Partindo da ideia de “sistema literário” de Antonio Candido, a crítica
literária considera mais do que a obra em si e seus respectivos conteúdos. Além
da já tradicional pergunta pela instância do “autor”, passa a ser também
relevante para a crítica a instância do “público leitor”, e é claro, a mediação
que é feita entre essas três instâncias por alguma instituição mediadora. Quando
passamos a aplicar tal modelo às considerações relativas à literatura bíblica,
abre-se um grande campo de pesquisa que é cheio de especificidades. Nas
próximas linhas, o objetivo é falar da Bíblia a partir do “sistema literário”,
claro, mas vários recortes nesse objeto são necessário. Primeiro, convém dizer
que vamos lidar com a materialidade da Bíblia nos dias de hoje mais do que com
seu conteúdo. Poderíamos dizer isso com outras palavras, anunciando
considerações principalmente sobre o “plano de expressão” (Fontanille, 2011, p.
42-44) da Bíblia no Brasil das primeiras décadas do século XXI, não nos
ocupando tanto com o discurso bíblico, mas com o projeto editorial e com seus paratextos.
Mas falar da materialidade do texto bíblico contemporâneo continua sendo tarefa
demasiadamente grande, pelo que selecionamos algo bem mais específico: nossas
considerações se darão sobre o Novo
Testamento Interlinear: Grego-Portugues, publicação da Sociedade Bíblica do
Brasil, em sua edição de 2004. Dentre as muitas publicações de Bíblias, essa é
uma muito particular, destinada a um público leitor bem específico, e com
várias características peculiares que segundo nosso ponto de vista, merecem
nossa atenção. Enfim, nosso breve trabalho vai analisar esta edição do texto
bíblico fazendo considerações sobre ela como projeto editorial, como obra
literária, como instrumento de estudo, como documento religioso...
Começamos já com um problema
particular à literatura bíblica, que é a questão autoral. Os livros bíblicos
dificilmente apontam algum “autor”, e mesmo quando o fazem, este tipo de
referência é pouco confiável, posto que era comum a prática do que agora
chamamos de “pseudoepigrafia”. Ou seja, os textos eram escritos em nome de alguém
revereciado, um apóstolo de Jesus Cristo, um profeta de renome ou alguém assim.
Isso obviamente provoca árduos debates entre estudiosos, e alguns procuram
ignorar as referências explícitas a autores para construir por meio de análises
complexas o “autor implícito” desses livros. Em nosso estudo do Novo Testamento Interlinear (NTI), vamos
ignorar esse problema e pensar na Bíblia como texto de domínio público,
lembrando que tradicionalmente ela é conhecida como “Palavra de Deus”.
Como já foi possível notar, nosso
objeto de estudo não traz todos os livros bíblicos, mas 27 textos escritos após
a morte de Jesus Cristo que a igreja cristã elegeu (ou canonizaou) e chamou de
Novo Testamento. A razão para a edição escolher publicar esses textos e excluir
todos os livros do Antigo Testamento é simples: o projeto editorial visa
apresentar o texto em sua lingua de origem, e todo o Novo Testamento foi
escrito em grego (koinê), diferente do que ocorreu com o Antigo Testamento
(hebraico e aramaico). O NTI, portanto, traz o texto do Novo Testamento em
grego e uma tradução rigorosamente literal para o português, encaixando sob
cada expressão grega um equivalente em nossa lingua.
Mas por qual motivo alguém se importaria em publicar no Brasil, uma edição
do Novo Testamento em língua grega? Vilson Scholz, um dos editores, respode à
pergunta no prefácio da obra (p. vii-viii), dizendo:
[...] um Interlinear
quer ser um auxílio para a tradução. Quem se utiliza dele está interessado, não
tanto na tradução portuguesa, mas no original grego [...] Assim sendo, o uso do
Interlinear pressupõe um conhecimento mínimo do grego bíblico. Serve de auxílio
a quem já estudou ou está estudando o idioma original do Novo Testamento. Por
si só o Interlinear não ensina a língua greja, mas nada impede que seja usado
para facilitar essa tarefa.
