segunda-feira, 28 de maio de 2012

A BÍBLIA E AS MITOLOGIAS: A CRIAÇÃO (Parte 2)


Após aquela introdução que lemos em Gênesis, nosso trabalho continua. O mito bíblico da criação segue com as seguintes palavras:
E disse Deus: Haja luz.
E houve luz. E viu Deus que era boa a luz;
e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite.
E foi a tarde e a manhã: o dia primeiro.

Destacam-se os verbos, as ações de Deus, que primeiro cria a luz de maneira sobrenatural (aparentemente apenas falando, ordenando que o inexistente passe a existir). Depois ele mesmo vê a luz que criou e a aprova, fazendo a seguir a separação entre luz e trevas. O próprio Deus dá nome às duas condições que criou, chamando-as “dia” e “noite”. Podemos ver que aqui o mito cumpre o papel de oferecer uma cosmologia; ele explica a diferença já conhecida de todos entre o dia a noite. A linguagem não é científica, e não há nenhum conhecimento astronômico: o texto nem sequer relaciona o sol à luz do dia; ele não sabia distinguir a luz solar da luz lunar, não sabia que esta última era também de origem solar, e de maneira simples explica a razão de existir luz e trevas.
Por fim, uma frase conclui a estrofe dizendo que “foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”. O dia de trabalho de Deus estava concluído; teologicamente, este é um Deus humano, ou melhor dizendo, que está construído a partir dos limites da imaginação humana. Deus pode criar todas as coisas, é muito poderoso, mas também respeita a rotina de trabalho como todo homem. Deus se assemelha neste aspecto a qualquer homem que no campo podia suar até que a luz natural o obrigasse a descansar em casa no final da tarde, dando por concluído o lavor do dia. Esta é uma característica teológica muito importante neste mito bíblico.
Seguindo com nossa leitura:
E disse Deus: Haja uma expansão no meio das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão.
E assim foi. E chamou Deus à expansão Céus;
e foi a tarde e a manhã: o dia segundo.

No seu segundo dia de trabalho Deus finalmente separou as águas, tornando os “céus” definitivamente inatingíveis para quem estivesse na terra. Aquele abismo sobre o qual o espírito se movia não era necessariamente uma separação, mas como dissemos, uma espécie de mar que tornava distante a terra e o céu. Esta expansão ou firmamento é também uma espécie de solo celestial, e agora existe água na terra e água no céu, o que deve explicar a razão das chuvas.
Não é nosso objetivo escrever um comentário do livro de Gênesis e de suas mitologias, assim vamos resumir alguns pontos. Deus continua trabalhando ao longo de sua semana, ele cria os mares da terra no terceiro dia, deixando assim uma parte seca sobre a qual cresce todo tipo de vegetação. No quarto dia Deus cria os “luminares”, o sol e a lua, cria a relação entre eles e o dia e a noite, e os fixa no céu. Nos quinto e sexto dias surgem todos os seres vivos para que encham os mares e toda a face da terra. No sexto dia são criados os homens (macho e fêmea simultaneamente), e a particularidade desta espécie é que ela foi feita segundo imagem de Deus, condição especial que lhe permitiria dominar a terra e todas as outras formas de vida. Essa nova aproximação entre Deus(es) e os homens provavelmente os ajudava a explicar seu domínio; o poder do homem, sua inteligência, o fazia maior que os demais seres vivos, e isso era uma característica divina que só eles tinham.
Finalmente, chegamos ao final da semana de trabalho de Deus, o sétimo dia. Toda sua obra estava feita, e curiosamente, Deus aqui se mostra mais humano do que nunca, e tira o dia para descansar. Em Gênesis 2.3 nós lemos:
E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou;
porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera.

