quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

NOVO ARTIGO PUBLICADO: BÍBLIA E MATERIALIDADE: O NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR COMO PROJETO EDITORIAL

Venho informar a publicação de mais um artigo meu. Dessa vez, por tratar de questões de Bíblia e Materialidade, e não propriamente do conteúdo dos textos bíblicos, optei por buscar publicar meu texto numa revista de outra área. Dessa vez minha obra está disponível na Revista Memento, que é uma revista da pós-graduação em Letras da UninCor, uma universidade mineira.

Mas não abandonei minha área de pesquisa. No artigo falo do "Novo Testamento Interlinear", que sempre indico aos alunos de grego e exegese. A análise trata da publicação em si, dos recursos oferecidos, das notas introdutórias, das versões bíblicas anexadas, e pergunta se a editora atinge seu objetivo. Claro que segundo minha opinião, a leitura vale a pena.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

OS COMPENSADORES RELIGIOSOS - CONCEITOS TEOLÓGICOS



Começamos essa seção com a leitura de uma passagem bíblica, Mateus 6.19-21, que apresenta um tipo de argumentação religiosa bastante comum em qualquer forma de religiosidade:
 (19) Não entesoureis tesouros para vós sobre a terra, onde traça e ferrugem destrói e onde ladrões arrombam e roubam;
(20) mas entesourai tesouros para vós no céu, onde nem traça nem ferrugem destrói e onde ladrões não arrombam nem roubam;
(21) pois onde está o teu tesouro, ali estará também o teu coração.
O texto já está divido em três partes nas Bíblias, e essa divisão é ao menos didática. Nos versículos 19 e 20 encontramos duas frases muito parecidas, o que nos sugere que foram produzidas como um par, e devem ser lidas conjuntamente. Já o versículo 21, embora tenha clara relação de continuidade temática em relação aos anteriores, é diferente deles formalmente.
Os dois primeiros começam com os mesmos imperativos, porém, em sentidos contrários. A primeira frase traz um imperativo negativo, ordena aos destinatários da mensagem que “não” entesourem tesouros, isto é, que não acumulem seus bons valores na terra. Por outro lado, a segunda frase diz o oposto, ordenando que “sim”, que se acumulem tesouros, mas no céu. Daí já notamos que a questão não é o acúmulo de tesouros, e sim o local em que estes tesouros são depositados; ou seja, a grande oposição que constitui o texto está nos seus códigos topográficos.
O argumento básico para que se aceite o contrato proposto é a transitoriedade ou durabilidade dos dois tipos de tesouros possíveis; os da terra, diz o texto que podem ser consumidos por traça e ferrugem, ou roubados por ladrões, elementos que não podem atingir os tesouros que estão depositados no céu. A oposição básica de valores se dá entre riqueza e pobreza; contraditoriamente, a verdadeira riqueza é a celestial e não palpável, que assume o papel de valor desejável que para ser obtido exige que o leitor aceite o contrato proposto por esse Jesus/narrador. O contrato pede que se abdique dos tesouros terrenos, o que dá origem a um estranho percurso temático, onde a busca pela riqueza celestial passa necessariamente pela rejeição da riqueza terrena:
A possibilidade da rejeição do contrato existe, basta que o destinatário da mensagem continue vivendo segundo os padrões econômicos estabelecidos social e culturalmente. Se esta for a escolha do leitor, ele poderá adquirir riquezas, acreditar que tem seu futuro assegurado, mas acabará sem tesouros já que como afirma o texto, a transitoriedade dos tesouros terrenos, as ameaças a que estão expostos, os valorizam disforicamente.
Segundo a cosmologia do evangelho existem dois “mundos” paralelos, céu e terra, e por enquanto estamos limitados à terra, porém, destinados ao céu. Assim, conscientes da transitoriedade da vida terrena, devemos fazer dessa existência um meio de garantir uma boa posição na vida celestial, que é eterna. Daí seu incentivo pela busca de tesouros celestiais, e seu desprezo a todos os bens e honras terrenas.
