segunda-feira, 29 de outubro de 2012

OS COMPENSADORES RELIGIOSOS - CONCEITOS TEOLÓGICOS



Começamos essa seção com a leitura de uma passagem bíblica, Mateus 6.19-21, que apresenta um tipo de argumentação religiosa bastante comum em qualquer forma de religiosidade:
 (19) Não entesoureis tesouros para vós sobre a terra, onde traça e ferrugem destrói e onde ladrões arrombam e roubam;
(20) mas entesourai tesouros para vós no céu, onde nem traça nem ferrugem destrói e onde ladrões não arrombam nem roubam;
(21) pois onde está o teu tesouro, ali estará também o teu coração.
O texto já está divido em três partes nas Bíblias, e essa divisão é ao menos didática. Nos versículos 19 e 20 encontramos duas frases muito parecidas, o que nos sugere que foram produzidas como um par, e devem ser lidas conjuntamente. Já o versículo 21, embora tenha clara relação de continuidade temática em relação aos anteriores, é diferente deles formalmente.
Os dois primeiros começam com os mesmos imperativos, porém, em sentidos contrários. A primeira frase traz um imperativo negativo, ordena aos destinatários da mensagem que “não” entesourem tesouros, isto é, que não acumulem seus bons valores na terra. Por outro lado, a segunda frase diz o oposto, ordenando que “sim”, que se acumulem tesouros, mas no céu. Daí já notamos que a questão não é o acúmulo de tesouros, e sim o local em que estes tesouros são depositados; ou seja, a grande oposição que constitui o texto está nos seus códigos topográficos.
O argumento básico para que se aceite o contrato proposto é a transitoriedade ou durabilidade dos dois tipos de tesouros possíveis; os da terra, diz o texto que podem ser consumidos por traça e ferrugem, ou roubados por ladrões, elementos que não podem atingir os tesouros que estão depositados no céu. A oposição básica de valores se dá entre riqueza e pobreza; contraditoriamente, a verdadeira riqueza é a celestial e não palpável, que assume o papel de valor desejável que para ser obtido exige que o leitor aceite o contrato proposto por esse Jesus/narrador. O contrato pede que se abdique dos tesouros terrenos, o que dá origem a um estranho percurso temático, onde a busca pela riqueza celestial passa necessariamente pela rejeição da riqueza terrena:
A possibilidade da rejeição do contrato existe, basta que o destinatário da mensagem continue vivendo segundo os padrões econômicos estabelecidos social e culturalmente. Se esta for a escolha do leitor, ele poderá adquirir riquezas, acreditar que tem seu futuro assegurado, mas acabará sem tesouros já que como afirma o texto, a transitoriedade dos tesouros terrenos, as ameaças a que estão expostos, os valorizam disforicamente.
Segundo a cosmologia do evangelho existem dois “mundos” paralelos, céu e terra, e por enquanto estamos limitados à terra, porém, destinados ao céu. Assim, conscientes da transitoriedade da vida terrena, devemos fazer dessa existência um meio de garantir uma boa posição na vida celestial, que é eterna. Daí seu incentivo pela busca de tesouros celestiais, e seu desprezo a todos os bens e honras terrenas.
Passando então para o versículo 21, vemos que se trata de uma sanção que aparentemente se apropria de um dito popular, o que produz a impressão de que esta afirmação é uma verdade de aceitação universal. Não é difícil notar como as duas linhas estão construídas sob padrões formais semelhantes aos dos versículos anteriores, e outra vez temos duas linhas em que contém advérbios que indicam localização (“onde” e “ali”), pronomes em segunda pessoa (“teu”), o verbo “estar”, ainda que conjugado em diferentes tempos verbais, e em ambas também temos um substantivo (“tesouro” e “coração”). O texto estabelece uma relação causal entra as duas afirmações que faz, e os verbos exercem um papel importante. Onde no presente “está” o tesouro, no futuro “estará” o coração, e com isso entendemos que a administração dos tesouros que é realizada no presente, e que como vimos só podem ser colocados na terra ou no céu, determina o lugar em que o coração estará no futuro. O substantivo “coração”, no texto mateano, parece ser usado para simbolizar o pensamento, a racionalidade, a consciência, e, portanto, podemos dizer que o modo como se administra os tesouros explicitam os interesses reais e ocultos do ser humano. A equação é imutável, não é possível em nenhuma circunstância separar o coração do tesouro. A única opção aceitável por parte do destinatário é mudar já seu modo de lidar com seu tesouro, ou seja, deixar de lado os objetos considerados valiosos neste mundo (os tesouros da terra) por coisas que possuem valor no céu, ação que seria interpretada como prova de uma correta devoção religiosa.
Finalmente chegamos aonde queríamos, onde podemos aplicar a esta leitura o conceito de “Compensadores Universais”. Segundo Rodney Stark e William Sims Bainbridge, esse tipo de promessa substitutiva, onde a religião oferece algo intangível em troca de algo tangível, não é nada mais que uma espécie de compensador:
Quando os seres humanos não conseguem obter recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles persistem em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos intangíveis para a recompensa desejada... (2008, p. 48)
O discurso mateano que escolhemos como exemplo estaria oferecendo recompensas ilusórias para compensar um desejo não realizado; noutros termos, a frustração pelas ambições não realizadas do sujeito são amenizadas pela religião, pela esperança de se receber futuramente recompensas maiores, tesouros que na verdade são recebidos apenas por meio da fé, já que a validade dessas promessas não pode ser verificada (Stark; Bainbridge, 2008, p. 49-50).
Mas algumas ressalvas devem ser feitas quando adotamos o conceito de “Compensadores Universais” de Stark e Bainbridge, pois embora os prometidos tesouros do céu não sejam descritos com clareza, certamente nalgum momento histórico e na ideologia de algum grupo social, tais tesouros intangíveis eram vistos como recompensas mais desejáveis ou seguros do que os bens terrenos que outros monopolizavam. Os tesouros celestiais não eram meros substitutos apenas desejados que visavam consolar pessoas entristecidas, tratava-se de um importante argumento para convencer o grupo de que aquela opção sócio-religiosa era segura. Podemos até adotar o termo “compensadores” de Stark e Bainbridge para nos referimos aos tesouros celestiais de Mateus, todavia, como ressalta Andrew Buckser apontando limitações na teoria dos autores mencionados, a religião não provê aos seres humanos somente promessas sobrenaturais e futuras, mas também lhes dá significação e traz satisfação imediata, as quais também são recompensas reais (1995, p. 1-3). Assim, ao interpretarmos os tesouros celestiais de Mateus, dizemos que essas promessas não possuíam apenas o papel de compensadores intangíveis, substitutos meramente paliativos para os seus verdadeiros desejos, antes, a eficácia do emprego dos tesouros celestiais no discurso econômico mateano se dá exatamente pela maneira como eles entendiam essas recompensas sobrenaturais como verdadeiras. Mais que promessas, tais tesouros eram certezas pelas quais se poderia aderir ao projeto judaico-cristão sem reservas.
Em suma, o texto incentiva seus destinatários a resistir às propostas de segurança deste mundo, e fornece uma descrição hoje incerta, porém ainda sublime, de recompensas futuras para aqueles que não se prendessem às antigas ambições e aderissem ao estilo de vida proposto pelo Jesus de Mateus. Não podemos, enfim, subestimar a força desse argumento e o poder motivacional dessas tentações.