A tradição mitológica diz que o sétimo dia, isto é, o sábado, foi o dia em que Deus descansou de seu trabalho criativo, um dia abençoado e desde a criação. Imediatamente podemos relacionar estes últimos e contraditórios gestos divinos à cultura judaica, que nos dias em que este mito ganhou sua forma escrita, já “guardava” o sábado como dia sagrado. O texto então não só estaria ocupado com suas explicações cosmológicas, como também serviria como um documento que dava legitimidade a uma tradição religiosa que já existia, mas que talvez precisasse de defesa naquele exato momento. Milton Schwantes escreveu sobre este estranho dia na mitologia de Gênesis, e explicou-o em termos sociológicos. Para Schwantes, está implícito no mito uma reivindicação pelo descanso do trabalho, o que o leva a afirmar que o texto teria sido escrito durante um período de dominação sobre o povo judeu, mais precisamente, durante o domínio babilônico no século VI a.C. (2002, p. 36-39). Se Schwantes estiver correto, o mito que oferece razões religiosas para a guarda do sábado era antes de mais nada um apelo contra o trabalho forçado sem descanso; não podendo recorrer a qualquer constituição ou fundação de defesa dos direitos humanos, eles usaram Deus, e um Deus bastante humanizado, para exigir um dia de descanso.
Constatamos que a mitologia de Gênesis começa de maneira poética, separando estrofes, aproximando suas formas, repetindo vocabulário... O sétimo dia, que consideramos o ponto mais relevante para o mito em sua versão bíblica, destoa formalmente dos anteriores, o que dá destaque ao tema do sábado. Misturam-se no texto bíblico os interesses sociais e as explicações cosmológicas, o imaginário dualista de um universo dividido (céu e terra), e as ideias sobre as possíveis relações entre homens (com características divinas) e Deus (com características humanas). Como já supúnhamos, o mito pode ter tido uma origem muito remota, um desenvolvimento oral, uma canonização na tradição religiosa judaica; porém, a versão que nos chegou às mãos já sob a forma escrita claramente acrescentou preocupações mais localizáveis no tempo, o que nos permite oferecer alguns palpites sobre sua datação. A criação é, portanto, coletiva, mas a verdade é que aqueles aspectos mais míticos, que oferecem explicações para questões existenciais, são mais duradouros do que os aspectos sociológicos que nele se possam encontrar, que são mais localizados e condicionados ao momento da redação.
Nas narrativas míticas que antes empregamos para fins comparativos, também é possível notar como o mito possui uma dimensão explicativa mais localizada. Na criação segundo o mito do candomblé na versão de Reginaldo Prandi, o objetivo é explicar ou legitimar o próprio ritual religioso baseado na experiência do transe. Conta o mito que depois da separação entre céu e terra, que impedia os orixás de festejar junto aos seres humanos, o único modo de superar tal separação era através dos corpos físicos destes últimos:
Isoladas dos humanos habitantes do Aiê, as divindades entristeceram. Os orixás tinham saudades de suas peripécias entre os humanos e andavam tristes e amuados.
Foram queixar-se com Olodumare, que acabou consentindo que os orixás pudessem vez por outra retornar à Terra. Para isso, entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus devotos. Foi a condição imposta por Olodumare.

Práticas rituais deste tipo de religiosidade são apresentadas como exigências dos deuses, o que é no universo religioso um forte argumento. Segundo a narrativa mítica, Oxum recebeu o encargo de “preparar os mortais para receberem em seus corpos os orixás”, e segue:
Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta, banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas cabeças, pintou seus corpos [...] Vestiu-as com belíssimos panos e fartos laços, enfeitou-as com jóias e coroas [...] Finalmente as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas, e estavam odara. As iaôs eram a noivas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia imaginar. Estavam prontas para os deuses.
Os orixás agora tinham seus cavalos, podiam retornar com segurança ao Aiê, podiam cavalgar o corpo das devotas.
Os humanos faziam oferendas aos orixás, convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs. Então os orixás vinham e tomavam seus cavalos. E, enquanto os homens tocavam seus tambores [...], enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam, convidando todos os humanos iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam e dançavam e dançavam.
Os orixás podiam de novo conviver com os mortais. Os orixás estavam felizes.
Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles dançavam e dançavam e dançavam. Estava inventado o candomblé.

