quinta-feira, 16 de junho de 2011

ENTRE A TEORIA E A PRÁTICA: SOBRE ESTE BLOG E SOBRE A VIDA

Trago aqui apenas uma reflexão pessoal que nasce a partir do meu próprio olhar sobre este blog. Eu me explico: Olho para as últimas postagens e vejo meus textos seguindo dois caminhos distintos. Alguns são bem científicos, e acho que já não sei avaliar quão difíceis ou até inacessíveis eles são aos leitores deste blog. Continuo os escrevendo e postando, e não faço isso porque pretendo exibir conhecimento acadêmico (na verdade tento me fazer compreender e até simplifico alguns textos para este blog), mas porque eles expressam bem o que realmente ando pensando, aprendendo, trabalhando... Por outro lado, me orgulho quando consigo postar textos mais práticos. Eles também são reflexivos, às vezes teóricos, às vezes discutem interpretação de textos bíblicos, mas o número de acessos e de comentários destes textos demonstram que são de interesse bem maior para os leitores em geral. São dois caminhos que considero necessários, o teórico e o prático.


Anos atrás, a vida me exigia mais trabalhos práticos. Não que eu fosse um leigo desinteressado nas teorias, mas escrevia para a igreja, era uma necessidade, e acho que conseguia atingir os objetivos. Naquela época eu já fazia algumas tentativas mais teóricas, mas hoje vejo que toda a produção daqueles dias se caracteriza pela superficialidade. Aos poucos, vou apagando os arquivos, jogando fora os papéis, excluindo as postagens mais antigas do blog... Pode ser que eu, sem notar, esteja apagando minha própria história, mas estes gestos demonstram o meu amadurecimento.


A vida mesmo me levou a novos caminhos, e estas veredas acadêmicas que para alguns são penosas, me apaixonam. Conheci pessoas, livros, idéias e teorias. Fiz pós-graduação, mestrado e hoje faço doutorado, um desenvolvimento que pouco a pouco me faz cada vez mais teórico, cada vez mais científico, e ao mesmo tempo, menos popular. A tese que hoje desenvolvo me parece fascinante, mas sei que ela só será bem recebida nos círculos acadêmicos.


Pois bem, este blog, então, é minha “válvula de escape”. Faço aqui desabafos, falo outra vez de questões eclesiásticas, reflito sobre a minha vida e procuro também influenciar a vida de outros. O exercício da linguagem coloquial que aqui faço sempre me ajuda a manter-me próximo do leitor cristão não interessado nas teorias, mas hoje, vejo que mesmo estes textos que chamo de “práticos” possuem um nível de profundidade argumentativa que excede muito àquela dos antigos textos práticos. Enfim, a teoria me cativou e me fez mais cientista que cristão, porém, ela também me fez um cristão mais profundo.


É isso o que eu queria dizer nesta postagem: Tanto a preocupação teórica quanto a prática são indispensáveis. Quem deixa de ser um ouvinte “leigo” e entra para o time dos pregadores, escritores, professores e líderes, deve se preocupar com o aprimoramento teórico, com o estudo. Se queremos formar opiniões, que pelo menos formemos opiniões sensatas. O isolamento acadêmico também não é um bom caminho, tanta experiência deve sempre oferecer ao mundo alguma contribuição direta.


Enfim, eu temo falar de coisas que não conheço, e sou resistente àquelas pessoas que falam demais e acabam palpitando sobre tudo (pior ainda quando usam os “altares” ou os “títulos” para legitimar suas falas). Eu já fiz isso, mas o conhecimento me ajudou a evitar emitir meus juízos e falsas “verdades” de maneira descuidada. Quem possui conhecimento teórico, e preocupação com uma prática responsável, não cometerá tantos erros.

domingo, 12 de junho de 2011

EXPERIÊNCIAS MÍSTICAS E A INICIAÇÃO DE JESUS: MATEUS 3.16-4.11

Entre o final do capítulo 3 e o capítulo 4 há o que poderíamos chamar de “eventos visionários de Jesus. Pelo menos é assim que lemos estes textos, como experiências extáticas que iniciaram Jesus no ministério. Vamos falar rapidamente dos dois eventos místicos que envolvem o começo do trabalho de Jesus, sugerindo que os mesmos eventos juntam-se ao batismo já comentado, e formam uma espécie de estatuto para a iniciação de todo cristão. Noutras palavras, acreditamos que o cristianismo primitivo poderia ler estes eventos (batismo, visão, exorcismo e ascenção) como passos necessários a todos os discípulos de Jesus.