Passando então para o versículo 21, vemos que se trata de uma sanção que aparentemente se apropria de um dito popular, o que produz a impressão de que esta afirmação é uma verdade de aceitação universal. Não é difícil notar como as duas linhas estão construídas sob padrões formais semelhantes aos dos versículos anteriores, e outra vez temos duas linhas em que contém advérbios que indicam localização (“onde” e “ali”), pronomes em segunda pessoa (“teu”), o verbo “estar”, ainda que conjugado em diferentes tempos verbais, e em ambas também temos um substantivo (“tesouro” e “coração”). O texto estabelece uma relação causal entra as duas afirmações que faz, e os verbos exercem um papel importante. Onde no presente “está” o tesouro, no futuro “estará” o coração, e com isso entendemos que a administração dos tesouros que é realizada no presente, e que como vimos só podem ser colocados na terra ou no céu, determina o lugar em que o coração estará no futuro. O substantivo “coração”, no texto mateano, parece ser usado para simbolizar o pensamento, a racionalidade, a consciência, e, portanto, podemos dizer que o modo como se administra os tesouros explicitam os interesses reais e ocultos do ser humano. A equação é imutável, não é possível em nenhuma circunstância separar o coração do tesouro. A única opção aceitável por parte do destinatário é mudar já seu modo de lidar com seu tesouro, ou seja, deixar de lado os objetos considerados valiosos neste mundo (os tesouros da terra) por coisas que possuem valor no céu, ação que seria interpretada como prova de uma correta devoção religiosa.
Finalmente chegamos aonde queríamos, onde podemos aplicar a esta leitura o conceito de “Compensadores Universais”. Segundo Rodney Stark e William Sims Bainbridge, esse tipo de promessa substitutiva, onde a religião oferece algo intangível em troca de algo tangível, não é nada mais que uma espécie de compensador:
Quando os seres humanos não conseguem obter recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles persistem em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos intangíveis para a recompensa desejada... (2008, p. 48)
O discurso mateano que escolhemos como exemplo estaria oferecendo recompensas ilusórias para compensar um desejo não realizado; noutros termos, a frustração pelas ambições não realizadas do sujeito são amenizadas pela religião, pela esperança de se receber futuramente recompensas maiores, tesouros que na verdade são recebidos apenas por meio da fé, já que a validade dessas promessas não pode ser verificada (Stark; Bainbridge, 2008, p. 49-50).
Mas algumas ressalvas devem ser feitas quando adotamos o conceito de “Compensadores Universais” de Stark e Bainbridge, pois embora os prometidos tesouros do céu não sejam descritos com clareza, certamente nalgum momento histórico e na ideologia de algum grupo social, tais tesouros intangíveis eram vistos como recompensas mais desejáveis ou seguros do que os bens terrenos que outros monopolizavam. Os tesouros celestiais não eram meros substitutos apenas desejados que visavam consolar pessoas entristecidas, tratava-se de um importante argumento para convencer o grupo de que aquela opção sócio-religiosa era segura. Podemos até adotar o termo “compensadores” de Stark e Bainbridge para nos referimos aos tesouros celestiais de Mateus, todavia, como ressalta Andrew Buckser apontando limitações na teoria dos autores mencionados, a religião não provê aos seres humanos somente promessas sobrenaturais e futuras, mas também lhes dá significação e traz satisfação imediata, as quais também são recompensas reais (1995, p. 1-3). Assim, ao interpretarmos os tesouros celestiais de Mateus, dizemos que essas promessas não possuíam apenas o papel de compensadores intangíveis, substitutos meramente paliativos para os seus verdadeiros desejos, antes, a eficácia do emprego dos tesouros celestiais no discurso econômico mateano se dá exatamente pela maneira como eles entendiam essas recompensas sobrenaturais como verdadeiras. Mais que promessas, tais tesouros eram certezas pelas quais se poderia aderir ao projeto judaico-cristão sem reservas.
Em suma, o texto incentiva seus destinatários a resistir às propostas de segurança deste mundo, e fornece uma descrição hoje incerta, porém ainda sublime, de recompensas futuras para aqueles que não se prendessem às antigas ambições e aderissem ao estilo de vida proposto pelo Jesus de Mateus. Não podemos, enfim, subestimar a força desse argumento e o poder motivacional dessas tentações.