Essas linhas são importantes porque
nos ajudam a entender que tipo de leitor têm-se em mente, e que tipo de
utilização da obra se espera. O editor de certa forma tenta dirigir o uso que
se fará da obra; a partir de suas palavras entendemos que esse NTI não foi feito
para ser lido do mesmo modo que se lê uma Bíblia, ele é um instrumento de estudo,
destinado a pessoas que queriam traduzir o Novo Testamento. Notemos que esta
não é uma obra para se ler em grego, e sim para auxiliar num projeto de
tradução do texto para o português. Assim, podemos dizer que o autor tenta de
alguma forma controlar, condicionar o leitor. Embora o texto já traga a
tradução de cada palavra, não devemos nos contentar com essa truncada versão,
mas empregá-la em nossos próximos exercícios de tradução.
Ainda falando dessas linhas citadas do prefácio, atentemos melhor a essas
palavras: “Quem se utiliza dele está interessado, não tanto na tradução
portuguesa, mas no original grego”. Indiretamente, o editor cria uma oposição semântica
entre o texto grego e as conhecidas traduções dele ao dizer que se busca o
“original grego”. Consequentemente, o texto traduzido é um texto “não
original”, e supoe-se que o leitor queria reduzir a influência dessa intermediação
na sua leitura. Então, quem vai ler o NTI procura ler o texto grego para
traduzi-lo, e o resultado desse trabalho é o acesso mais direto ao conteúdo do
texto bíblico “original”. Esse leitor-tradutor, todavia, não se empenha num
projeto de criar outra versão para ser publicada, divulgada, trata-se uma
atividade pessoal e pontual.
Há uma segunda seção pré-textual intitulada “A Lingua Grega do Novo
Testamento” (p. ix-xi) que não é atribuida a qualquer autor, e em dado momento
essa seção enumera as “Razões Por Que Estudar Grego”. Uma das razões é esta: “Para
fazer cada vez melhor a tarefa da exegese e da teologia”. Essa mensão à
“exegese” é importante, porque nos remete a uma teoria de interpretação bíblica
que conta com longa tradição e muitos pressupostos. Aqui, convém apenas
mencionar que o conhecimento da lingua de origem do texto bíblico era um
requisito indispensável para o exegeta adepto do chamado Método Histórico-Crítico, o qual foi desenvolvido principalmente a partir do século
XIX e trouxe consigo pressupostos historicistas hoje considerados antiquados. Leituras
mais contemporâneas podem simplesmente desconsiderar a importância de se fazer
uma tradução do texto bíblico, preferindo, por exemplo, entender como algum
leitor ou grupo de leitores recebeu o conteúdo a partir de alguma versão que
tinham em mãos. Deveras, o texto grego do Novo Testamento é um texto que em geral
desconhecemos, e que pouca influência deve ter exercido diretamente sobre o
público cristão. A afirmação feita de que a tradução torna a exegese melhor parece
considerar apenas o MHC, que seguindo a historiografia de seu tempo parece
acreditar que a boa aplicação metodológica é capaz de desvendar o “fato
histórico”, aquilo que realmente aconteceu e que eventualmente deu origem ao
texto. A busca pelo evento histórico pré-textual foi uma obsessão no MCH
tradicional, e motivou a aplicação de passos da análise como a “crítica das
fontes”, a “análise da historicidade do texto”, a “crítica textual”, e a ênfase
na biografia e intenções dos autores reais dos textos bíblicos. Seguindo tais pressupostos,
era mesmo indispensável ler o texto em seu idioma original para se aproximar
das palavras originalmente ditas por Jesus; tanto é, que num manual de exegese
histórico-crítica lemos: “[...] a tradução é o primeiro passo a ser realizado
na exegese. Ele é necessário pelo simples fato de o Novo Testamente ter sido
redigido originalmente em grego” (Wegner, 1994, p. 28). Ou seja, parece que o
NTI quer ser um instrumento importante para a exegese de moldes mais
tradicionais, onde quanto mais tardia for a fonte, mais próximo o leitor estará
da “verdade histórica”.
Tendo
identificado razoavelmente esse “leitor” ideal, podemos nos perguntar se o NTI
é uma obra que atinge seus objetivos. Apenas dois tradutores estiveram
envolvidos com o projeto, o já mencionado Vilson Scholz, e Roberto G. Bratcher.