A escolha das mulheres e os padrões de beleza, sem dúvida devem possuir uma origem bem anterior à esta bonita narrativa mítica. A riqueza de detalhes neste ponto, a própria extensão do texto (consideremos que acima não expusemos todas as linhas da narrativa registrada por Prandi) nos mostra que a perfeição no ritual, a formação de uma identidade religiosa, a preservação da cultura, são temais bem mais importantes nesta versão do que aquelas preocupações cosmológicas. Este é o mesmo fenômeno que testemunhamos em Gênesis, que parecia preocupado com a criação, as que por fim se mostrou mesmo é preocupado com a sacralidade do descanso sabático. Assim, estudar narrativas míticas é mais do que estudar a teologia de povos primitivos pré-científicos, é estudar antropologia das religiões, é investigar culturas e as ricas possibilidades da linguagem religiosa, que insiste em superar as previsões pessimistas de ocaso feitos pela cultura racional do mundo ocidental moderno.

A BÍBLIA COMO CAMPO DE BATALHA RELIGIOSA


Desde que a tradição judaico-cristã legou à Bíblia a autoridade normativa, esta se tornou mais que um instrumento de reflexão teológica e inspiração religiosa, se tornou um verdadeiro campo de batalha entre diferentes grupos religiosos. Como texto sagrado adotado por diversas formas de culto, a interpretação da Bíblia passou a servir a objetivos apologéticos; cada grupo procurava legitimar suas próprias práticas e dogmas através do texto bíblico, o que produziu inumeráveis leituras contraditórias.
Os judeus já produziam antes de Jesus e do completo fechamento do cânon do Antigo Testamento, suas exegeses de caráter pragmático e alegórico, e o próprio Novo Testamento atesta essa afirmação. Em algumas narrativas Jesus aparece discutindo com outros judeus (geralmente fariseus e escribas) sobre a verdadeira interpretação da Lei, e o apóstolo Paulo também fazia uso abundante de tradições literárias para legitimar suas posições. No Evangelho de Mateus temos alguns bons exemplos: primeiro no capítulo 5.17-48, onde o autor usa Jesus para oferecer sua própria leitura de alguns conhecidos mandamentos, alguns fixados na tradição literária, outros talvez ainda divulgados oralmente (sobre homicídio, adultério, divórcio, juramentos e sobre a retribuição do mal recebido), e constrói sua “lei” em oposição direta à dos seus rivais, os fariseus, que deveriam ser superados (Mt 5.20). Apesar de criar novas maneiras de seguir tais “obras de justiça”, o evangelho faz questão de afirmar que Jesus não queria abolir a Lei, mas cumpri-la (Mt 5.17), criando um paradoxo que se explica pela necessidade de fazer os textos, cuja autoridade já era indiscutível naquela cultura, confirmar sua religiosidade a todo custo.
O apóstolo Paulo se envolveu em questão similar. Ele transformou o “evangelho de Jesus Cristo” numa forma de religião praticável não somente entre judeus, mas também para gentios, e sofreu com a oposição de judeus ortodoxos que exigiam que os tais gentios seguidores de Jesus fossem “judaizados”, isto é, que se circuncidassem, que passassem a seguir seus rituais de pureza, suas restrições alimentares etc. Paulo negava a necessidade de tais ações, e embora estivesse claramente descartando boa parte da tradição judaica e do Antigo Testamento, não podia admiti-lo. Numa de suas cartas ele tenta conciliar a tradição legal de Israel (a Toráh) com a liberdade e igualdade que apregoava. Em Gálatas, capítulo 3, ele usa as narrativas bíblicas sobre Abraão para demonstrar que antes de Moisés e da Lei, já existia uma promessa divina de que todos os que cressem seriam “justificados” e se encontrariam entre os eleitos “filhos de Abraão” (Gn 15.6; Gl 3.6-7); para Paulo, a própria tradição legal confirmava sua doutrina da salvação pela fé, o que inevitavelmente negava a prática da Lei e a escolha de Israel como nação especial.
Não pensemos, todavia, que as coisas mudaram. Ainda existem diferentes formas de culto que buscam assegurar sua legitimidade por meio de textos bíblicos. Diferentes denominações evangélicas se acusam diariamente através da citação de passagens bíblicas, o que é um resustado direto da antiga luta dos reformadores protestantes para transformar a Bíblica na grande fonte de autoridade normativa.
Até o espiritismo kardecista, nascido na França em meados do século XIX, julgou necessário incluir Jesus, o nome mais à tradição cristã ocidental, dentre suas doutrinas. Se não o fizesse, o kardecismo sofreria a resistência da cultura europeia ao ser rotulada como seita anticristã. Como nos exemplos bíblicos vistos acima, a apropriação de Jesus e de outras tradições bíblicas pela doutrina kardecista revela muitas contradições e equívocos, mas cumpre seu papel ao acalmar ex-cristãos que anseiam por saber onde fica Jesus em meio à nova religiosidade.