Referências Bibliográficas


BUCKSER, Andrew. Religion and the Supernatural on a Danish Island: Rewards, Compensators, and the Meaning of Religion. In. Journal for the Scientific Study of Religion, v. 34, 1995, pp. 1-16.
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma Teoria da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

NOVO ARTIGO PUBLICADO: SEMIÓTICA PARA BIBLISTAS

Olá, quero informar a publicação de mais um artigo meu. O texto está disponível para ser baixado em PDF no site da Revista Âncora: www.revistaancora.com.br.

Resumo:
A semiótica francesa, embora ofereça um bem elaborado método interpretativo, segue sendo ignorada pela maioria dos estudiosos dedicados à tradicional exegese bíblica no Brasil. Esse artigo procura contribuir neste campo de pesquisa defendendo a eficácia da Semiótica Discursiva no processo de análise dos textos bíblicos e incentivando seu uso. Para isso, nós vamos apresentar uma introdução metodológica seguida de uma análise semiótica de Mateus 19.16-23.

Palavras-Chave: Semiótica; Análise do Discurso; Evangelho de Mateus; Exegese; Literatura Bíblica.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

BÍBLIA E MATERIALIDADE: O NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR DA SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL



Partindo da ideia de “sistema literário” de Antonio Candido, a crítica literária considera mais do que a obra em si e seus respectivos conteúdos. Além da já tradicional pergunta pela instância do “autor”, passa a ser também relevante para a crítica a instância do “público leitor”, e é claro, a mediação que é feita entre essas três instâncias por alguma instituição mediadora. Quando passamos a aplicar tal modelo às considerações relativas à literatura bíblica, abre-se um grande campo de pesquisa que é cheio de especificidades. Nas próximas linhas, o objetivo é falar da Bíblia a partir do “sistema literário”, claro, mas vários recortes nesse objeto são necessário. Primeiro, convém dizer que vamos lidar com a materialidade da Bíblia nos dias de hoje mais do que com seu conteúdo. Poderíamos dizer isso com outras palavras, anunciando considerações principalmente sobre o “plano de expressão” (Fontanille, 2011, p. 42-44) da Bíblia no Brasil das primeiras décadas do século XXI, não nos ocupando tanto com o discurso bíblico, mas com o projeto editorial e com seus paratextos. Mas falar da materialidade do texto bíblico contemporâneo continua sendo tarefa demasiadamente grande, pelo que selecionamos algo bem mais específico: nossas considerações se darão sobre o Novo Testamento Interlinear: Grego-Portugues, publicação da Sociedade Bíblica do Brasil, em sua edição de 2004. Dentre as muitas publicações de Bíblias, essa é uma muito particular, destinada a um público leitor bem específico, e com várias características peculiares que segundo nosso ponto de vista, merecem nossa atenção. Enfim, nosso breve trabalho vai analisar esta edição do texto bíblico fazendo considerações sobre ela como projeto editorial, como obra literária, como instrumento de estudo, como documento religioso...
            Começamos já com um problema particular à literatura bíblica, que é a questão autoral. Os livros bíblicos dificilmente apontam algum “autor”, e mesmo quando o fazem, este tipo de referência é pouco confiável, posto que era comum a prática do que agora chamamos de “pseudoepigrafia”. Ou seja, os textos eram escritos em nome de alguém revereciado, um apóstolo de Jesus Cristo, um profeta de renome ou alguém assim. Isso obviamente provoca árduos debates entre estudiosos, e alguns procuram ignorar as referências explícitas a autores para construir por meio de análises complexas o “autor implícito” desses livros. Em nosso estudo do Novo Testamento Interlinear (NTI), vamos ignorar esse problema e pensar na Bíblia como texto de domínio público, lembrando que tradicionalmente ela é conhecida como “Palavra de Deus”.
            Como já foi possível notar, nosso objeto de estudo não traz todos os livros bíblicos, mas 27 textos escritos após a morte de Jesus Cristo que a igreja cristã elegeu (ou canonizaou) e chamou de Novo Testamento. A razão para a edição escolher publicar esses textos e excluir todos os livros do Antigo Testamento é simples: o projeto editorial visa apresentar o texto em sua lingua de origem, e todo o Novo Testamento foi escrito em grego (koinê), diferente do que ocorreu com o Antigo Testamento (hebraico e aramaico). O NTI, portanto, traz o texto do Novo Testamento em grego e uma tradução rigorosamente literal para o português, encaixando sob cada expressão grega um equivalente em nossa lingua.
Mas por qual motivo alguém se importaria em publicar no Brasil, uma edição do Novo Testamento em língua grega? Vilson Scholz, um dos editores, respode à pergunta no prefácio da obra (p. vii-viii), dizendo:
[...] um Interlinear quer ser um auxílio para a tradução. Quem se utiliza dele está interessado, não tanto na tradução portuguesa, mas no original grego [...] Assim sendo, o uso do Interlinear pressupõe um conhecimento mínimo do grego bíblico. Serve de auxílio a quem já estudou ou está estudando o idioma original do Novo Testamento. Por si só o Interlinear não ensina a língua greja, mas nada impede que seja usado para facilitar essa tarefa.
            Essas linhas são importantes porque nos ajudam a entender que tipo de leitor têm-se em mente, e que tipo de utilização da obra se espera. O editor de certa forma tenta dirigir o uso que se fará da obra; a partir de suas palavras entendemos que esse NTI não foi feito para ser lido do mesmo modo que se lê uma Bíblia, ele é um instrumento de estudo, destinado a pessoas que queriam traduzir o Novo Testamento. Notemos que esta não é uma obra para se ler em grego, e sim para auxiliar num projeto de tradução do texto para o português. Assim, podemos dizer que o autor tenta de alguma forma controlar, condicionar o leitor. Embora o texto já traga a tradução de cada palavra, não devemos nos contentar com essa truncada versão, mas empregá-la em nossos próximos exercícios de tradução.