Referências Bibliográficas


BUCKSER, Andrew. Religion and the Supernatural on a Danish Island: Rewards, Compensators, and the Meaning of Religion. In. Journal for the Scientific Study of Religion, v. 34, 1995, pp. 1-16.
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma Teoria da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

NOVO ARTIGO PUBLICADO: SEMIÓTICA PARA BIBLISTAS

Olá, quero informar a publicação de mais um artigo meu. O texto está disponível para ser baixado em PDF no site da Revista Âncora: www.revistaancora.com.br.

Resumo:
A semiótica francesa, embora ofereça um bem elaborado método interpretativo, segue sendo ignorada pela maioria dos estudiosos dedicados à tradicional exegese bíblica no Brasil. Esse artigo procura contribuir neste campo de pesquisa defendendo a eficácia da Semiótica Discursiva no processo de análise dos textos bíblicos e incentivando seu uso. Para isso, nós vamos apresentar uma introdução metodológica seguida de uma análise semiótica de Mateus 19.16-23.

Palavras-Chave: Semiótica; Análise do Discurso; Evangelho de Mateus; Exegese; Literatura Bíblica.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

BÍBLIA E MATERIALIDADE: O NOVO TESTAMENTO INTERLINEAR DA SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL



Partindo da ideia de “sistema literário” de Antonio Candido, a crítica literária considera mais do que a obra em si e seus respectivos conteúdos. Além da já tradicional pergunta pela instância do “autor”, passa a ser também relevante para a crítica a instância do “público leitor”, e é claro, a mediação que é feita entre essas três instâncias por alguma instituição mediadora. Quando passamos a aplicar tal modelo às considerações relativas à literatura bíblica, abre-se um grande campo de pesquisa que é cheio de especificidades. Nas próximas linhas, o objetivo é falar da Bíblia a partir do “sistema literário”, claro, mas vários recortes nesse objeto são necessário. Primeiro, convém dizer que vamos lidar com a materialidade da Bíblia nos dias de hoje mais do que com seu conteúdo. Poderíamos dizer isso com outras palavras, anunciando considerações principalmente sobre o “plano de expressão” (Fontanille, 2011, p. 42-44) da Bíblia no Brasil das primeiras décadas do século XXI, não nos ocupando tanto com o discurso bíblico, mas com o projeto editorial e com seus paratextos. Mas falar da materialidade do texto bíblico contemporâneo continua sendo tarefa demasiadamente grande, pelo que selecionamos algo bem mais específico: nossas considerações se darão sobre o Novo Testamento Interlinear: Grego-Portugues, publicação da Sociedade Bíblica do Brasil, em sua edição de 2004. Dentre as muitas publicações de Bíblias, essa é uma muito particular, destinada a um público leitor bem específico, e com várias características peculiares que segundo nosso ponto de vista, merecem nossa atenção. Enfim, nosso breve trabalho vai analisar esta edição do texto bíblico fazendo considerações sobre ela como projeto editorial, como obra literária, como instrumento de estudo, como documento religioso...
            Começamos já com um problema particular à literatura bíblica, que é a questão autoral. Os livros bíblicos dificilmente apontam algum “autor”, e mesmo quando o fazem, este tipo de referência é pouco confiável, posto que era comum a prática do que agora chamamos de “pseudoepigrafia”. Ou seja, os textos eram escritos em nome de alguém revereciado, um apóstolo de Jesus Cristo, um profeta de renome ou alguém assim. Isso obviamente provoca árduos debates entre estudiosos, e alguns procuram ignorar as referências explícitas a autores para construir por meio de análises complexas o “autor implícito” desses livros. Em nosso estudo do Novo Testamento Interlinear (NTI), vamos ignorar esse problema e pensar na Bíblia como texto de domínio público, lembrando que tradicionalmente ela é conhecida como “Palavra de Deus”.
            Como já foi possível notar, nosso objeto de estudo não traz todos os livros bíblicos, mas 27 textos escritos após a morte de Jesus Cristo que a igreja cristã elegeu (ou canonizaou) e chamou de Novo Testamento. A razão para a edição escolher publicar esses textos e excluir todos os livros do Antigo Testamento é simples: o projeto editorial visa apresentar o texto em sua lingua de origem, e todo o Novo Testamento foi escrito em grego (koinê), diferente do que ocorreu com o Antigo Testamento (hebraico e aramaico). O NTI, portanto, traz o texto do Novo Testamento em grego e uma tradução rigorosamente literal para o português, encaixando sob cada expressão grega um equivalente em nossa lingua.