sexta-feira, 25 de maio de 2012

A BÍBLIA E AS MITOLOGIAS: A CRIAÇÃO


O já citado João Décio Passos nos oferece algumas palavras úteis para introduzir nossa abordagem da mitologia bíblica:
As representações religiosas, assim como todas as outras, oferecem uma visão global da realidade – cosmovisão – que permite superar a desordem, o acaso, e a anomia. Os seres sobrenaturais, com suas funções e ações no mundo imanente, constroem um sistema que permite situar a realidade: como um conjunto significativo que tem origem e fim; como diversidade que encontra em uma unidade maior; como realidade contingente, limitada no tempo e no espaço pela dinâmica da vida e como possibilidade de sentido, perante os limites implacáveis da vida, de modo particular a morte. (Passos, 2011, p. 80)
Pressupõe-se que os homens convivam com um natural desconforto pela impressão que temos de que o mundo e a vida não possuem sentido. O inevitável ciclo de vida e morte, as imperfeições da natureza e do próprio corpo, as doenças, as dores, e falta de nexo entre todas estas coisas, são difíceis de engolir para os seres racionais. Deste desconforto notado há muito tempo é que nasceram as “representações religiosas” mais essenciais, as narrativas mitológicas. Quando não era possível responder às dúvidas mais elementares da existência por meio de nenhum argumento científico, eram os mitos com suas histórias sobre os deuses, sobre os antepassados, sobre o futuro da humanidade, que preenchiam estas lacunas. Assim, os mitos antigos se assemelham pela recorrência de determinados temas; oferecem explicações sobre as origens e destino do mundo e dos seres vivos, assim como explicam a origem dos povos e sua presente situação; os mitos explicam a origem do mal (seja moral ou natural), oferecem motivos para os rituais religiosos e para as estruturas sociais, em suma criam roteiros dentre os quais a vida se encaixa e faz sentido.
Os mitos nascem, se desenvolvem e passam de geração a geração sob a forma oral, mas quando falamos de textos bíblicos ou de outra formas de mitologia escrita, o que temos são mitos que foram fixados depois de circularem por algum tempo, sofrendo modificações e adequações. Portanto, lendo a mitologia bíblica sabemos que estamos diante de leituras tardias, nas quais, além das antigas explicações cosmológicas ainda relevantes, são expressas preocupações de origem social cujos interesses nos remetem ao tempo dessa fixação literária. Faremos a seguir nossa primeira leitura bíblica, e observaremos já na primeira mitologia, a da criação, como as características acima mencionadas aparecem nesta narrativa. Vamos a Genesis 1.1-2.3, porém, sempre que nos parecer necessário, faremos análises comparativas entre o mito bíblico e outros:
No princípio, criou Deus os céus e a terra.
E a terra era sem forma e vazia;
E havia trevas sobre a face do abismo;
E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.

