segunda-feira, 29 de outubro de 2012

OS COMPENSADORES RELIGIOSOS - CONCEITOS TEOLÓGICOS



Começamos essa seção com a leitura de uma passagem bíblica, Mateus 6.19-21, que apresenta um tipo de argumentação religiosa bastante comum em qualquer forma de religiosidade:
 (19) Não entesoureis tesouros para vós sobre a terra, onde traça e ferrugem destrói e onde ladrões arrombam e roubam;
(20) mas entesourai tesouros para vós no céu, onde nem traça nem ferrugem destrói e onde ladrões não arrombam nem roubam;
(21) pois onde está o teu tesouro, ali estará também o teu coração.
O texto já está divido em três partes nas Bíblias, e essa divisão é ao menos didática. Nos versículos 19 e 20 encontramos duas frases muito parecidas, o que nos sugere que foram produzidas como um par, e devem ser lidas conjuntamente. Já o versículo 21, embora tenha clara relação de continuidade temática em relação aos anteriores, é diferente deles formalmente.
Os dois primeiros começam com os mesmos imperativos, porém, em sentidos contrários. A primeira frase traz um imperativo negativo, ordena aos destinatários da mensagem que “não” entesourem tesouros, isto é, que não acumulem seus bons valores na terra. Por outro lado, a segunda frase diz o oposto, ordenando que “sim”, que se acumulem tesouros, mas no céu. Daí já notamos que a questão não é o acúmulo de tesouros, e sim o local em que estes tesouros são depositados; ou seja, a grande oposição que constitui o texto está nos seus códigos topográficos.
O argumento básico para que se aceite o contrato proposto é a transitoriedade ou durabilidade dos dois tipos de tesouros possíveis; os da terra, diz o texto que podem ser consumidos por traça e ferrugem, ou roubados por ladrões, elementos que não podem atingir os tesouros que estão depositados no céu. A oposição básica de valores se dá entre riqueza e pobreza; contraditoriamente, a verdadeira riqueza é a celestial e não palpável, que assume o papel de valor desejável que para ser obtido exige que o leitor aceite o contrato proposto por esse Jesus/narrador. O contrato pede que se abdique dos tesouros terrenos, o que dá origem a um estranho percurso temático, onde a busca pela riqueza celestial passa necessariamente pela rejeição da riqueza terrena:
A possibilidade da rejeição do contrato existe, basta que o destinatário da mensagem continue vivendo segundo os padrões econômicos estabelecidos social e culturalmente. Se esta for a escolha do leitor, ele poderá adquirir riquezas, acreditar que tem seu futuro assegurado, mas acabará sem tesouros já que como afirma o texto, a transitoriedade dos tesouros terrenos, as ameaças a que estão expostos, os valorizam disforicamente.
Segundo a cosmologia do evangelho existem dois “mundos” paralelos, céu e terra, e por enquanto estamos limitados à terra, porém, destinados ao céu. Assim, conscientes da transitoriedade da vida terrena, devemos fazer dessa existência um meio de garantir uma boa posição na vida celestial, que é eterna. Daí seu incentivo pela busca de tesouros celestiais, e seu desprezo a todos os bens e honras terrenas.
Passando então para o versículo 21, vemos que se trata de uma sanção que aparentemente se apropria de um dito popular, o que produz a impressão de que esta afirmação é uma verdade de aceitação universal. Não é difícil notar como as duas linhas estão construídas sob padrões formais semelhantes aos dos versículos anteriores, e outra vez temos duas linhas em que contém advérbios que indicam localização (“onde” e “ali”), pronomes em segunda pessoa (“teu”), o verbo “estar”, ainda que conjugado em diferentes tempos verbais, e em ambas também temos um substantivo (“tesouro” e “coração”). O texto estabelece uma relação causal entra as duas afirmações que faz, e os verbos exercem um papel importante. Onde no presente “está” o tesouro, no futuro “estará” o coração, e com isso entendemos que a administração dos tesouros que é realizada no presente, e que como vimos só podem ser colocados na terra ou no céu, determina o lugar em que