terça-feira, 15 de julho de 2008

O PÃO NOSSO DE CADA DIA

O que mais te chama a atenção na Bíblia? Para mim, além de seu valor religiosos, a Bíblia é também um livro admirável tanto como literatura como documento histórico. Diferente da maior parte dos outros “tesouros” literários da antiguidade, que foram escritos por pessoas privilegiadas, que tiveram boa educação, dinheiro, ou que viveram em cortes e escreviam para exaltar o nome dos seus reis e imperadores, a Bíblia é um livro do povo. Para mim isso é algo fantástico!

Com algumas exceções, os textos que foram reunidos e hoje compõem o livro que regulamenta a nossa fé são obras de pobres e oprimidos. Seus autores, os israelitas, o desenvolveram enquanto viviam ameaças de dominação estrangeira, quando eram cativos na Babilônia, quando tinham que lutar para manter o direito de viver na sua terra e plantar o seu alimento, enquanto suavam no trabalho agrário para superar a terra seca e ainda tinham que pagar tributos abusivos que os reis investiam em luxo e guerra. A Bíblia é, portanto, a voz do povo. Suas reivindicações, seus sonhos, sua fé, não é nada mais que a expressão do homem simples, pai de família que trabalhava na roça de sol a sol e da dona de casa que criava os filhos regulando a comida para que não faltasse no dia seguinte. Esse é o livro dos pobres, o povo de Deus.

Você já notou como as pessoas mais simples são pessoas de fé? Por isso a Bíblia é tão rica em transmitir-nos mensagens que estimulam a fé. Mas há na Bíblia algumas coisas que se repetem freqüentemente, expressões espontâneas dos desejos profundos daquele povo humilde que nós curiosamente ignoramos ao ler o texto sagrado. Me refiro ao clamor pela terra e pelo pão. Esse era o grande sonho daquela gente cheia de fé.

Veja como eles davam importâncias às promessas de Deus quando se referiam a terra: Em Gn 12 Abrão recebe a promessa de que receberia uma grande terra, fértil para produzir muito e alimentar toda a sua grande descendência. A esperança no Êxodo não é somente a libertação, mas também a terra fértil que mana leite e mel (Êx 3.8). O profeta Miquéias anuncia o direito à propriedade nos seguintes termos: “... assentar-se-á cada um debaixo da sua videira e debaixo da sua figueira, e não haverá quem os espante” (Mq 4.4). Jesus, como bom galileu sem grandes posses, também dava valor a terra e dizia que quando a justiça de Deus se manifestasse, todos teriam sua própria terra. Ele disse em Mt 5.4: “Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra”. E como último exemplo, quero lembrar-lhes que a esperança para o fim dos tempos, para a vida após a morte, também inclui a terra, mas desta vez, um novo céu e uma nova terra compatíveis com nossa condição de seres transformados e imortais (Ap 21.1).

Vimos que o sonho da casa própria não é coisa dos tempos modernos, e que este é também o desejo de Deus para cada um de nós. Todavia, para os israelitas a terra não tinha apenas o propósito de servir de lar e abrigo, era também o meio de sustento da maioria das famílias. A terra era para ser cultivada, era o emprego dos homens, a escola das crianças, o lar das mulheres. O salário que eles esperavam não compraria TV’s de plasma, apenas alimentaria a família e os seus animais, era para o pão de cada dia.

O direito ao pão também percorre as páginas da Bíblia inteira. Os relatos do Êxodo sobre o maná ensinavam os israelitas de todas as gerações a confiar em Deus para a provisão do pão, mostrava-lhes que tudo vem dos céus, de Deus; e também ensinava-lhes a não acumular, a não desejar ter sobras e enriquecer, pois o resultado dessa ganância exacerbada é a falta na mesa do próximo e a punição do Senhor para os gananciosos (Êx 16). Na igreja primitiva, lemos que os irmãos não tinham falta de nada pois partiam o pão entre eles suprindo a necessidade uns dos outros (At 2.42). Finalmente, a mais famosa oração já feita diz: “... o pão nosso de cada dia dá-nos hoje” (Mt 6.11).