Mas por qual motivo alguém se importaria em publicar no Brasil, uma edição do Novo Testamento em língua grega? Vilson Scholz, um dos editores, respode à pergunta no prefácio da obra (p. vii-viii), dizendo:
[...] um Interlinear quer ser um auxílio para a tradução. Quem se utiliza dele está interessado, não tanto na tradução portuguesa, mas no original grego [...] Assim sendo, o uso do Interlinear pressupõe um conhecimento mínimo do grego bíblico. Serve de auxílio a quem já estudou ou está estudando o idioma original do Novo Testamento. Por si só o Interlinear não ensina a língua greja, mas nada impede que seja usado para facilitar essa tarefa.
            Essas linhas são importantes porque nos ajudam a entender que tipo de leitor têm-se em mente, e que tipo de utilização da obra se espera. O editor de certa forma tenta dirigir o uso que se fará da obra; a partir de suas palavras entendemos que esse NTI não foi feito para ser lido do mesmo modo que se lê uma Bíblia, ele é um instrumento de estudo, destinado a pessoas que queriam traduzir o Novo Testamento. Notemos que esta não é uma obra para se ler em grego, e sim para auxiliar num projeto de tradução do texto para o português. Assim, podemos dizer que o autor tenta de alguma forma controlar, condicionar o leitor. Embora o texto já traga a tradução de cada palavra, não devemos nos contentar com essa truncada versão, mas empregá-la em nossos próximos exercícios de tradução.
Ainda falando dessas linhas citadas do prefácio, atentemos melhor a essas palavras: “Quem se utiliza dele está interessado, não tanto na tradução portuguesa, mas no original grego”. Indiretamente, o editor cria uma oposição semântica entre o texto grego e as conhecidas traduções dele ao dizer que se busca o “original grego”. Consequentemente, o texto traduzido é um texto “não original”, e supoe-se que o leitor queria reduzir a influência dessa intermediação na sua leitura. Então, quem vai ler o NTI procura ler o texto grego para traduzi-lo, e o resultado desse trabalho é o acesso mais direto ao conteúdo do texto bíblico “original”. Esse leitor-tradutor, todavia, não se empenha num projeto de criar outra versão para ser publicada, divulgada, trata-se uma atividade pessoal e pontual.
Há uma segunda seção pré-textual intitulada “A Lingua Grega do Novo Testamento” (p. ix-xi) que não é atribuida a qualquer autor, e em dado momento essa seção enumera as “Razões Por Que Estudar Grego”. Uma das razões é esta: “Para fazer cada vez melhor a tarefa da exegese e da teologia”. Essa mensão à “exegese” é importante, porque nos remete a uma teoria de interpretação bíblica que conta com longa tradição e muitos pressupostos. Aqui, convém apenas mencionar que o conhecimento da lingua de origem do texto bíblico era um requisito indispensável para o exegeta adepto do chamado Método Histórico-Crítico, o qual foi desenvolvido principalmente a partir do século XIX e trouxe consigo pressupostos historicistas hoje considerados antiquados. Leituras mais contemporâneas podem simplesmente desconsiderar a importância de se fazer uma tradução do texto bíblico, preferindo, por exemplo, entender como algum leitor ou grupo de leitores recebeu o conteúdo a partir de alguma versão que tinham em mãos. Deveras, o texto grego do Novo Testamento é um texto que em geral desconhecemos, e que pouca influência deve ter exercido diretamente sobre o público cristão. A afirmação feita de que a tradução torna a exegese melhor parece considerar apenas o MHC, que seguindo a historiografia de seu tempo parece acreditar que a boa aplicação metodológica é capaz de desvendar o “fato histórico”, aquilo que realmente aconteceu e que eventualmente deu origem ao texto. A busca pelo evento histórico pré-textual foi uma obsessão no MCH tradicional, e motivou a aplicação de passos da análise como a “crítica das fontes”, a “análise da historicidade do texto”, a “crítica textual”, e a ênfase na biografia e intenções dos autores reais dos textos bíblicos. Seguindo tais pressupostos, era mesmo indispensável ler o texto em seu idioma original para se aproximar das palavras originalmente ditas por Jesus; tanto é, que num manual de exegese histórico-crítica lemos: “[...] a tradução é o primeiro passo a ser realizado na exegese. Ele é necessário pelo simples fato de o Novo Testamente ter sido redigido originalmente em grego” (Wegner, 1994, p. 28). Ou seja, parece que o NTI quer ser um instrumento importante para a exegese de moldes mais tradicionais, onde quanto mais tardia for a fonte, mais próximo o leitor estará da “verdade histórica”.
