Todos que porventura decidem estudar a literatura paulina com dedicação acabarão se defrontando com esta questão que já expusemos desde o título. Sabemos que tradicionalmente Paulo é considerado um erudito, para muitos, o primeiro grande pensador da história do cristianismo. A imagem ao lado, de Paulo com um livro moderno, ilustra o funcionamento desse imaginário religioso popular. Porém, atualmente há um grande número de estudiosos que, levando à sério a questão, estão defendendo a opinião de que Paulo era um homem bem mais simples do se imagina. Isso não quer dizer que ele não tenha sido um importante pensador, doutrinador, mas que talvez ele não tivesse um nível de escolaridade tão elevado quanto hoje imaginamos.
Não pretendemos resolver a questão, oferecer a resposta definitiva que tantos outros mais dedicados à pesquisa paulina não conseguiram. Nosso objetivo é averiguar alguns dos motivos que levam estes estudiosos a fazer este tipo de afirmação tão contraditória em relação àquilo que a igreja sempre acreditou. Antes de mais nada, é importante saber que a desconfiança em relação ao retrato tradicional de Paulo se dá pela maneira como estes estudiosos leem Atos dos Apóstolos.
Quem disse que Paulo era um erudito?
A verdade é que todos nós somos induzidos pelo cânon do Novo Testamento a ler a história de Paulo em Atos antes mesmo de ler as cartas paulinas, e isso já nos impõe uma série de pressupostos que depois, inevitavelmente, influenciam nossas leituras. Aprendemos que Paulo era um homem erudito lendo Atos, que o admira e o retrata como um grande herói (At 22.3 é usado para isso, embora seja duvidoso que a educação em questão tenha caráter escolar). Todavia, há muitos motivos para pelo menos desconfiarmos de muitas das afirmações de Atos em relação a Paulo. Por exemplo, depois de falar da conversão de Paulo no capítulo 9, Atos diz que Paulo fora logo a Jerusalém, informação que não condiz com o que lemos na carta paulina aos gálatas (Gl 1.15-19).
No capítulo 15 de Atos nós encontramos a narrativa do chamado “concílio de Jerusalém”, onde Paulo entra em acordo com os apóstolos mais antigos e recebe deles algumas recomendações típicas da religiosidade judaica (At 15.28-29). Atos quer transmitir ao leitor a impressão de que não haviam divisões entre Paulo e os apóstolos de Jerusalém (At 16.4). Porém, Gálatas 2.10 não menciona nenhuma dessas exigências, mas fala de um pedido feito para que Paulo auxiliasse de alguma maneira os pobres das comunidades de Jerusalém.
Por fim, se lermos Atos atentamente notaremos que Paulo, embora influente pregador, não é reconhecido como apóstolo em nenhuma passagem do livro, e isso se deve aos critérios de apostolicidade de Atos, que podem ser lidos em 11.21-22. Segundo este texto, um apóstolo tinha que ter conhecido Jesus pessoalmente e andado com ele durante todo o seu ministério. Portanto, o ministério apostólico para Atos só existiu nos primórdios da igreja, e morreria junto com aqueles líderes. Atos também exige que o apóstolo tenha sido testemunha da ressurreição, e qualquer dessas exigências desqualifica Paulo. Por outro lado, o próprio Paulo se diz apóstolo, e melhor que Pedro e os outros, não escolhido por homens, mas por Jesus Cristo (Gl. 1.1, 11-12).
De maneira bem rápida e simples, tentamos mostrar que para os estudiosos em geral que buscam informações mais confiáveis a respeito do Paulo histórico, Atos é um livro problemático. Certamente há nele dados relevantes, mas sua leitura deve ser feita com reservas, e sempre que isso for possível, em comparação com aquilo que nos diz as cartas, fontes mais diretas para acesso a Paulo.
Então, deixando Atos de fora da questão, quais fontes temos para falar de Paulo? Também é consenso acadêmico que apenas sete das cartas do Novo Testamento podem ser consideradas autenticamente paulinas. Os motivos são vários: há informações contraditórias, como a escatologia oposta de 1Tessalonicenses e 2Tessalonicenses, há preocupações cristológicas e eclesiológicas que nos remetem a períodos em que as comunidades já estavam mais “institucionalizadas” e hierarquizadas, coisa que não condiz com o contexto paulino original, e há muitas diferenças no próprio estilo dos textos. Enfim, esse é outro debate, talvez até maior do que esse em que nos envolvemos, e que merece um trabalho à parte (Vaage, 2009; Heyer, 2009, p. 1-12). Por hora basta lembrar que todas as informações sobre Paulo devem, para o contexto acadêmico, ser tiradas de sete cartas, que seriam as indiscutivelmente paulinas. São elas: Romano, 1 e 2 Coríntios, Gálatas, Filipenses, 1Tessalonicenses e Filemon.
Que evidência há para dizer que Paulo era indouto?
Há uma passagem que realmente parece indicar que Paulo admite não ser um homem letrado. Trata-se de 2Coríntio 11.6, cuja tradução literal pode ser assim: “... e se porém indouto para a palavra, mas não para o conhecimento...”. Paulo diz que é indouto para a palavra (idiotes to logo), mas as Bíblias que geralmente lemos não nos deixam notar isso, pois traduzem o mesmo substantivo de diversas maneiras, menos da maneira que revela que Paulo é um “não capaz” ou “não iniciado” na palavra (que pode ser escrita ou discurso). Isso é curioso, posto que noutro texto paulino o mesmo termo reaparece e aí sim nossos tradutores o fazem como sugerimos.