Estes quatro versos formam a primeira estrofe do mito bíblico da criação. As preocupações cosmológicas são as mais evidentes. Tudo teve um começo, e este começo está em Deus (que é único). Deus é preexistente, mesmo o mito não é capaz de explicá-lo, mas o mundo é temporal. É como se o mito colocasse a existência do mundo na experiência humana de tempo, e esta ideia de tempo sempre é limitada, isto é, possui começo e fim. Mas esta criação inexplicável de Deus nos mostra uma cosmologia dualista, isto é, Deus criou dois mundos, o céu e a terra.
Sabemos que o imaginário bíblico (que segue vivo ainda hoje) fará coexistir um céu, onde habita Deus e outros seres celestiais, e a terra, onde habitam os homens e toda forma de materialidade. A terra será sempre uma cópia imperfeita, uma sombra da realidade celestial. Depois esses dois lugares serão construídos a partir de inconciliáveis oposições entre bom e mal, luz e trevas, perfeição e imperfeição, eterno e transitório. O objetivo do homem deverá ser viver no céu, ou ao menos viver na terra segundo os padrões estabelecidos no céu, como que tal prática antecipasse sua vida futura. Os religiosos buscarão esse ideal, sendo que a perfeita conformidade com a realidade celestial imaginada poderá ser o que chamamos de “santidade”.
Na segunda linha, vemos que no princípio a terra já demonstrava imperfeições. Este é o primeiro sinal de que nós estamos no lado errado da criação, e daí nascerão diferentes explicações para todo tipo de mal. O mundo em que vivemos nunca foi e nem poderia ser perfeito, explicação que segue ainda hoje sendo suficientes em muitos círculos religiosos. Tal descrição obviamente não se aplica ao céu, que nunca foi imperfeito como lar da divindade.
As outras duas linhas dessa primeira estrofe parecem explicar que entre os dois polos da criação (céu e terra) havia um abismo, um espaço que os separava e talvez escondesse um do outro. As águas que aparecem no final talvez expliquem que este espaço divisor fosse uma espécie de mar, visto que para os homens antigos, a explicação para as chuvas era a existência de um grande reservatório de água que estava sobre nossas cabeças. Veremos mais adiante, quando lermos o mito do dilúvio, que a terra poderia ser destruída caso as “janelas do céu” se abrissem (Gn 7.11). Somente o “espírito de Deus” podia se mover neste abismo e transitar entre os dois mundos, entre o caos e a perfeição.
Elementos semelhantes ao do mito bíblico da criação podem ser vistos noutros textos como no mito de criação do mundo e de origem do candomblé que Reginaldo Prandi publicou em sua obra sobre a Mitologia dos Orixás (2001, p. 524-528):
No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas e aventuras.
Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá se perdera.
Olorum, Senhor do Céu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais, soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás também não podiam vir à Terra com seus corpos. Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separados.
A cosmologia dualista está bem presente também nesta narrativa mitológica, assim como a ideia de que a impureza existe apenas do lado humano. A separação e o impedimento de que os seres transitassem mantém o Orum e o Aiê serve para manter a pureza de um, e justificar a impureza do outro. Tantos os humanos quanto os orixás perdem com tal impedimento, pelo que a religião, como veremos noutras leituras, funciona como um modo de minimizar tais prejuízos e aproximar momentaneamente os dois lados.
Outro mito de criação conhecido é o do Enuma Elish, cuja versão do século XII a.C. é assíria, desenvolvida da tradição recebida do extinto povo sumério. Aqui a leitura é mais difícil devido à fragmentalidade do texto, mas ainda assim é possível ver a ideia de dualidade na cosmologia, e a ação dos deuses decidindo as formas da existência:

Quando não havia firmamento, nem terra, alturas, profundezas ou sequer nomes... Quando o Apsu estava sozinho, Ele, as águas doces, o iniciador da criação, e Tiamat, as águas salgadas, e útero do universo, quando não existiam os deuses...
Quando as águas doces e as salgadas estavam juntas, misturadas, Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas, quando os deuses não tinham nome, natureza ou futuro, então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra [lama]...
Nestas duas primeiras estrofes vemos novamente que as águas exercem papel determinante na criação. Aqui, água doce e salgada são duas divindades, que ao se unirem dão à luz à terra. Apsu é a divindade masculina, o iniciador da criação, as águas doces. Tiamat é a fêmea, o útero do universo, as águas salgadas. Eles se unem quando não haviam impurezas, misturas, e dão origem aos deuses e à terra. A dualidade entre as águas, e depois entre o puro e o impuro, estão novamente presentes. Parece que as culturas humanas precisavam lidar com a questão do mal, que não lhes parecia natural, e que tinha que ter origem nalgum evento indesejado. Voltaremos à esse tema quando o texto bíblico também o fizer.