Enfim, a Bíblia é mesmo o livro do povo, que fala das suas necessidades e da sua fé; conseqüentemente, é até contraditório se dizer cristão e negar ao próximo o pão de cada dia, o direito da casa própria, a oportunidade de trabalho. Deus ama os pobres, e a igreja deveria apresentar as mesmas preocupações, lutar pelos mesmos interesses. Como irmãos, deveríamos partir o pão, não acumular para que não se apodreça diante de nós aquilo que falta na mesa do povo de Deus. Lutar pela terra e pelo pão para todos é viver em conformidade com os princípios bíblicos.

sexta-feira, 11 de julho de 2008

BREVE HISTÓRIA DA PROFECIA BÍBLICA

É uma tarefa difícil falar sobre as origens da profecia, já que, ao contrário do que se possa pensar, a atividade profética não se limita à antiga nação israelita e nem tampouco à Bíblia. A abrangência do tema “profecia” torna necessário que os pesquisadores da área busquem pistas em toda a história das religiões, tarefa esta que excede os limites deste breve trabalho. Assim sendo, comecemos intitulando o presente trabalho de “breve história da profecia bíblica”, para que somente busquemos nas páginas das Escrituras bíblicas as informações necessárias para descrever a evolução da profecia em Israel no período de tempo em que os livros do Antigo e Novo Testamentos foram escritos.
Os profetas propriamente ditos, aqueles que caracterizaram a porção da Bíblia que nós chamamos de “profetas”, atuaram principalmente a partir do século VIII a.C. Antes deles, personagens do Antigo Testamento que posteriormente foram associados à atividade profética eram conhecidos como “videntes”. Esse parece ser o caso, por exemplo, do influente Samuel. Esses videntes do Antigo Testamento já apresentavam características que seriam preservadas pela história da profecia bíblica como os anúncios públicos dos oráculos recebidos em momentos de transe. Servindo como intermediários entre os homens e as divindades, os videntes cobravam por suas consultas, e alguns deles chegavam a ganhar fama, sendo procurados por pessoas de regiões distantes.
O vidente Samuel marca um período de transição bastante significativo para a história da profecia bíblica, pois coincide com sua atuação a instituição da monarquia em Israel. Essa mudança política influenciaria definitivamente a religião nacional e seus porta-vozes. Personagens populares desse novo momento na história da profecia bíblica são Elias e Eliseu, chamados por alguns biblistas de “profetas de ação”, pois diferentemente dos profetas que atuaram a partir do século VIII a.C., não tiveram sua mensagem preservada em forma escrita a não ser séculos depois da sua morte. A história desses profetas foi preservada parcialmente através da tradição oral que testemunhava de uma geração à outra suas milagrosas atuações que de maneira “lúdica”, falavam ao povo comum e às lideranças políticas e religiosas sobre as vontades de Deus. Vale à pena lembrar que no cânon hebraico, os livros que registram os atos de Samuel, Elias e Eliseu não são considerados históricos como normalmente são classificados hoje, mas livros proféticos “pré-literários”.

Fortemente marcados pela realidade opressora imposta pela administração de uma monarquia (que tirava do povo comum dependente quase que completamente da agricultura ou da criação de animais os recursos para suprir sua abastada corte e seu exército), o discurso profético passa a ser cada vez mais uma forte crítica contra reis e outras autoridades. Os profetas de Israel rejeitam o sistema monárquico como uma maneira idólatra de conduzir a nação, e vêem como ideal o retorno ao sistema tribal em que o próprio Javé os governava e livrava dos inimigos. Esta crítica ao Estado se tornaria a principal característica da profecia bíblica, muito mais presente, inclusive, que as previsões futuristas que hoje são tão destacadas por aqueles que falam a respeito dos livros proféticos da Bíblia.

A atividade profética então cresce na mesma proporção em que as antigas tradições e leis religiosas que preservavam a família e a subsistência do camponês se deterioram. Profetas como Amós, Oséias e Isaías nascem de um período de crise intensa, que resultaria na destruição do país pelas mãos dos assírios (reino do norte) e babilônios (reino do sul). A mensagem desses profetas pré-exílicos girava em torno da idolatria dos reis, da injustiça social exacerbada, da violência contra os fracos e da desintegração da religião dos antepassados. A vitória dos impérios inimigos seria interpretada pelos profetas como conseqüência desses pecados, e não da superioridade militar evidente e dos interesses políticos das nações. Os profetas que observando as circunstâncias predisseram a destruição ganham prestígio, parte de suas palavras são registradas por escrito e com o passar do tempo tornam-se sagradas dentre o povo.

Durante o exílio a atividade profética não cessou, como testemunham os livros de Jeremias e Ezequiel, por exemplo. Agora, como já não há Templo, rei e exército, as ameaças proféticas voltam para a orgulhosa Babilônia. O discurso profético mostra-se versátil nesse período e vemos que além de apontar erros e ameaçar estruturas de poder, os profetas também transmitem esperança para os fracos. A fé em Javé que antes estivera estreitamente ligada à rotina do Templo em Jerusalém é revista, e são os profetas quem transmitem aos exilados ou miseráveis deixados na devastada terra natal a esperança de que um dia sua nação seria vingada e restaurada por um Deus justo, que não os abandonara.