Tendo identificado razoavelmente esse “leitor” ideal, podemos nos perguntar se o NTI é uma obra que atinge seus objetivos. Apenas dois tradutores estiveram envolvidos com o projeto, o já mencionado Vilson Scholz, e Roberto G. Bratcher. Logo nas primeiras páginas eles são apresentados como doutores em teologia, tradutores que há muito prestam serviço à Sociedade Bíblica, e o primeiro é também professor de grego e exegese. Deveras, o projeto foi bem executado, e a primeira boa escolha foi a do texto grego a ser empregado. A Sociedade Bíblica internacional já detinha os direitos do texto grego que é o mais bem aceito hoje. Trata-se do resultado de um longo processo de crítica textual, de comparação de manuscritos e avaliação de variantes, que é publicado primeiro na Alemanha em duas versões: The Greek New Testament que está em sua quarta edição, e Novum Testamentum Graece atualmente em sua 27ª edição. O texto grego desses dois projetos é o mesmo, os produtores são os mesmos, mas as duas publicações se diferenciam pelos auxílios que oferecem aos leitores. Segundo a análise de Wilson Paroschi, o primeiro destina-se a tradutores, enquanto que o segundo é mais técnico, destinado a professores e especialista em Novo Testamento que desejam mesmo avaliar o julgamento das variantes textuais (1999, p. 168). Assim sendo, pode-se dizer que ao menos o texto grego escolhido é o mais atual e valorizado de que dispomos. No entanto, nesse momento surgem novos questionamentos:
Como vimos o objetivo do estudioso do grego bíblico é reduzir o impacto da mediação dos tradutores sobre sua leitura, todavia, o suposto “exegeta” parece não levar em conta que ao eleger um texto grego como esse, que é também o resultado de um longo trabalho acadêmico, interpretativo, eventualmente subjetivo, está ainda dependendo do produto de instituições mediadoras. Sabe-se que não há manuscritos originais de qualquer texto bíblico, e que qualquer texto grego do Novo Testamento é na verdade uma colagem de muitos manuscritos. Então, eliminar a influencia de um tradutor não significa que chegamos ao “original”, termo que é empregado algumas vezes no prefácio do NTI. Se são mantidos os alvos positivistas de se buscar o texto mais antigo, mais original, deveria o NTI também incluir o “aparato crítico” do Novum Testamentum Graece de Nestle-Aland, a fim de que também pudesse o leitor avaliar por conta própria as variantes textuais. Ou seja, além de ser produzido a partir de pressupostos de análise antiquados, o projeto ignora ou omite sua limitação. O NTI é um auxílio para a tradução e para o contato com o texto do Novo Testamento em seu idioma original, desde que o leitor não se importe em adotar o texto grego que foi produzido por aquela instituição de Stuttgart. As mediações da leitura seguem presentes, e no caso do texto bíblico, essas mediações são realmente inevitáveis. Se além ignorar os tradutores, também quiséssemos passar por cima do trabalho dos críticos que reconstroem o texto do Novo Testamento, teríamos que ir direto aos mais de cinco mil manuscritos, a maioria deles fragmentários, e empreender por conta própria o trabalho de crítica textual. Esse empreendimento não é impossível hoje, mas é certamente difícil e provavelmente não nos conduziria a conclusões muito diferentes das já alcançadas pelos alemães. Mas ainda assim, saberíamos que estamos lidando com copistas, comentaristas, leitores de diferentes épocas e lugares que nos deixaram seus textos também intermediando nosso acesso ao Novo Testamento. Com isso, resta reconhecer que a Bíblia com que lidamos não é e provavelmente nunca será aquela que os autores escreveram, as releituras mais ou menos fieis àquelas origens; e se nosso acesso ao texto é sempre mediado por outros, vale questionar outra vez a validade desse projeto de buscar o texto mais antigo. Por qual motivo o leitor religioso prefere uma versão do século V, fragmentária e escrita num grego arcaico, do que uma versão moderna, criticada, traduzida, revisada...? A resposta é que o leitor religioso não acredita na divindade de um texto que tenha passado por tantas mediações humanas, e por isso segue procurando meios de eliminar tais mediações, uma busca inútil, como temos visto, e que jamais teria sucesso já que mesmo os originais mostrar-se-iam repletos de imperfeições inadequadas à crença numa Palavra de Deus inerrante.