Primeiro, Jesus tem uma visão ao sair da água em seu próprio batismo (3.16-17). É difícil dizer se este evento foi testemunhado por outras pessoas presentes, ou se o propósito é dizer que apenas Jesus o vivenciou. Pode ser também, que só aqui Jesus tomou conhecimento direto de sua identidade messiânica. Pode ser que aquela voz ouvida tenha sido o momento decisivo que separou o Jesus galileu filho do carpinteiro, do Jesus messias de todos os povos.


O segundo momento começa quando, após o batismo, Jesus é “arrebatado” pelo espírito e vê-se no deserto, onde é provado antes de iniciar seu trabalho libertador em Israel (4.1-11). Na versão de Marcos não há um relato de tentações, mas apenas a idéia de que Jesus foi tomado pelo Espírito e levado ao deserto para ser tentado. Em todo caso, o importante é que este texto liga-se perfeitamente à tradição apocalíptica judaica, onde muitos visionários viam-se tomados por anjos ou seres celestiais e viajavam aos céus (Cf. Schiavo, 2003). No misticismo posterior, na literatura da chamada Hekhalot, estas ascensões tornaram-se verdadeiras aventuras, e os viajantes não apenas contemplavam os céus e as coisas que haveriam de acontecer ao mundo no futuro, mas eram provados, tinham que vencer obstáculos... Talvez estas tradições expliquem de alguma maneira a viagem de Jesus.


Então, não vemos a visão do batismo ou a ida até o deserto como eventos históricos, reais, mas como experiências extáticas, como arrebatamento dos sentidos, o que nos mostraria que estes textos não narram a vida de Jesus como alto tão próprio, como um desenrolar exclusivo, mas que há muitas similaridades com a vida de muitos outros profetas e visionários apocalípticos, místicos da religião judaica.


Voltamos então a anunciar nossa hipótese: acreditamos que a sequência de eventos pelas quais Jesus passa no texto antes de seu ministério poderiam servir entre os leitores dos evangelhos como um estatuto para novos adeptos. Se estivermos certos, todos deveriam imitar a trajetória de Jesus, batizando-se, jejuando, sendo exorcizados dos demônios, e vivenciando experiências místicas visionárias.

JESUS PROCURA JOÃO, O BATIZADOR: MATEUS 3.13-15

Nova perícope se inicia, e narrativamente há uma mudança que vale a pena observar. A partir do versículo 13 o narrador diz que Jesus vai até a Judéia (sul do país) para procurar o profeta João Batista. A impressão que temos é a de que está por traz da narrativa deste encontro um evento histórico, que é busca de Jesus por João e seu batismo. Porém, no processo de organizar as tradições sobre Jesus num evangelho, as coisas foram interpretas de forma que confirmassem a mensagem de fé dos cristãos de então. Assim, o Jesus que um dia foi discípulo de João, e que submeteu-se ao batismo confessando os seus pecados (conforme a exigência para todos os candidatos ao batismo), foi transformado. Ele não possuía pecados segundo os evangelhos, e por isso, seu batismo não passou de um gesto de obediência a normas religiosas; ao mesmo tempo, o profeta João que aparentemente foi um mestre de Jesus, é devidamente colocado num lugar mais secundário.


Em Mateus esse texto é particularmente estranho. O evangelho se nega a cumprir normas religiosas como essas. É uma contradição teológica: jejuns, orações rituais, sábado, sacrifícios... atos religiosos como esses são todos relativizados por Mateus, alguns até mesmo substituídos por “obras de misericórdia”, como veremos nos capítulos futuros. Mas o batismo parece ser um ritual que Mateus aceita, e por isso o texto faz Jesus, o homem que não tinha pecados, batizar-se para legitimar o ritual da comunidade. Os problemas teológicos foram resolvidos com aquele argumento de que Jesus, até ele, batizou-se para cumprir as normas do grupo que integrava. Nenhum leitor está livre para negar o batismo como rito de iniciação necessário, pois segundo o evangelho, até Jesus, que não precisava confessar pecados, não precisava de nenhum perdão, e que não tinha que mudar de vida, o fez para servir de exemplo.

segunda-feira, 6 de junho de 2011

O FIM DA HISTORIOGRAFIA CRONÍSTICA E A INFLUÊNCIA DESTA MUDANÇA PARA A LEITURA DA BÍBLIA

Estamos dando início a mais uma série de reflexões, e desta vez, o tema de nossas discussões é a historiografia. Vamos falar sobre as grandes mudanças na historiografia que influenciaram também nosso modo de ver a Bíblia. Serão poucas seções, mas se conseguirmos atingir nossos objetivos, serão muito instrutivas para os leitores que desejam ler a Bíblia de maneira relevante para o século 21.