Ainda falando dessas linhas citadas do prefácio, atentemos melhor a essas palavras: “Quem se utiliza dele está interessado, não tanto na tradução portuguesa, mas no original grego”. Indiretamente, o editor cria uma oposição semântica entre o texto grego e as conhecidas traduções dele ao dizer que se busca o “original grego”. Consequentemente, o texto traduzido é um texto “não original”, e supoe-se que o leitor queria reduzir a influência dessa intermediação na sua leitura. Então, quem vai ler o NTI procura ler o texto grego para traduzi-lo, e o resultado desse trabalho é o acesso mais direto ao conteúdo do texto bíblico “original”. Esse leitor-tradutor, todavia, não se empenha num projeto de criar outra versão para ser publicada, divulgada, trata-se uma atividade pessoal e pontual.
Há uma segunda seção pré-textual intitulada “A Lingua Grega do Novo Testamento” (p. ix-xi) que não é atribuida a qualquer autor, e em dado momento essa seção enumera as “Razões Por Que Estudar Grego”. Uma das razões é esta: “Para fazer cada vez melhor a tarefa da exegese e da teologia”. Essa mensão à “exegese” é importante, porque nos remete a uma teoria de interpretação bíblica que conta com longa tradição e muitos pressupostos. Aqui, convém apenas mencionar que o conhecimento da lingua de origem do texto bíblico era um requisito indispensável para o exegeta adepto do chamado Método Histórico-Crítico, o qual foi desenvolvido principalmente a partir do século XIX e trouxe consigo pressupostos historicistas hoje considerados antiquados. Leituras mais contemporâneas podem simplesmente desconsiderar a importância de se fazer uma tradução do texto bíblico, preferindo, por exemplo, entender como algum leitor ou grupo de leitores recebeu o conteúdo a partir de alguma versão que tinham em mãos. Deveras, o texto grego do Novo Testamento é um texto que em geral desconhecemos, e que pouca influência deve ter exercido diretamente sobre o público cristão. A afirmação feita de que a tradução torna a exegese melhor parece considerar apenas o MHC, que seguindo a historiografia de seu tempo parece acreditar que a boa aplicação metodológica é capaz de desvendar o “fato histórico”, aquilo que realmente aconteceu e que eventualmente deu origem ao texto. A busca pelo evento histórico pré-textual foi uma obsessão no MCH tradicional, e motivou a aplicação de passos da análise como a “crítica das fontes”, a “análise da historicidade do texto”, a “crítica textual”, e a ênfase na biografia e intenções dos autores reais dos textos bíblicos. Seguindo tais pressupostos, era mesmo indispensável ler o texto em seu idioma original para se aproximar das palavras originalmente ditas por Jesus; tanto é, que num manual de exegese histórico-crítica lemos: “[...] a tradução é o primeiro passo a ser realizado na exegese. Ele é necessário pelo simples fato de o Novo Testamente ter sido redigido originalmente em grego” (Wegner, 1994, p. 28). Ou seja, parece que o NTI quer ser um instrumento importante para a exegese de moldes mais tradicionais, onde quanto mais tardia for a fonte, mais próximo o leitor estará da “verdade histórica”.
Tendo identificado razoavelmente esse “leitor” ideal, podemos nos perguntar se o NTI é uma obra que atinge seus objetivos. Apenas dois tradutores estiveram envolvidos com o projeto, o já mencionado Vilson Scholz, e Roberto G. Bratcher. Logo nas primeiras páginas eles são apresentados como doutores em teologia, tradutores que há muito prestam serviço à Sociedade Bíblica, e o primeiro é também professor de grego e exegese. Deveras, o projeto foi bem executado, e a primeira boa escolha foi a do texto grego a ser empregado. A Sociedade Bíblica internacional já detinha os direitos do texto grego que é o mais bem aceito hoje. Trata-se do resultado de um longo processo de crítica textual, de comparação de manuscritos e avaliação de variantes, que é publicado primeiro na Alemanha em duas versões: The Greek New Testament que está em sua quarta edição, e Novum Testamentum Graece atualmente em sua 27ª edição. O texto grego desses dois projetos é o mesmo, os produtores são os mesmos, mas as duas publicações se diferenciam pelos auxílios que oferecem aos leitores. Segundo a análise de Wilson Paroschi, o primeiro destina-se a tradutores, enquanto que o segundo é mais técnico, destinado a professores e especialista em Novo Testamento que desejam mesmo avaliar o julgamento das variantes textuais (1999, p. 168). Assim sendo, pode-se dizer que ao menos o texto grego escolhido é o mais atual e valorizado de que dispomos. No entanto, nesse momento surgem novos questionamentos:
Como vimos o objetivo do estudioso do grego bíblico é reduzir o impacto da mediação dos tradutores sobre sua leitura, todavia, o suposto “exegeta” parece não levar em conta que ao eleger um texto grego como esse, que é também o resultado de um longo trabalho acadêmico, interpretativo, eventualmente subjetivo, está ainda dependendo do produto de instituições mediadoras. Sabe-se que não há manuscritos originais de qualquer texto bíblico, e que qualquer texto grego do Novo Testamento é na verdade uma colagem de muitos manuscritos. Então, eliminar a influencia de um tradutor não significa que chegamos ao “original”, termo que é empregado algumas vezes no prefácio do NTI. Se são mantidos os alvos positivistas de se buscar o texto mais antigo, mais original, deveria o NTI também incluir o “aparato crítico” do Novum Testamentum Graece de Nestle-Aland, a fim de que também pudesse o leitor avaliar por conta própria as variantes textuais. Ou seja, além de ser produzido a partir de pressupostos de análise antiquados, o projeto ignora ou omite sua limitação. O NTI é um auxílio para a tradução e para o contato com o texto do Novo Testamento em seu idioma original, desde que o leitor não se importe em adotar o texto grego que foi produzido por aquela instituição