Voltando ao texto do NTI, é interessante observar que ele não traz em seu interior apenas o texto grego e tradução literal de cada uma das palavras; há no interior das páginas outras duas versões do Novo Testamento, versões que também pertencem à Sociedade Bíblica Brasileira. Uma dessas versões parte da tradução de João Ferreira de Almeida, mas numa edição que chamam de “Tradução de Almeida Revista e Atualizada no Brasil” (ARA), publicada pela primeira vez em 1959, e que contou com nova edição em 1993. A segunda versão é a chamada “Nova Tradução na Linguagem de Hoje” (NTLH) de 2000, que é na opinião de muitos algo mais parecido com uma paráfrase contemporânea do texto bíblico do que uma tradução. Como se pode ler no prefácio do NTI (p. vii), considera-se uma “vantagem” o fato de esta publicação trazer quatro textos ao mesmo tempo. Sem dúvida, o processo de comparação de traduções fica assim facilitado, já que não é preciso abrir várias Bíblias, porém, a escolha dessas versões que já pertenciam à mesma casa publicadora, é uma limitação. Isso dizemos porque um tradutor do Novo Testamento dificilmente consideraria a leitura da NTLH de algum valia para seu trabalho. Aqui, a boa intenção foi prejudicada por questões mercadológicas e direitos autorais, pois uma equipe de tradutores independente escolheria outras versões bíblicas para este recurso.
O projeto ainda oferece um outro auxílio que merece algumas linhas. Nalguns momento, o leitor encontra notas de rodapé com auxílios gramaticais, raízes de verbos irregulares, e mais ainda para os chamados “particípios”, que possuem simultaneamente características de adjetivo e de verbo, e que geralmente impõem os maiores desafios aos estudantes do grego bíblico. Há também casos em que pequenos números colocados ao lado de alguns verbos dirigem o leitor a um anexo que aparece no final do livro com “Análise dos Verbos mais Frequentes”. Esse anexo apresenta uma lista de 15 verbos comuns em todas as formas que eles assumem no texto do Novo Testamento. Como podemos ver, esses auxílios tornam o NTI ainda mais específico, são instrumentos que só dizem respeito a tradutores e estudantes de grego, o que outra afirma que este não é um produto destinado ao leitor comum de qualquer texto bíblico.
Nossa análise da materialidade e do conteúdo do NTI nos mostrou que tipo de produto ele pretende ser. Não é um texto para leitura geral, mas para estudiosos; todavia, vimos que há um tipo muito particular de leitor/estudioso que quer ser alcançado, o leitor/estudioso que procura fazer exegese histórico-crítica, e desse trabalho interpretativo fazer “teologia”. A editora e os profissionais envolvidos atuam como mediadores desse trabalho teológico, oferecem os auxílios que consideram mais úteis, e reafirmam indiretamente que o texto grego é mais sagrado que o texto traduzido, desconsiderando, como vimos, os muitos problemas com esses pressupostos historicistas. Outra evidência desse interesse religioso é a inclusão no texto de todos os subtítulos criados por editores que já estavam presentes noutras versões. Esse “paratextos” de alguma forma direcionam a leitura religiosamente, e até contrariam os interesses de um exegeta que quer exatamente livrar-se da intermediação editorial.
Mesmo assim, o livro é um belo projeto editorial, uma boa ideia que foi bem executada, com algumas poucas limitações como a escolha das versões brasileiras que ali são incluídas para comparação. Gostaríamos apenas de dizer que outros leitores, além daquele pretendido pelo próprio projeto, podem se beneficiar. Mesmo sem levar em conta o texto grego, a tradução literal e as outras versões podem ser úteis para uma comparação empreendida por um número bem maior de leitores. Nos círculos religiosos, onde o texto é lido e aplicado de maneira normativa, sem dúvida a mera leitura de diferentes versões pode impedir que se estabeleçam “certezas” sobre versões mal traduzidas. Caso o leitor tenha o interesse de estudar o Novo Testamento grego sem aqueles pressupostos historicistas que já criticamos, ele também poderá se aproveitar dos recursos desse título.
Em suma, a comparação do NTI com outras edições da Bíblia no Brasil podem mudar nosso julgamento, elevam ainda mais seu valor, posto que esse interesse mais técnico raramente norteia a produção de uma nova edição do texto bíblico.
           
Referências Bibliográficas
FONTANILLE, Jacques. Semiótica do Discurso. São Paulo: Contexto, 2011.
NESTLE, Eberhard; ALAND, Kurt. Novum Testamentum Graece. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft (27a ed.), 1993.
PAROSCHI, Wilson. Crítica Textual do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1999.
WEGNER, Uwe. Exegese do Novo Testamento: Manual de Metodologia. São Leopoldo: Sinodal; São Paulo: Paulus, 1998.