Estamos falando de 1Coríntios 14.16, quando Paulo diz que aos discípulos que se eles bendisseres em espírito, “como os indoutos dirão amém para o teu agradecimento depois?”. Neste caso, fica claro pelo uso do mesmo substantivo que Paulo está se referindo àquele que não entendem, que são incapazes de compreender aquela adoração extática. Voltando ao texto anterior, tudo nos leva a crer que ele está dizendo que não é alguém capacitado para as letras, mas que é para o conhecimento (gnosis).
Se Paulo não está falando de sua incapacidade de “escrita”, está pelo menos se referindo ao discurso, provavelmente às técnicas de retórica que também faziam parte da educação, e que os coríntios não viam em Paulo. Partindo daí a hipótese de que Paulo não era um homem letrado pode ser defendida com outros argumentos. Talvez isso também esteja em pauta quando 2Coríntios 10.10 (a mesma carta) traz uma suposta reclamação dos coríntios: “... pois as cartas, dizem (são) pesadas e fortes, mas a presença (parousia) de corpo fraca e a palavra desprezível”.
Não é difícil entender como seria possível Paulo demonstrar alguma erudição nas cartas e nenhuma pessoalmente. As sete cartas paulinas, sem exceções, sempre dizem abertamente que Paulo não as produziu sozinho. Na maioria delas Paulo se apresenta como autor ao lado de outros. Em Filipenses, por exemplo, Paulo e Timóteo são os autores (Fl 1.1), mas no decorrer do texto Timóteo desaparece, e ficamos com a impressão de que há apenas um autor na carta. Qual seria a participação de Timóteo na autoria da carta? O que Timóteo fez para que merecesse um lugar como autor? Nossa resposta é: Timóteo deve ter escrito a carta. Acreditamos que Paulo era o mais ativo pensador da carta, o mais influente mensageiro, mas seria natural que aquele possuísse maior habilidade com a arte de escrever colocasse as palavras no papiro. Timóteo, que segundo Atos 16.1-3 era um gentio de Listra que aparentemente tinha por pai um homem de posição social elevada, pode muito bem ter redigido toda a carta aos filipenses, usando as técnicas de argumentação e gramática que, talvez, o próprio Paulo não dominasse tanto.
Há outra referência muito significativa para esta hipótese, a de que as cartas paulinas pudessem ser escritas por pessoas diferentes, espécies de secretários ou escribas que estavam na companhia de Paulo. A carta aos romanos começa com a apresentação de apenas um autor, Paulo. Mas no último capítulo outros personagens aparecem, e vemos que outros estão com o apóstolo no momento da criação. Em especial, Romanos 16.22 diz: “Saúdo-vos eu, Tércio, que escrevi esta carta no senhor”. Aqui a evidência é muito clara, e somos obrigados a reconhecer que outra pessoa tinha o controle da pena durante a composição da carta, que apesar disso, fora atribuída principalmente a Paulo. Isso não parece ser motivo de escândalo para aquele tempo.
Apesar de tudo, não precisamos defender a partir de agora que Paulo era um analfabeto. Talvez ele tenha estudado, mas não dominasse a escrita tão bem quanto esses irmãos a que nos referimos. Isso é natural, já que saber ler não significa que uma pessoa também saiba escrever; além do que, naqueles tempos só seria um bom escritor quem soubesse escrever com letras bonitas e pequenas, para ser legível e economizar papiro, material importado do Egito que certamente não era tão barato quanto os nossos cadernos de hoje.
Quem sabe, Paulo fosse um homem letrado, mas que por alguma limitação física, talvez na visão como alguns acreditam, já não se considerasse apto para redigir uma longa carta? No final de três das sete cartas paulinas nós encontramos estranhas referências à escrita de Paulo. Em 1Coríntios 16.21, Paulo diz que escreveu a saudação de sua própria mão, provavelmente porque não escreveu todo o restante da carta. Em Gálatas 6.11 ele também diz escrever a saudação final, e com “grandes letras”, talvez indicando sua inabilidade com o manuseio da pena. Por fim, Filemon há uma referência à “própria mão” de Paulo no versículo 19.
Depois de tudo isso, podemos concluir que Paulo, ainda que tenha tido algum tipo de educação formal, não foi o grande erudito que geralmente se imagina. Ele parece saber escrever, pelo menos um pouco, mas dificilmente é o responsável direto pelas cartas, e por conta disso não adianta muito avaliar o grau de erudição desses textos em busca de informações sobre Paulo. Importante é sabermos que ele, erudito ou não, foi um líder influente, um formador de opiniões que deixou marcas definitivas na história do cristianismo. Suas cartas, certamente refletem seus pensamentos, porém, também trazem opiniões alheias, mais uma vez nos fazendo lembrar que o texto sagrado é um produto de autoria coletiva, da comunidade, e não apenas dos grandes apóstolos.
Referências Bibliográficas
CROSSAN, John Dominic; REED, Jonathan L. Em Busca de Paulo: Como o Apóstolo de Jesus opôs o Reino de Deus ao Império Romano. São Paulo: Paulinas, 2007.
HEYER, C. J. den. Paulo, um Homem de Dois Mundos. São Paulo: Paulus, 2009.
QUESNEL, Michel. Paulo e as Origens do Cristianismo. São Paulo: Paulinas, 2008.
SAMPLEY, J. Paul (org.). Paulo no Mundo Greco-Romano: Um Compêndio. São Paulo: Paulus, 2008.
VAAGE, Leif. Introducción Metodologica a los Escritos de Pablo. In. RIBLA, 62. Quito, 2009.
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