ou seja, o Deus de Israel os guiava e os protegia, era uma entidade convidada a ir diante do povo enquanto andavam e a permanecer com eles quando acampavam. O versículo é empregado na canção de maneira própria, mas também evoca Deus no sentido religioso e militar. Agora não há peregrinos, mas este Deus guerreiro é chamado para auxiliar o povo que canta em suas batalhas contra os inimigos.

Essa questão dos inimigos é particularmente curiosa, pois a princípio, ao apresentá-los, a canção trata de reinos, monarquias, impérios, principados...:

Tua presença reinará sobre todo império

Tua presença reinará, governará sobre todo principado

Se nos limitarmos a ler as palavras a partir de suas relações e oposições semânticas, julgaremos erroneamente que estamos falando de batalhas militares entre poderes políticos, mas este discurso se dá agora num ambiente eclesiástico, onde os signos devem ser lidos a partir de outras referências. Agora, é o Novo Testamento em sua leitura fundamentalista que funciona como elemento formador da linguagem evangélica, que nos oferece os discursos mais úteis para entender o uso religioso dos vocábulos. Primeiro, quando a canção nos diz que a presença de Deus reina, nos faz lembrar do “Reino de Deus”, expressão comum nos evangelhos que desde então já não se refere somente ao poder monárquico e a um domínio territorial, mas que diz respeito às expectativas apocalípticas de transformação da realidade por meio de uma intervenção poderosa e definitiva de Deus. Do mesmo modo, para entender termos políticos como “império” e “principado” temos que nos voltar para o Novo Testamento, talvez agora para as cartas paulinas e deutero-paulinas, que transmitiram aos cristãos de todas as gerações o sentido religioso e demoníaco que se pode dar aos “impérios” e “principados” (1Co 15.24; Ef 1.21). Ali também a expectativa apocalíptica aparece nas afirmações de que estes poderes demoníacos que governam o mundo serão aniquilados quando Deus impor pela força o seu domínio pleno.

Mas a canção ainda segue com uma terceira parte ainda mais curiosa, onde há verdadeiros “exorcismos”. O cantor nomeia diferentes “espíritos”, na verdade chamando-os pela suposta influência que eles exercem sobre os seres humanos. Assim, temos o “espírito de temor”, de “maldade”, de “rancor”, de “prostituição”, de “enfermidade”, e os contraditórios espíritos de “ambição” e “miséria”... Após o cantor evocar estes espíritos, os ouvintes devem em uníssono expulsar os tais ordenando: “fora!”. Trata-se aí de uma canção que é quase um ritual de libertação coletiva, talvez com relações indiretas com a ideia de que o cristão que sofre algum tipo de ataque externo de demônios pode libertar-se a si mesmo.

Há evidentes dificuldades hermenêuticas na canção. Embora nossa análise tenha sido apenas introdutória, já foi possível notar que textos diversos e cuja origem e contexto históricos são bem distintos são aplicados em conjunto; esta forma de apropriação é bastante comum à leitura bíblica religiosa, especialmente à fundamentalista. Não há barreiras para se afirmar que o Deus que se levantava com os judeus peregrinos agora se levanta com todo cristão que precisa combater as forças das trevas; ele luta junto deles não mais contra as nações vizinhas que deveriam ser expulsas da terra de Canaã, mas contra poderes espirituais que exercem diferentes formas de poder e controle neste mundo. A presença de Deus e a vinda do Reino também perderam na leitura seu caráter apocalíptico de esperança escatológica; já não dizem respeito ao futuro, mas ao exato momento em que se canta e expulsa demônios coletivamente. Também notamos que embora os demônios continuem a princípio sendo tratados como impérios e principados como na tradição paulina, a preocupação atual já não é territorial; agora importa o domínio que eles exercem sobre o indivíduo, o que é uma nova redução do coletivo para o pessoal, tendência típica da religiosidade destes nossos dias.

Referências Bibliográficas

BROWN, Rebecca. Ele Veio para Libertar os Cativos. Rio de Janeiro: Danprewan, 1996.

BROWN, Rebecca. Prepare-se para a Guerra. Rio de Janeiro: Danprewan, 1998.