de Stuttgart. As mediações da leitura seguem presentes, e no caso do texto bíblico, essas mediações são realmente inevitáveis. Se além ignorar os tradutores, também quiséssemos passar por cima do trabalho dos críticos que reconstroem o texto do Novo Testamento, teríamos que ir direto aos mais de cinco mil manuscritos, a maioria deles fragmentários, e empreender por conta própria o trabalho de crítica textual. Esse empreendimento não é impossível hoje, mas é certamente difícil e provavelmente não nos conduziria a conclusões muito diferentes das já alcançadas pelos alemães. Mas ainda assim, saberíamos que estamos lidando com copistas, comentaristas, leitores de diferentes épocas e lugares que nos deixaram seus textos também intermediando nosso acesso ao Novo Testamento. Com isso, resta reconhecer que a Bíblia com que lidamos não é e provavelmente nunca será aquela que os autores escreveram, as releituras mais ou menos fieis àquelas origens; e se nosso acesso ao texto é sempre mediado por outros, vale questionar outra vez a validade desse projeto de buscar o texto mais antigo. Por qual motivo o leitor religioso prefere uma versão do século V, fragmentária e escrita num grego arcaico, do que uma versão moderna, criticada, traduzida, revisada...? A resposta é que o leitor religioso não acredita na divindade de um texto que tenha passado por tantas mediações humanas, e por isso segue procurando meios de eliminar tais mediações, uma busca inútil, como temos visto, e que jamais teria sucesso já que mesmo os originais mostrar-se-iam repletos de imperfeições inadequadas à crença numa Palavra de Deus inerrante.
Voltando ao texto do NTI, é interessante observar que ele não traz em seu interior apenas o texto grego e tradução literal de cada uma das palavras; há no interior das páginas outras duas versões do Novo Testamento, versões que também pertencem à Sociedade Bíblica Brasileira. Uma dessas versões parte da tradução de João Ferreira de Almeida, mas numa edição que chamam de “Tradução de Almeida Revista e Atualizada no Brasil” (ARA), publicada pela primeira vez em 1959, e que contou com nova edição em 1993. A segunda versão é a chamada “Nova Tradução na Linguagem de Hoje” (NTLH) de 2000, que é na opinião de muitos algo mais parecido com uma paráfrase contemporânea do texto bíblico do que uma tradução. Como se pode ler no prefácio do NTI (p. vii), considera-se uma “vantagem” o fato de esta publicação trazer quatro textos ao mesmo tempo. Sem dúvida, o processo de comparação de traduções fica assim facilitado, já que não é preciso abrir várias Bíblias, porém, a escolha dessas versões que já pertenciam à mesma casa publicadora, é uma limitação. Isso dizemos porque um tradutor do Novo Testamento dificilmente consideraria a leitura da NTLH de algum valia para seu trabalho. Aqui, a boa intenção foi prejudicada por questões mercadológicas e direitos autorais, pois uma equipe de tradutores independente escolheria outras versões bíblicas para este recurso.
O projeto ainda oferece um outro auxílio que merece algumas linhas. Nalguns momento, o leitor encontra notas de rodapé com auxílios gramaticais, raízes de verbos irregulares, e mais ainda para os chamados “particípios”, que possuem simultaneamente características de adjetivo e de verbo, e que geralmente impõem os maiores desafios aos estudantes do grego bíblico. Há também casos em que pequenos números colocados ao lado de alguns verbos dirigem o leitor a um anexo que aparece no final do livro com “Análise dos Verbos mais Frequentes”. Esse anexo apresenta uma lista de 15 verbos comuns em todas as formas que eles assumem no texto do Novo Testamento. Como podemos ver, esses auxílios tornam o NTI ainda mais específico, são instrumentos que só dizem respeito a tradutores e estudantes de grego, o que outra afirma que este não é um produto destinado ao leitor comum de qualquer texto bíblico.
Nossa análise da materialidade e do conteúdo do NTI nos mostrou que tipo de produto ele pretende ser. Não é um texto para leitura geral, mas para estudiosos; todavia, vimos que há um tipo muito particular de leitor/estudioso que quer ser alcançado, o leitor/estudioso que procura fazer exegese histórico-crítica, e desse trabalho interpretativo fazer “teologia”. A editora e os profissionais envolvidos atuam como mediadores desse trabalho teológico, oferecem os auxílios que consideram mais úteis, e reafirmam indiretamente que o texto grego é mais sagrado que o texto traduzido, desconsiderando, como vimos, os muitos problemas com esses pressupostos historicistas. Outra evidência desse interesse religioso é a inclusão no texto de todos os subtítulos criados por editores que já estavam presentes noutras versões. Esse “paratextos” de alguma forma direcionam a leitura religiosamente, e até contrariam os interesses de um exegeta que quer exatamente livrar-se da intermediação editorial.
Mesmo assim, o livro é um belo projeto editorial, uma boa ideia que foi bem executada, com algumas poucas limitações como a escolha das versões brasileiras que ali são incluídas para comparação. Gostaríamos apenas de dizer que outros leitores, além daquele pretendido pelo próprio projeto, podem se beneficiar. Mesmo sem levar em conta o texto grego, a tradução literal e as outras versões podem ser úteis para uma comparação empreendida por um número bem maior de leitores. Nos círculos religiosos, onde o texto é lido e aplicado de maneira normativa, sem dúvida a mera leitura de diferentes versões pode impedir que se estabeleçam “certezas” sobre versões mal traduzidas. Caso o leitor tenha o interesse de estudar o Novo Testamento grego sem aqueles pressupostos historicistas que já criticamos, ele também poderá se aproveitar dos recursos desse título.
Em suma, a comparação do NTI com outras edições da Bíblia no Brasil podem mudar nosso julgamento, elevam ainda mais seu valor, posto que esse interesse mais técnico raramente norteia a produção de uma nova edição do texto bíblico.
           