Não se pode afirmar que todas as previsões proféticas cumpriram-se com fidelidade, mas o fim do exílio com a ascensão do império medo-persa, a reconstrução de Jerusalém e do seu Templo, são fatos que consolidavam cada vez mais a tradição profética em Israel. No período pós-exílico, profetas como Miquéias, 3Isaías e Malaquias atuaram principalmente como motivadores, incentivando o povo na reconstrução não apenas das cidades, muralhas e templos, mas também da religião nacional. A promessa de Miquéias de que a glória do segundo templo seria maior do que a do primeiro e a exortação de Malaquias para que o povo obedecesse às ordens de entregar os dízimos no Templo de Jerusalém, mostram o comprometimento dos profetas do período pós-exílicos com a reconstrução de um sistema que seus antecessores condenaram.

A primeira parte de Isaías 24, que é um texto seguramente pós-exílico, pode ser usada aqui para demonstrar uma nova transição pela qual a profecia passava; estamos nos referindo à origem do apocalipsismo. Até então, os profetas limitavam suas críticas quase sempre à própria nação, e suas expectativas de futuro diziam mais respeito às revoluções no campo político. Além disso, os profetas propriamente ditos transmitiam suas mensagens oralmente, razão pela qual os livros proféticos são obras das penas dos seguidores dos profetas. O apocalipsismo ampliou os horizontes da profecia, e anunciou o julgamento de Javé tanto a Israel quanto às demais nações, o fim catastrófico que alcançaria tanto justos quanto ímpios. Outra característica do apocalipsismo bíblico é que os apocalípticos não eram oradores, mas escritores, e em suas obras passam a fazer uso abundante de imagens e linguagem simbólica que muitas vezes era incompreensível para aquele que não pertenciam ao mesmo grupo. Há um número muito grande obras apocalípticas ainda preservadas ao menos parcialmente em cópias que nos permitem saber que o período inter-testamentário foi onde a literatura apocalíptica mais floresceu. No Antigo Testamento, o livro de Daniel é o melhor exemplo de literatura apocalíptica.

Chegando aos textos do Novo Testamento é possível identificar facilmente os traços de toda essa longa história do profetismo em Israel. Temos em João Batista, por exemplo, alguém que vinculava-se à tradição profética para fazer com que sua mensagem fosse recebida de maneira eficaz. No imaginário popular, certamente a visão de um profeta vestido de pêlos, mantendo uma alimentação escassa, separado da sociedade, habitando no deserto e criticando arduamente as estruturas de poder do seu tempo, remetia-os ao libertador Moisés, ao milagreiro Elias, ao corajoso homem do povo Amós... Não julguemos, porém, que o apocalipsismo perdera sua influência nos dias Jesus. É possível identificar ao longo do Novo Testamento inúmeros discursos tipicamente apocalípticos. Mateus 24 é inconfundivelmente um exemplo de como o apocalipsismo ainda estava presente na religião da província da Palestina durante o primeiro século. Além de inúmeras passagens apocalípticas espalhadas pelas cartas, o Novo Testamento possui o mais famoso de todos os livros apocalípticos, o “Apocalipse de João”. Na verdade, foi esse livro quem deu nome ao gênero literário que seu autor empregou, e ele evidencia a forte tendência apocalíptica presente em alguns círculos cristãos no final do século I e início do século II d.C.

Contudo, se levarmos em conta que a literatura profética tornou-se a maior fonte de esperança e também de reivindicações de justiça social para o povo de Israel, será que não podemos identificar influências da tradição profética em quase todos os livros neo-testamentários? Será que apenas oráculos com anúncios futuristas ou textos cheios de imagens das regiões celestiais devem ser considerados aqui? A verdade é que nos dias de Jesus e também da igreja cristã primitiva, a tradição profética tornara-se parte da cultura e não estava mais limitada a alguns videntes que diziam-se chamados por Javé para essa missão. No século I, poder-se-ia identificar características proféticas e apocalípticas em diversos movimentos populares de resistência à dominação imperial romana, dentre os quais, o movimento liderado por João Batista e o de Jesus podem ser inclusos. Nas décadas que precederam à guerra judaica contra Roma em 68-70 d.C., por exemplo, nasceram abundantes pretendentes messiânicos ou mesmo líderes bandidos que reunindo homens que sofriam com a injustiça, manifestavam sua insatisfação de maneira pacífica ou violenta. Seja como for, não se pode negar que os séculos marcados pela atuação dos célebres profetas do Antigo Testamento deixaram marcas permanentes que transcendiam a literatura.

Ainda que aqui tenhamos tratado da história da profecia bíblica de maneira superficial, acreditamos que este pequeno trabalho tenha exemplificado bem o processo de evolução da profecia bíblica, além de deixar claro ao leitor o quanto é abrangente o tema e grande a necessidade de maior aprofundamento para que alcancemos conclusões definitivas.