BROWN, Rebecca. Vaso para Honra. Rio de Janeiro: Danprewan, 2001.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e Discurso: Modos de Organização. São Paulo: Contexto, 2010.

GINZBURG, Carlo. Controlando a Evidência: O Juiz e o Historiador. In. NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da (orgs.). Nova História em Perspectiva (Vol. 1 - Propostas e Desdobramentos). São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 341-358.

GOFFMAN, Erving. Estigma: Notas sobre a Manipulação da Identidade Deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 1988.

KOLAKOWSKI, Leszek. O Diabo. In. Religião e Sociedade, n. 12/2, 1985, p. 4-22.

NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da (orgs.). Nova História em Perspectiva (Vol. 1 - Propostas e Desdobramentos). São Paulo: Cosac Naify, 2011.

OLIVA, Alfredo dos Santos. A História do Diabo no Brasil. São Paulo: Fonte Editorial, 2007.

ORO, Ivo Pedro. O Outro é o Demônio: Uma Análise Sociológica do Fundamentalismo. São Paulo: Paulus, 1996.

RICOEUR, Paul. O Mal: Um Desafio à Filosofia e à Teologia. Campinas: Papirus, 1988.

SCHWARTZ, Seth. Were the Jews a Mediterranean Society? Reciprocity and Solidarity in Ancient Judaism. Princeton/Oxford: Princeton University Press, 2010.

SEBASTIÃO, Andréa dos Reis. A Crença no Arrebatamento da Igreja: Seus Desenvolvimentos e Transformações Imagéticas. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (Dissertação de Mestrado), 2010.

SILVA, Valmor da. Os Poderes do Mal e as Máscaras do Diabo. In. Pistis e Praxis, v. 3, n. 1, 2011, p. 121-135.

WHITE, Hayden. A Questão da Narrativa na Teoria Histórica Contemporânea. In. NOVAIS, Fernando A.; SILVA, Rogério F. da (orgs.). Nova História em Perspectiva (Vol. 1 - Propostas e Desdobramentos). São Paulo: Cosac Naify, 2011, p. 438-483.Justificar



[1] marcoswitt.net

[2] http://www.institutocanzion.com.br/

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

O DIABO E OS EVANGÉLICOS – OCULTISMO NAS OBRAS DE REBECCA BROWN


Rebecca Brown é o pseudônimo de uma ex-médica chamada Ruth Irene Bailey, que se tornou conhecida internacionalmente como autora evangélica. Um dos seus livros que ficaram famosos no Brasil é “Ele Veio para Libertar os Cativos”, obra que fez com que Rebecca Brown fosse um dos autores mais lidos nas igrejas evangélicas durante a década de 90. Neste livro e nos demais ela conta sua trajetória como alguém que ajudava pessoas a se libertar do ocultismo nos Estados Unidos. Uma personagem importante das histórias de Brown é uma mulher chamada Elaine, descrita como uma grande ex-sacerdotisa do satanismo, e que após tomar a decisão de abandonar a “Irmandade”, sofre retaliações diversas por parte dos satanistas. Os livros de Brown relatam as lutas das mulheres contra os satanistas, supostamente desvenda a influência dos tais na política e na economia norte americana e mundial, assim como revela seus sinais de identificação e suas estratégias de infiltração nas igrejas cristãs. Também descrevem os rituais de sacrifícios humanos praticados em determinados sábados do ano (Black Sabbath), e afirmam que os satanistas possuem o poder de sair dos corpos e em espírito viajar para qualquer lugar, não havendo lugares seguros para elas, que então tinham que sofrer e refugiar-se na fé cristã.

Apesar de serem contextualizados nos Estados Unidos, e narrarem histórias que mais parecem roteiros de filmes de terror, os evangélicos brasileiros receberam bem os livros e em certos meios até surgiram certas superstições baseadas nas histórias de Brown. Logo outros títulos similares surgiram no mercado editorial brasileiro, dentre eles os de Daniel e Isabela Mistral intitulados “Filhos do Fogo” (2 volumes) e “Guerreiros da Luz” (2 volumes). Mas da mesma maneira como Rebecca Brown “explodiu”, também foi sufocada. Organizações religiosas passaram a investigar a autora e a publicar artigos que negavam a veracidade dos fatos narrados nos livros. Dentre as informações que desde então são empregadas para deslegitimar Rebecca Brown e suas histórias, estão estas: Além da identidade falsa que a autora usava, descobriu-se que ela teve sua licença médica cassada por imperícia e medicação imprópria a seus pacientes. A personagem Elaine também trata-se de um pseudônimo, e foi identificada na realidade como Edna Moses, uma mulher com instabilidade mental que conheceu Brown quando esta fazia residência médica em 1980.