Referências Bibliográficas
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
NESTLE, Eberhard; ALAND, Kurt. Novum Testamentum Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft (27a ed.), 1993.
PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

FILMES RELIGIOSOS, VIOLÊNCIA RELIGIOSA: EVANGÉLICOS E MUÇULMANOS DEFENDEM SEUS PROFETAS


Fiquei surpreso quando, um dia depois de escrever um texto sobre os protestos evangélicos contra o projeto de Renato Aragão (veja a postagem anterior), os jornais noticiaram ataques a representações diplomáticas norte-americanas em diversos países governados por regimes islâmicos.


Eu critiquei no texto anterior a atitude dos evangélicos diante da mera possibilidade da produção de um filme que supostamente diminuiria a importância de Jesus na história, e cheguei a comparar essa atitude àquela típica dos países muçulmanos mais extremistas. Agora, também por causa de um filme muito mais agressivo que parece ridicularizar o islamismo e dizem ofender a memória do profeta Maomé, muitos grupos muçulmanos protestaram violentamente.

Não vi nenhum evangélico defendendo a causa islâmica, apoiando seus ataques, embora tenham feito algo semelhante e antes de assistirem qualquer filme, prova de que eles não agiram antes por princípios éticos, pedindo respeito para com sua confissão de fé, mas por um impulso fundamentalista que os faz crer que são os donos da verdade e que merecem direitos especiais.

Pior é que no caso brasileiro o suposto autor do filme, Renato Aragão, é um cristão católico, que dificilmente faria ofensas à imagem de Jesus como se supôs. Se repudio a violência muçulmana, também tenho que repudiar a atitude dos evangélicos, que pode não ter se mostrado tão violenta a ponto de causar mortes, mas que de forma bem mais arbitrária, nasceu de meros boatos sobre um filme que nem existe.

Enfim, o alerta que pretendo deixar com tudo isso é este: mais um pouco de poder nas mãos dos evangélicos e eles instituirão um regime ditatorial aqui no Brasil, regime muito próximo àquele que muçulmanos de vários países estão rejeitando nos últimos tempos. Volto a esse tema em breve, na próxima postagem.

quarta-feira, 12 de setembro de 2012

OS EVANGÉLICOS E SUAS GUERRAS IMAGINÁRIAS NAS REDES SOCIAIS


Já faz dias que tenho visto essa postagem nas redes sociais, e hoje, por motivo desconhecido, não aguentei ficar calado, resolvi expressar aqui minha decepção, espaço que criei para tais desabafos e experiências.

Vamos ao texto que os evangélicos estão postando: Os evangélicos comemoram porque supostamente frustraram um projeto de um filme supostamente anti-cristão que supostamente Renato Aragão pretendia lançar. Isso tudo é suposição, ok? Dá pra ver que o tal filme não passa de um projeto, pelo que a briga é por conta desse título provisório: "O Segundo Filho de Deus". Também está claro que ninguém leu o roteiro, ninguém sabe do que se trata, nem mesmo o tal Lauro Jardim, colunista do site da Veja que é citado duas vezes apenas para dar credibilidade ao conteúdo.

O texto também apoia sua posição em desconhecidos "portais", mas estes também não são citados, não temos a chance de consultá-los e de nos aprofundar na questão. Esses "portais" também estão presentes de maneira muito imprecisa apenas como recurso retórico, para dar confiabilidade ao texto, para não deixar o leitor notar que tudo não passa de mera especulação. Algo semelhante pode ser dito sobre a data que o texto apresenta (sexta-feira, 31), dia da publicação da Veja, a qual não passa de uma "ancoragem" que de alguma forma liga o texto à realidade, informação que geralmente não é decisiva para o conteúdo em si.