Logo nas primeiras páginas eles são apresentados como doutores em teologia,
tradutores que há muito prestam serviço à Sociedade Bíblica, e o primeiro é
também professor de grego e exegese. Deveras, o projeto foi bem executado, e a
primeira boa escolha foi a do texto grego a ser empregado. A Sociedade Bíblica
internacional já detinha os direitos do texto grego que é o mais bem aceito
hoje. Trata-se do resultado de um longo processo de crítica textual, de
comparação de manuscritos e avaliação de variantes, que é publicado primeiro na
Alemanha em duas versões: The Greek New
Testament que está em sua quarta edição, e Novum Testamentum Graece atualmente em sua 27ª edição. O texto
grego desses dois projetos é o mesmo, os produtores são os mesmos, mas as duas
publicações se diferenciam pelos auxílios que oferecem aos leitores. Segundo a
análise de Wilson Paroschi, o primeiro destina-se a tradutores, enquanto que o
segundo é mais técnico, destinado a professores e especialista em Novo
Testamento que desejam mesmo avaliar o julgamento das variantes textuais (1999,
p. 168). Assim sendo, pode-se dizer que ao menos o texto grego escolhido é o
mais atual e valorizado de que dispomos. No entanto, nesse momento surgem novos
questionamentos:
Como vimos o objetivo do estudioso do grego bíblico é reduzir o impacto da
mediação dos tradutores sobre sua leitura, todavia, o suposto “exegeta” parece
não levar em conta que ao eleger um texto grego como esse, que é também o
resultado de um longo trabalho acadêmico, interpretativo, eventualmente
subjetivo, está ainda dependendo do produto de instituições mediadoras. Sabe-se
que não há manuscritos originais de qualquer texto bíblico, e que qualquer
texto grego do Novo Testamento é na verdade uma colagem de muitos manuscritos.
Então, eliminar a influencia de um tradutor não significa que chegamos ao
“original”, termo que é empregado algumas vezes no prefácio do NTI. Se são
mantidos os alvos positivistas de se buscar o texto mais antigo, mais original,
deveria o NTI também incluir o “aparato crítico” do Novum Testamentum
Graece de
Nestle-Aland, a fim de que também pudesse o leitor avaliar por conta própria as
variantes textuais. Ou seja, além de ser produzido a partir de pressupostos de
análise antiquados, o projeto ignora ou omite sua limitação. O NTI é um auxílio
para a tradução e para o contato com o texto do Novo Testamento em seu idioma
original, desde que o leitor não se importe em adotar o texto grego que foi
produzido por aquela instituição de Stuttgart. As mediações da leitura seguem
presentes, e no caso do texto bíblico, essas mediações são realmente
inevitáveis. Se além ignorar os tradutores, também quiséssemos passar por cima
do trabalho dos críticos que reconstroem o texto do Novo Testamento, teríamos
que ir direto aos mais de cinco mil manuscritos, a maioria deles fragmentários,
e empreender por conta própria o trabalho de crítica textual. Esse
empreendimento não é impossível hoje, mas é certamente difícil e provavelmente
não nos conduziria a conclusões muito diferentes das já alcançadas pelos
alemães. Mas ainda assim, saberíamos que estamos lidando com copistas,
comentaristas, leitores de diferentes épocas e lugares que nos deixaram seus
textos também intermediando nosso acesso ao Novo Testamento. Com isso, resta
reconhecer que a Bíblia com que lidamos não é e provavelmente nunca será aquela
que os autores escreveram, as releituras mais ou menos fieis àquelas origens; e
se nosso acesso ao texto é sempre mediado por outros, vale questionar outra vez
a validade desse projeto de buscar o texto mais antigo. Por qual motivo o
leitor religioso prefere uma versão do século V, fragmentária e escrita num
grego arcaico, do que uma versão moderna, criticada, traduzida, revisada...? A
resposta é que o leitor religioso não acredita na divindade de um texto que
tenha passado por tantas mediações humanas, e por isso segue procurando meios
de eliminar tais mediações, uma busca inútil, como temos visto, e que jamais
teria sucesso já que mesmo os originais mostrar-se-iam repletos de imperfeições
inadequadas à crença numa Palavra de Deus inerrante.
Voltando
ao texto do NTI, é interessante observar que ele não traz em seu interior apenas
o texto grego e tradução literal de cada uma das palavras; há no interior das páginas
outras duas versões do Novo Testamento, versões que também pertencem à Sociedade
Bíblica Brasileira. Uma dessas versões parte da tradução de João Ferreira de Almeida,
mas numa edição que chamam de “Tradução de Almeida Revista e Atualizada no Brasil”
(ARA), publicada pela primeira vez em 1959, e que contou com nova edição em 1993.