o coração estará no futuro. O substantivo “coração”, no texto mateano, parece ser usado para simbolizar o pensamento, a racionalidade, a consciência, e, portanto, podemos dizer que o modo como se administra os tesouros explicitam os interesses reais e ocultos do ser humano. A equação é imutável, não é possível em nenhuma circunstância separar o coração do tesouro. A única opção aceitável por parte do destinatário é mudar já seu modo de lidar com seu tesouro, ou seja, deixar de lado os objetos considerados valiosos neste mundo (os tesouros da terra) por coisas que possuem valor no céu, ação que seria interpretada como prova de uma correta devoção religiosa.
Finalmente chegamos aonde queríamos, onde podemos aplicar a esta leitura o conceito de “Compensadores Universais”. Segundo Rodney Stark e William Sims Bainbridge, esse tipo de promessa substitutiva, onde a religião oferece algo intangível em troca de algo tangível, não é nada mais que uma espécie de compensador:
Quando os seres humanos não conseguem obter recompensas intensamente desejadas com facilidade e rapidez, eles persistem em seus esforços e podem, com frequência, aceitar explicações que ofereçam apenas compensadores. Estes são substitutos intangíveis para a recompensa desejada... (2008, p. 48)
O discurso mateano que escolhemos como exemplo estaria oferecendo recompensas ilusórias para compensar um desejo não realizado; noutros termos, a frustração pelas ambições não realizadas do sujeito são amenizadas pela religião, pela esperança de se receber futuramente recompensas maiores, tesouros que na verdade são recebidos apenas por meio da fé, já que a validade dessas promessas não pode ser verificada (Stark; Bainbridge, 2008, p. 49-50).
Mas algumas ressalvas devem ser feitas quando adotamos o conceito de “Compensadores Universais” de Stark e Bainbridge, pois embora os prometidos tesouros do céu não sejam descritos com clareza, certamente nalgum momento histórico e na ideologia de algum grupo social, tais tesouros intangíveis eram vistos como recompensas mais desejáveis ou seguros do que os bens terrenos que outros monopolizavam. Os tesouros celestiais não eram meros substitutos apenas desejados que visavam consolar pessoas entristecidas, tratava-se de um importante argumento para convencer o grupo de que aquela opção sócio-religiosa era segura. Podemos até adotar o termo “compensadores” de Stark e Bainbridge para nos referimos aos tesouros celestiais de Mateus, todavia, como ressalta Andrew Buckser apontando limitações na teoria dos autores mencionados, a religião não provê aos seres humanos somente promessas sobrenaturais e futuras, mas também lhes dá significação e traz satisfação imediata, as quais também são recompensas reais (1995, p. 1-3). Assim, ao interpretarmos os tesouros celestiais de Mateus, dizemos que essas promessas não possuíam apenas o papel de compensadores intangíveis, substitutos meramente paliativos para os seus verdadeiros desejos, antes, a eficácia do emprego dos tesouros celestiais no discurso econômico mateano se dá exatamente pela maneira como eles entendiam essas recompensas sobrenaturais como verdadeiras. Mais que promessas, tais tesouros eram certezas pelas quais se poderia aderir ao projeto judaico-cristão sem reservas.
Em suma, o texto incentiva seus destinatários a resistir às propostas de segurança deste mundo, e fornece uma descrição hoje incerta, porém ainda sublime, de recompensas futuras para aqueles que não se prendessem às antigas ambições e aderissem ao estilo de vida proposto pelo Jesus de Mateus. Não podemos, enfim, subestimar a força desse argumento e o poder motivacional dessas tentações.

Referências Bibliográficas


BUCKSER, Andrew. Religion and the Supernatural on a Danish Island: Rewards, Compensators, and the Meaning of Religion. In. Journal for the Scientific Study of Religion, v. 34, 1995, pp. 1-16.
STARK, Rodney; BAINBRIDGE, William Sims. Uma Teoria da Religião. São Paulo: Paulinas, 2008.

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