Depois, o próprio texto diz, citando uma tal de "Focus Filmes", que as especulações sobre o conteúdo anti-cristão do filme são falsas, que a história não seria essa. Apesar de tudo o que está dito não ser de grande confiança, o próprio texto nos mostra que não há motivos para se discutir. Estão numa guerra imaginária, e os alvos podem ser inocentes dos ataques sofridos. Outro dado desse tipo que o texto traz é aquele em que a Sony não teria apoiado o projeto por razões desconhecidas. Talvez a Sony tenha influenciado na decisão de adiar o filme mais do que a "retalhiação" dos evangélicos, mas o texto não está interessados nesses detalhes.
Veja na parte de baixo da imagem que a revista Veja é citada como "fonte", o que é uma mentira, posto que o conteúdo não traz citações precisas da revista, mas uma leitura bastante parcial do que ela teria publicado em sua versão digital. Novamente, temos um recurso retórico empregado para manipular o leitor.

Pior ainda, lemos no final um convite: "se você está feliz com isso, compartilhe". Os evangélicos que compartilham esse texto, que curtem, que festejam, estão comemorando o quê? A ideia de que eles podem ter frustrado um projeto cinematográfico que lhes parece contrário à confissão de fé? Não podem as pessoas que pensam diferente se expressar artisticamente? Querem eles restaurar o sistema ditatorial no Brasil? Não é esse um modo de agir próprio dos estados islâmicos extremistas? Depois ainda vão pedir nosso voto para instaurar um Brasil evangélico e opressor da liberdade humana...

Mas além da atitude opressiva que demonstram, de não notarem que podem estar prejudicando inocentes que só queriam produzir um filme como qualquer outro, também me incomoda a falta de sensibilidade artística desse grupo religioso. Os evangelhos do Novo Testamento nos contam uma história bonita, onde um homem admirável foi morto pelos romanos por expressar um discurso religioso de características subversivas. Ali, Jesus, que aos olhos humanos foi derrotado, transforma-se no vencedor; ele volta à vida e assume uma posição de honra e poder que supera a dos seus assassinos. É uma história de fracos que vencem, uma história que transmitem esperança.

Suponhamos que realmente o filme rejeitado de Renato Aragão seja aquele em que um outro "filho de Deus" vem ao mundo para completar a missão de Jesus. Essa história não seria tão absurda artisticamente falando, ela é até criativa. Faz-se uma nova interpretação da história de Jesus, onde um projeto divino é realizado em duas etapas, admitindo que poderia eleger outro messias. Na minha opinião, o tema aproveita bem uma das muitas possibilidades interpretativas que são possíveis para a história da morte de Jesus, embora saibamos que essa leitura não coincide com a adotada pelo cristianismo.

Os evangélicos não sabem brincar... Não sabem o que é ficção, não sabem como funciona o humor, e por isso lêem a Bíblia como verdade histórica e depois tentam evangelizar os outros através da exibição daquele filme do Mel Gibson sobre Jesus, que é católico, fictício, hipotético, e também faz uma leitura muito pessoal e violenta da morte de Jesus. Mas como esse filme serve aos propósitos deles, o apoiaram. Agora, me envergonham (digo "me envergonham" porque talvez ainda seja parte involuntária desse grupo) com essa "festinha" pela vitória numa guerra imaginária e preconceituosa... (e todas as ofensas deselegantes que eu ainda gostaria de dizer aqui estão implícitas nessas reticências).