MITOLOGIA BÍBLICA (Verdade ou Mentira?)


Nos aproximando de nossos objetivos, dedicaremos uma seção à discussão sobre o mito, o que nos levará ao texto bíblico, às teologias dos povos antigos (e modernos). Começo com essa pergunta: o mito é uma mentira? Pelo menos é assim que popularmente o mito é entendido, como um sinônimo de história falsa. Muitos de nós lembram de imediato da mitologia grega com suas fantásticas narrativas sobre deuses e deusas, e tendo tais fábulas em mente o homem moderno com suas preferências científicas recusa-se a levar tais narrativas a sério. Quando o assunto é a literatura bíblica, os leitores se dividem: Aqueles que olham para a Bíblia apenas como um livro, uma produção cultural do mundo antigo, não hesitam em lhe aplicar os mesmos critérios da literatura grega e declarar ser a Bíblia um “livro de mitologias”; mas aqueles que a recebem como texto sagrado, como livro normativo para sua fé e prática, recusam tal abordagem. Deveras é difícil para o homem moderno se guiar por narrativas ficcionais, e assim se dá a encruzilhada. A Bíblia adquire o status de livro histórico para quem a quer como “Palavra de Deus”, ou como livro mitológico para quem a quer meramente como literatura.
Nota-se que estamos trabalhando sobre um campo de conhecimento não meramente científico, mas também religioso, o que torna a discussão sempre mais difícil. Mas nos voltemos para a tarefa de definir melhor o que é o mito e o que é história, na esperança de que tais definições finalmente nos conduzam a uma solução razoável para o suposto impasse.
O mito (do grego mythos) possuía em sua origem um sentido bem distinto daquele hoje praticado. Em sua Poética, Aristóteles tratava da natural compulsão humana pelo “imitar” (cap. IV), e o mito foi definido como o desenvolvimento dessa imitação em forma narrativa; noutras palavras, o mito é na Poética um “sistema de atos” reunidos com o objetivo de registrar o mundo sob a forma narrativa (cap. VII). Fazer mitologia seria então se utilizar dos instrumentos necessários para construir um “enredo” (Gazoni, 2006, p. 60), sem que isso defina a que tipo de narrativa se quer construir. A história, por outro lado, pode ser definida como um tipo específico de narrativa, onde o autor não somente desenvolve um enredo, mas procura se fundamentar em fatos verídicos, assim caracterizados através de uma investigação mais criteriosa. Como consequência dessa distinção, o mito foi ganhando novas conotações e passou a ser usado para definir as narrativas não históricas, aquelas que foram construídas sem qualquer critério científico, e que permitem voos imaginativos.
Em recente palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica da ABIB, realizado em Setembro de 2010, o estudioso do Novo Testamento Leif E. Vaage definiu a mitologia para nossos dias dizendo que ela se refere à construção de relatos de coisas que não podem ser mensuradas. Isso mantém o caráter de construção narrativa que o mito possuía em sua origem, mas o distingue das construções que utilizam-se de critérios científicos produzidos pelo homem de hoje. Entendemos assim, porque atualmente a literatura do mundo antigo é definida como mitologia; são produções literárias de um tempo em que ainda não haviam sido desenvolvidos meios tecnológicos de pesquisa ou critérios científicos de julgamento. Não se admira que o cientista de hoje venha a classificar a Bíblia como literatura mítica.