O primeiro ponto a ser mencionado é quebra de um antigo paradigma que praticamente inaugurou a historiografia como ciência. Trata-se da desvinculação daquela velha tradição da cronística, onde historiar era nada mais que narrar cronologicamente os eventos marcantes dos impérios, as trajetórias políticas, as vitórias militares, entre outros fatos selecionados que só diziam respeito a minorias elitizadas. Este tipo de tradição reunia documentos sem interpretá-los, privilegiava sempre os fatos mais notáveis, heróicos, e por conseguinte, negligenciava a realidade muito mais complexa da história humana, que não se limita às elites, às guerras, e aos momentos decisivos dos regimes políticos. A virada nesta situação ocorreu já a partir da influência do Iluminismo europeu, e consolida-se nos inícios do século 19.



Além da evidente abertura que essas novas perspectivas trazem para o florescimento de todas as chamadas ciências sociais, podemos dizer que a exegese bíblica desenvolveu-se significativamente nestes mesmos dias, principalmente através do chamado Método Histórico Crítico (MHC), que na verdade é uma coleção de métodos de análise dos textos que caracterizam-se por pressupostos típicos da historiografia do século 19, que poderíamos aqui chamar de historiografia positivista. O método é chamado “histórico” porque aborda as fontes (os textos bíblicos) como documentos históricos, produzidos em tempos passados, e que precisam ser estudados dentro de sua própria perspectiva temporal. Ou seja, dá-se grande importância ao “contexto histórico”, ao mundo em que os textos foram construídos, e à evolução dos textos no decorrer tempo. A exegese, conforme proposta pelo MHC, também é “crítica” porque analisa as fontes e emite juízos sobre os texto e seus significados, o que nos aproxima do caráter “explicativo” da historiografia de então.



O primeiro pilar do MHC, portanto, é a análise cuidadosa dos elementos externos ao texto, que supostamente iluminariam suas palavras obscuras e as tornariam inteligíveis para o leitor de hoje. Essa ênfase no histórico, todavia, segue princípios hoje muito questionáveis. Como é típico da historiografia positivista do século 19, acreditava-se que a boa aplicação metodológica seria capaz de desvendar o “fato histórico”, aquilo que realmente aconteceu e que eventualmente deu origem ao texto. Daí, exegetas antigos (e também exegetas atuais que insistem na utilização das antigas metodologias) empenharam-se na busca pelo “Jesus histórico”, pelo “Paulo histórico”, e pelo sentido original do texto, e claro, pela intenção original do autor. Acreditou-se que os bons exegetas chegariam àquilo que realmente Jesus dissera, à verdadeira igreja primitiva, e ao perfeito significado dos textos. Mas os anos se passaram e os resultados contraditórios das pesquisas levantaram desconfianças sobre a validade desse paradigma e sobre a eficácia desses métodos.



Há nos manuais de um passo metodológico que expressa bem o que estamos dizendo. Trata-se da “Análise da Historicidade do Texto”, que não busca outra coisa senão avaliar quão fiel ao “fato histórico” é o evento em sua forma narrativa. Se alguma passagem revela incoerências cronológicas, geográficas, ou qualquer outra forma de incoesão, passa a ser vista como narrativa ficcional, o que na prática significa que possui menor valor como documento histórico. Outra vez, estava por trás dessa avaliação a idéia de que somente o que realmente aconteceu possui importância, sendo que os elementos fictícios ou mitológicos deveriam ser considerados de menor relevância. Somente no século 20, e novamente a partir de novos paradigmas da historiografia, a exegese veio a repensar seus métodos e objetivos. A partir de então, o Método Histórico-Crítico e a própria exegese como ciência seriam transformados.