terça-feira, 11 de setembro de 2012

HORIZONTE UTÓPICO? RICARDO GONDIM E OS FUNDAMENTALISTAS NUM DEBATE INFINDÁVEL



Não faz muito tempo que surgiu na internet uma árdua discussão sobre o conceito de “horizonte utópico”. Um vídeo do pastor Ricardo Gondim empregando o conceito foi divulgado, e muitos foram os que se colocaram contra o que ele dizia. Eu não gostaria de tomar partido nesse embate, mas acho que posso contribuir a meu modo com a discussão.
O que aconteceu era previsível. Ricardo Gondim sempre foi admirado como pregador evangélico até que seu discurso mudou, ficando inadequado no tradicionalismo evangélico e galgando adversários ferrenhos. Ele passou a ser chamado de “herege”. A mudança no seu discurso é natural, ele foi estudar, fez mestrado, cresceu como pessoa, conheceu pensadores da religião de fora do seu círculo tradicional... Em todo processo de aprendizagem somos confrontados, transformados, e para pessoas que como ele, falam em público com frequência, isso é um risco. Gondim, todavia, possui uma grande virtude; mais do que um pensador, ele é corajoso, e não se importou com o prestígio que porventura tinha, nem com a repercussão negativa de suas novas posturas. Passou a falar o que pensava comprometido com a verdade (que pode ser transitória neste caso), coisa que a grande maioria dos líderes religiosos não fazem, por medo de perder o que construíram. Então, se há uma crítica a fazer a Ricardo Gondim, talvez seja esta: ele expôs suas ideias publicamente cedo demais, e possivelmente faria com mais cautela se desse tempo para que tais ideias amadurecessem. Mas minha crítica não tem tanto valor, já que faço o mesmo, recebo as críticas (não tantas já que não sou tão conhecido na mídia), e mudo de ideia frequentemente sem nenhum constrangimento.
 No caso do “horizonte utópico”, Gondim disse (e sempre há o risco de entendermos mal a questão quando vemos um texto ou vídeo fora de seu contexto existencial) que o conceito se aplicava à volta de Cristo, ou seja, que a promessa de que Jesus voltaria glorificado à terra tinha a função de motivar, incentivar, dar esperança àqueles que creem. Segundo o conceito, que supostamente ele herdou do teólogo Jürgen Moltamnn, essa esperança seria utópica, permaneceria sempre no horizonte, o que, convenhamos, obviamente suscitaria sentimentos violentos e pouco cristãos em muitas audiências. Gondim sabe muito bem que lida com um público fundamentalista, que não sabe ler a Bíblia a não ser de maneira literal. Ele sabia que estava comprando brigas.
Agora ele multiplicava ainda mais o número dos seus rivais. Os fundamentalistas passaram a demonizá-lo na internet, e no fim das contas, todo o embate mostrou-se pouco produtivo. Primeiro, não é possível discutir essas questões com os fundamentalistas, que citam versículos como se fossem provas históricas e científicas de tudo o que eles creem. Os fundamentalistas não sabem ler a Bíblia, e jamais seriam convencidos a não ser que aceitassem passar um bom tempo sentados em salas de aula para aprender a ler. O pastor Ricardo Gondim pode não tido a intenção, mas questionou a “confiabilidade” (equivocada) que os evangélicos atribuem ao texto bíblico, acabou alegando que o “contrato” que há entre Deus e os cristãos é um mero simulacro, e dessa forma deu a eles um motivo para atacar, para expressar toda sua intolerância. Eles agora podiam justificar sua violência como sendo uma reação aos ataques heréticos empreendidos pelos demônios; eles podiam dizer que estavam numa “guerra santa”.
Por sua vez, Gondim também estava errado. O conceito do “horizonte utópico” é útil, mas não nesse caso. Assim como os fundamentalistas, ele também não fez um bom uso do texto bíblico, que concordemos ou não, afirma a volta literal do Cristo. Essa é a fé expressa pelo texto, é sua teologia, e por mais que o cumprimento dessa promessa nos pareça tardio ou improvável, os leitores de fé e o próprio texto acreditam nele. Nesse caso, temos um horizonte, um motivo para esperar e para se inspirar, mas não poderemos esperar que os cristãos aceitem o uso do termo “utopia” para descrevê-lo. A Bíblia nos traz outros “horizontes utópicos”, como por exemplo, quando em 1Pedro lemos “Sede santos, porque eu sou santo”. Nesse caso, todo leitor de fé sabe muito bem que nunca poderá ser santo igual a Deus, mas aceita o convite para continuar procurando a santidade. Pode ser que o alvo nunca seja atingido, e nem por isso dizemos que Deus nos fez um convite falso; o próprio leitor sabe que o objetivo do texto é oferecer um motivo para sermos melhores, mas não espera se tornar um deus.
Certamente não foi o pastor Ricardo Gondim o criador das ideias pelas quais agora é atacado; o problema com ele é especial porque antes ele havia sido um porta-voz evangélico, e as expectativas do público evangélico são frustradas quando o “pastor” passa a falar de coisas que não coincidem com o que eles gostam de ouvir. Também é relevante que, embora Gondim tenha mudado, evoluído, essa nova consciência que assumiu ainda não encontrou lugar apropriado. Embora não o conheça bem, suponho que seu modo de vida não tenha sofrido mudanças na mesma proporção, suponho que sua igreja continue trabalhando segundo o “antigo” modelo evangélico, e que seu público (ideal) ainda possa ser rotulado como “evangélico”. A partir de minha própria experiência, digo que entendo um pouco desse processo, pelo que posso dizer que as mudanças ideológicas se sucedem primeiro, puxando atrás de si um longo caminho de renovações que deve influenciar toda a vida, as relações sociais, familiares, profissionais etc. Gondim está no processo, sofrendo com ele, é verdade, mas espero que apesar dos erros e retaliações, tenha a força para continuar o que já começou. A igreja cristã precisa disso.
Quanto aos fundamentalistas, e provavelmente muitos dos meus leitores estão entre eles, desejo que também enfrentem crises como essas, que aprendam, que cresçam. É decepcionante descobrir que nossa fé estivera baseada em fantasias, eu sei, mas não há outro caminho para aqueles que querem amadurecer na fé. Enquanto os falsos teólogos, líderes cristãos, continuarem usando suas verdades indiscutíveis para justificar o ódio, pouca esperança há de que essa igreja venha a se salvar da estupidez que lhe é peculiar, e que só ela não vê.