Começamos
essa seção com a leitura de uma passagem bíblica, Mateus 6.19-21, que apresenta
um tipo de argumentação religiosa bastante comum em qualquer forma de
religiosidade:
(19) Não entesoureis tesouros para vós sobre a terra, onde traça e ferrugem
destrói e onde ladrões arrombam e roubam;
(20) mas entesourai tesouros para vós no céu, onde nem
traça nem ferrugem destrói e onde ladrões não arrombam nem roubam;
(21) pois onde está o teu tesouro, ali estará também o
teu coração.
O
texto já está divido em três partes nas Bíblias, e essa divisão é ao menos
didática. Nos versículos 19 e 20 encontramos duas frases muito parecidas, o que
nos sugere que foram produzidas como um par, e devem ser lidas conjuntamente.
Já o versículo 21, embora tenha clara relação de continuidade temática em
relação aos anteriores, é diferente deles formalmente.
Os
dois primeiros começam com os mesmos imperativos, porém, em sentidos
contrários. A primeira frase traz um imperativo negativo, ordena aos
destinatários da mensagem que “não” entesourem tesouros, isto é, que não
acumulem seus bons valores na terra. Por outro lado, a segunda frase diz o
oposto, ordenando que “sim”, que se acumulem tesouros, mas no céu. Daí já
notamos que a questão não é o acúmulo de tesouros, e sim o local em que estes
tesouros são depositados; ou seja, a grande oposição que constitui o texto está
nos seus códigos topográficos.
O
argumento básico para que se aceite o contrato proposto é a transitoriedade ou
durabilidade dos dois tipos de tesouros possíveis; os da terra, diz o texto que
podem ser consumidos por traça e ferrugem, ou roubados por ladrões, elementos
que não podem atingir os tesouros que estão depositados no céu. A oposição
básica de valores se dá entre riqueza e pobreza; contraditoriamente, a
verdadeira riqueza é a celestial e não palpável, que assume o papel de valor
desejável que para ser obtido exige que o leitor aceite o contrato proposto por
esse Jesus/narrador. O contrato pede que se abdique dos tesouros terrenos, o
que dá origem a um estranho percurso temático, onde a busca pela riqueza
celestial passa necessariamente pela rejeição da riqueza terrena:
A
possibilidade da rejeição do contrato existe, basta que o destinatário da
mensagem continue vivendo segundo os padrões econômicos estabelecidos social e
culturalmente. Se esta for a escolha do leitor, ele poderá adquirir riquezas,
acreditar que tem seu futuro assegurado, mas acabará sem tesouros já que como
afirma o texto, a transitoriedade dos tesouros terrenos, as ameaças a que estão
expostos, os valorizam disforicamente.
Segundo
a cosmologia do evangelho existem dois “mundos” paralelos, céu e terra, e por
enquanto estamos limitados à terra, porém, destinados ao céu. Assim,
conscientes da transitoriedade da vida terrena, devemos fazer dessa existência
um meio de garantir uma boa posição na vida celestial, que é eterna. Daí seu
incentivo pela busca de tesouros celestiais, e seu desprezo a todos os bens e
honras terrenas.
Passando
então para o versículo 21, vemos que se trata de uma sanção que aparentemente
se apropria de um dito popular, o que produz a impressão de que esta afirmação
é uma verdade de aceitação universal. Não
é difícil notar como as duas linhas estão construídas sob padrões formais
semelhantes aos dos versículos anteriores, e outra vez temos duas linhas em que
contém advérbios que indicam localização (“onde” e “ali”), pronomes em segunda
pessoa (“teu”), o verbo “estar”, ainda que conjugado em diferentes tempos
verbais, e em ambas também temos um substantivo (“tesouro” e “coração”). O
texto estabelece uma relação causal entra as duas afirmações que faz, e os
verbos exercem um papel importante. Onde no presente “está” o tesouro, no
futuro “estará” o coração, e com isso entendemos que a administração dos
tesouros que é realizada no presente, e que como vimos só podem ser colocados
na terra ou no céu, determina o lugar em que o coração estará no futuro. O
substantivo “coração”, no texto mateano, parece ser usado para simbolizar o
pensamento, a racionalidade, a consciência, e, portanto, podemos dizer que o
modo como se administra os tesouros explicitam os interesses reais e ocultos do
ser humano. A equação é
imutável, não é possível em nenhuma circunstância separar o coração do tesouro.