Entretanto, há um problema nessa maneira de diferenciar mito e história. O mito passou a ser visto como a narração de mentiras porque a história tomou para si o status de verdade, mas essa ideia de que a história é a verdade está superada atualmente, e exige que reformulemos nossas definições. Para começar, temos que nos ater ao fato de que quando alguém pretende escrever história, ainda que se utilize de métodos mais científicos para colher informações, interpretá-las e uni-las numa narrativa, está também desenvolvendo um enredo que não pode retratar a realidade. Fazer história é um processo de pesquisa, interpretação e criação. Teríamos que levar em conta o talento do historiador, sua formação, seu empenho, seus métodos, seus pressupostos e influências... São muitos os aspectos que tornam indeterminado o nível de realidade que uma narrativa histórica é capaz de transmitir. Mesmo que se aproxime mais dos fatos originais por uma criteriosa investigação, e atenda às exigências técnicas da racionalidade moderna, o resultado do trabalho do historiador será sempre uma leitura pessoal dos fatos.
As narrativas historiográficas mais antigas são hoje desprestigiadas pelos historiadores por sua excessiva ênfase nas grandes realizações de reis e imperadores, negligenciando a história da grande maioria da população que não tiveram seus nomes listados nas crônicas imperiais e nem deixaram grandes documentos ou edifícios para que os estudássemos. É tendência na historiografia atual dar mais valor à história social, ou mesmo à “história das mentalidades” reconstruindo parcialmente mundos que os livros antigos não nos deixam ver (Burke, 2008, p. 157-158). No posfácio de O Fio e os Rastros, o historiador Carlo Ginzburg trata da diferença entre um relato que tradicionalmente se chama história e os romances, que geralmente são vistos como relatos fictícios (2007, p. 311-335). Ginzburg fala de como o romancista de maneira transparente preenche as lacunas históricas, ou seja, cria informações para ocupar os espaços que a pura análise de documentos não foi capaz de ocupar. Ginzburg compara tal técnica criativa com o trabalho dos historiadores, que faziam o mesmo, mas que produziam narrativas menos interessantes, mais incompletas, e que não eram tão honestos quando também preenchiam com a própria criatividade os buracos históricos. A pergunta que a leitura do texto de Ginzburg nos deixa é esta: será que os romancistas do passado, em suas ficções que retratavam a vida cotidiana através da imaginação, não estiveram mais perto da realidade histórica da maioria da população do que as crônicas reais nos permitiram chegar?
 Concluindo essas breves considerações teóricas, poderíamos dizer que para uma aplicação correta dos conceitos, a distinção entre mitologia e história não deve ser entendida como uma oposição entre mentira e verdade. A mitologia retrata tanto fábulas e histórias fantásticas, quanto procura retratar a verdade que não se pode constatar cientificamente, mas que é realidade na construção de mundo e identidade de quem a produz. De maneira semelhante, a história tanto pode nos contar com razoável precisão coisas que aconteceram, como pode nos fazer acreditar em ficções ao conduzir nosso pensamento com base numa interpretação equivocada do passado. O importante é estar ciente de que em ambos os casos, realidade e ficção se misturam, e é uma tarefa árdua (e no caso da interpretação bíblica quase sempre desnecessária) tentar distinguir entre uma e outra.