Rebecca Brown lidera atualmente um grupo cristão chamado “Guerreiros da Colheita” ao lado do marido. E há até edições de seu Best-Seller “Ele Veio para Libertar os Cativos” em quadrinhos. No entanto, sua influência na formação de uma imagem personificada do mal a partir do satanismo norte americano já não é tão relevante no cenário brasileiro.

Aqui talvez tenhamos espaço uma breve discussão mais técnica sobre como a sociedade brasileira em seu recorte “evangélico” lida com a verdade e a mentira nas fontes de informação. Queremos chamar a atenção para o fato de que mesmo o caráter fortemente ficcional dos livros de Rebecca Brown não incomodaram os leitores até que surgissem opositores que atacassem moralmente a autora. Nosso estranhamento se dá porque sabemos que toda narrativa possui um forte elemento ficcional, e isso mesmo quando estamos falando de narrativas históricas, que procuram encadear fatos supostamente reais, que foram produzidas por cientistas que analisaram suas fontes criticamente e “reconstruíram” o passado. Mesmo na narrativa história, o autor não só descreve eventos como também os posiciona numa sequência temporal que é fictícia, num cenário ou mundo fictício, e faz com que os fatos sigam uma sequência de ações (enredo) que está sob o controle do narrador. Tais características levam os linguistas a afirmar que toda narrativa é ideológica (Charaudeau, 2010, p. 153-156). Para Hayden White, toda narrativa que pretende ser histórica possui tanto um “conteúdo”, nome que ele dá aos eventos extraídos da análise das fontes documentais, quanto uma série de ornamentos, que são recursos mais ou menos artísticos não tão seguros, mas que são indispensáveis para a “dramatização”. Para White, sem estes recursos da narratividade que imita a vida, a historiografia voltaria à tradição cronística (2011, p. 464).

Porém, a hermenêutica praticada nos círculos evangélicos lida com a Bíblia e com outras fontes de informação de maneira demasiadamente crédula. Os textos bíblicos e as criações do próprio “mundo evangélico” são recebidas como verdades até que alguém prove o contrário. Por isso é tão fácil manipular esses grupos, que recebem informações sem qualquer senso crítico. Brown, enquanto escritora, talvez criasse narrativas totalmente fictícias, ou quem sabe romanceava os fatos como qualquer biógrafo faz, mas seus leitores ignoraram o inevitável fator criativo dos seus textos por conta de seus hábitos positivistas, adquiridos ou desenvolvidos mesmo pela leitura evangélica da Bíblia. Depois, críticos também fundamentalistas atacaram não as obras Brown em si, mas a reputação da autora, para transformar suas histórias em completas mentiras. Se os livros tinham algum valor como literatura, agora é este valor que é ignorado, posto que a expectativa do leitor era por “fatos”, ainda que os “fatos” fossem de homens que recebiam poderes demoníacos e saíam do corpo para atacar uma mulher em seu leito.

Mais uma vez, foi possível constatarmos como se dá a recepção de imagens do mal personificado entre os evangélicos, mas agora, com um elemento novo a destacar; os evangélicos são abertos às influências advindas de evangélicos, confiam naqueles que aparentemente se encontram do lado de dentro dos seus “muros”. Todavia, quando Brown foi expulsa do circulo evangélico por alguns, rejeitada por conta de supostas falhas morais, também suas obras foram rejeitadas por muitos. A avaliação que se fez da obra estava baseada na ideia de uma proximidade social, ou seja, Brown e os leitores eram “irmãos”. Com o fim desse laço evangélico, ela será estigmatizada, o que não nos impede de encontrar em suas obras algumas curiosidades sobre a formação desse imaginário religioso.