A única opção aceitável por parte do destinatário é mudar já seu modo de lidar
com seu tesouro, ou seja, deixar de lado os objetos considerados valiosos neste
mundo (os tesouros da terra) por coisas que possuem valor no céu, ação que
seria interpretada como prova de uma correta devoção religiosa.
Finalmente chegamos aonde queríamos, onde podemos aplicar
a esta leitura o conceito de “Compensadores Universais”. Segundo Rodney Stark e William Sims Bainbridge, esse tipo de
promessa substitutiva, onde a religião oferece algo intangível em troca de algo
tangível, não é nada mais que uma espécie de compensador:
Quando
os seres humanos não conseguem obter recompensas intensamente desejadas com
facilidade e rapidez, eles persistem em seus esforços e podem, com frequência,
aceitar explicações que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos
intangíveis para a recompensa desejada... (2008, p. 48)
O discurso mateano que escolhemos como exemplo estaria oferecendo
recompensas ilusórias para compensar um desejo não realizado; noutros termos, a
frustração pelas ambições não realizadas do sujeito são amenizadas pela religião,
pela esperança de se receber futuramente recompensas maiores, tesouros que na
verdade são recebidos apenas por meio da fé, já que a validade dessas promessas
não pode ser verificada (Stark; Bainbridge, 2008, p. 49-50).
Mas algumas ressalvas devem ser feitas quando adotamos o conceito
de “Compensadores Universais” de Stark e Bainbridge, pois embora os prometidos
tesouros do céu não sejam descritos com clareza, certamente nalgum momento
histórico e na ideologia de algum grupo social, tais tesouros intangíveis eram
vistos como recompensas mais desejáveis ou seguros do que os bens terrenos que
outros monopolizavam. Os tesouros celestiais não eram meros substitutos apenas
desejados que visavam consolar pessoas entristecidas, tratava-se de um importante
argumento para convencer o grupo de que aquela opção sócio-religiosa era
segura. Podemos até adotar o termo “compensadores” de Stark e Bainbridge para
nos referimos aos tesouros celestiais de Mateus, todavia, como ressalta Andrew
Buckser apontando limitações na teoria dos autores mencionados, a religião
não provê aos seres humanos somente promessas sobrenaturais e futuras, mas
também lhes dá significação e traz satisfação imediata, as quais também são
recompensas reais (1995, p. 1-3). Assim, ao interpretarmos os tesouros
celestiais de Mateus, dizemos que essas promessas não possuíam apenas o papel
de compensadores intangíveis, substitutos meramente paliativos para os seus
verdadeiros desejos, antes, a eficácia do emprego dos tesouros celestiais no
discurso econômico mateano se dá exatamente pela maneira como eles entendiam
essas recompensas sobrenaturais como verdadeiras. Mais que promessas, tais
tesouros eram certezas pelas quais se poderia aderir ao projeto judaico-cristão
sem reservas.
Em suma, o texto incentiva seus destinatários a resistir às
propostas de segurança deste mundo, e fornece uma descrição hoje incerta, porém
ainda sublime, de recompensas futuras para aqueles que não se prendessem às
antigas ambições e aderissem ao estilo de vida proposto pelo Jesus de Mateus.
Não podemos, enfim, subestimar a força desse argumento e o poder motivacional
dessas tentações.
Referências
Bibliográficas
BUCKSER,
Andrew. Religion and the Supernatural on
a Danish Island: Rewards, Compensators, and the Meaning of Religion. In.
Journal for the Scientific Study of Religion, v. 34, 1995, pp. 1-16.
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma Teoria da Religião.
São Paulo: Paulinas, 2008.
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