A segunda versão é a chamada “Nova Tradução na Linguagem de Hoje” (NTLH) de 2000,
que é na opinião de muitos algo mais parecido com uma paráfrase contemporânea do
texto bíblico do que uma tradução. Como se pode ler no prefácio do NTI (p. vii),
considera-se uma “vantagem” o fato de esta publicação trazer quatro textos ao mesmo
tempo. Sem dúvida, o processo de comparação de traduções fica assim facilitado,
já que não é preciso abrir várias Bíblias, porém, a escolha dessas versões que já
pertenciam à mesma casa publicadora, é uma limitação. Isso dizemos porque um tradutor
do Novo Testamento dificilmente consideraria a leitura da NTLH de algum valia para
seu trabalho. Aqui, a boa intenção foi prejudicada por questões mercadológicas e
direitos autorais, pois uma equipe de tradutores independente escolheria outras
versões bíblicas para este recurso.
O projeto
ainda oferece um outro auxílio que merece algumas linhas. Nalguns momento, o leitor
encontra notas de rodapé com auxílios gramaticais, raízes de verbos irregulares,
e mais ainda para os chamados “particípios”, que possuem simultaneamente características
de adjetivo e de verbo, e que geralmente impõem os maiores desafios aos estudantes
do grego bíblico. Há também casos em que pequenos números colocados ao lado de alguns
verbos dirigem o leitor a um anexo que aparece no final do livro com “Análise dos
Verbos mais Frequentes”. Esse anexo apresenta uma lista de 15 verbos comuns em todas
as formas que eles assumem no texto do Novo Testamento. Como podemos ver, esses
auxílios tornam o NTI ainda mais específico, são instrumentos que só dizem respeito
a tradutores e estudantes de grego, o que outra afirma que este não é um produto
destinado ao leitor comum de qualquer texto bíblico.
Nossa
análise da materialidade e do conteúdo do NTI nos mostrou que tipo de produto ele
pretende ser. Não é um texto para leitura geral, mas para estudiosos; todavia, vimos
que há um tipo muito particular de leitor/estudioso que quer ser alcançado, o leitor/estudioso
que procura fazer exegese histórico-crítica, e desse trabalho interpretativo fazer
“teologia”. A editora e os profissionais envolvidos atuam como mediadores desse
trabalho teológico, oferecem os auxílios que consideram mais úteis, e reafirmam
indiretamente que o texto grego é mais sagrado que o texto traduzido, desconsiderando,
como vimos, os muitos problemas com esses pressupostos historicistas. Outra evidência
desse interesse religioso é a inclusão no texto de todos os subtítulos criados por
editores que já estavam presentes noutras versões. Esse “paratextos” de alguma forma
direcionam a leitura religiosamente, e até contrariam os interesses de um exegeta
que quer exatamente livrar-se da intermediação editorial.
Mesmo
assim, o livro é um belo projeto editorial, uma boa ideia que foi bem executada,
com algumas poucas limitações como a escolha das versões brasileiras que ali são
incluídas para comparação. Gostaríamos apenas de dizer que outros leitores, além
daquele pretendido pelo próprio projeto, podem se beneficiar. Mesmo sem levar em
conta o texto grego, a tradução literal e as outras versões podem ser úteis para
uma comparação empreendida por um número bem maior de leitores. Nos círculos religiosos,
onde o texto é lido e aplicado de maneira normativa, sem dúvida a mera leitura de
diferentes versões pode impedir que se estabeleçam “certezas” sobre versões mal
traduzidas. Caso o leitor tenha o interesse de estudar o Novo Testamento grego sem
aqueles pressupostos historicistas que já criticamos, ele também poderá se aproveitar
dos recursos desse título.
Em
suma, a comparação do NTI com outras edições da Bíblia no Brasil podem mudar nosso
julgamento, elevam ainda mais seu valor, posto que esse interesse mais técnico raramente
norteia a produção de uma nova edição do texto bíblico.
Referências Bibliográficas
FONTANILLE,
Jacques. Semiótica do Discurso. São
Paulo: Contexto, 2011.
NESTLE, Eberhard; ALAND,
Kurt. Novum Testamentum Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft
(27a ed.), 1993.
PAROSCHI,
Wilson. Crítica Textual do Novo
Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia.
São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.
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