terça-feira, 22 de maio de 2012

TEOLOGIA E LITERATURA BÍBLICA: UMA INTRODUÇÃO (Parte 5)


A Bíblia de Hoje e sua História
A Bíblia é uma verdadeira biblioteca composta por dezenas de livros antigos, e como acontece com toda fonte literária antiga, sua própria história (a sucessão de tempos e eventos) traz dificuldades e tradições que vão além do próprio texto; falo aqui de particularidades como as da sua preservação, tradução e uso. Abordar essa história é importante para que saibamos tratar de alguns dos fundamentos das leituras dogmáticas e fundamentalistas, como a ideia de que o texto bíblico é como divinamente inspirado, e consequentemente, perfeito. Sob esta ótica os textos bíblicos devem ser coesos, inteligíveis, e ter um enunciado capaz de se comunicar universalmente, isto é, relevante em todas as épocas e culturas. Mas será que tais reivindicações correspondem à história dos textos? Será que a leitura, livre dos condicionantes dogmáticos, confirma essas alegações cristãs sobre a Bíblia?
Permitam que eu fale rapidamente da origem e preservação dos textos bíblicos, partindo da afirmação de que não existem originais desses textos. Por conta de fatores comuns, como a própria fragilidade dos materiais utilizados para a escrita (folhas de papiro, pergaminhos, tábuas de argila...), o mundo antigo não nos deixou ter em mãos qualquer carta paulina ou evangelho em sua versão original. Em sua origem, todos os textos bíblicos eram apenas textos, livres do status de “Escritura Sagrada”; eles foram usados normalmente, aprovados pelo uso comum, copiados, reeditados, corrigidos, e com o prestígio que atingiram ao longo deste complexo processo histórico, chegaram a fazer parte do que chamamos de “cânon”. Assim, geralmente reconhecemos intervalos de centenas de anos que separam a autoria de um texto em sua primeira versão, e a sua eleição como texto sagrado.
Um problema inevitável deste processo de canonização é que, antes da canonização de um texto e da exigência para que o mesmo seja preservado e corretamente copiado por profissionais, o prestígio do texto naquele círculo sócio-religioso já havia não apenas destruído o autógrafo, como produzido inumeráveis cópias. O processo de cópia manual de um texto neste período legava às gerações futuras várias versões do mesmo texto, que era corrigido, melhorado, abreviado, comentado, ou que recebia erros involuntários mesmo. Assim, desde a canonização, a busca pela cópia mais próxima do “original” toma seu lugar. Hoje, há milhares de manuscritos do Novo Testamento diferentes, produzidos ao longo de séculos por copistas de vários lugares, e é simplesmente impossível determinar com precisão qual versão dentre as centenas disponíveis, é a mais fiel à origem. Há muitos pesquisadores que lidam com tais textos, comparando letra por letra, avaliando a qualidade da cópia, o lugar e época de cada manuscrito, e emitindo juízos sobre qual versão deve ser a mais original. Esta tarefa é chamada de “crítica textual”, e é ela quem nos oferece uma versão do Antigo Testamento em língua hebraica (Bíblia Hebraica Stuttgartensia, atualmente em sua 4ª edição) e do Novo Testamento em grego koinê (o Novum Testamentum Graece, que já em sua 27ª edição), que são eventualmente atualizados e servem como base para as traduções da Bíblia para todos os idiomas modernos.
Chegamos aí a outro problema, que é a tradução do texto bíblico ao português. Sabemos que todo processo de tradução, por mais competente que seja, é incapaz de produzir um texto final que corresponda perfeitamente ao texto inicial; ainda mais quando estamos falando de idiomas tão distantes e diferentes. Os tradutores da Bíblia tentaram por muitos anos produzir versões que correspondessem ao texto em sua língua nativa, mas além das discordâncias naturais entre estas versões, o resultado deste trabalho mostra-se ineficaz para a grande maioria dos leitores. Algumas Bíblias brasileiras são realmente difíceis de ler, contam com vocabulários pouco usuais, e diminuem o interesse do leitor comum que acaba delegando esta leitura aos “profissionais”, isto é, aos líderes religiosos. A reforma protestante não alterou o dogma cristão que aceita a Bíblia como mensagem divina, mas exigiu o direito de traduzir a Bíblia a qualquer idioma e de tornar os textos acessíveis aos fieis, evitando assim os abusos daqueles que sempre exerceram o papel de intermediários entre Deus e os homens. Todavia, mesmo tendo acesso à Bíblia em português, o fenômeno da “terceirização da fé” não foi extinto, e parte disso se deve à complexidade das traduções brasileiras, e à má formação básica dos leitores.
Atualmente há uma tendência por se produzir novas traduções que aproximam a linguagem do texto bíblico àquela usada pelos leitores. Hoje, por exemplo, os brasileiros raramente conjugam corretamente os verbos em segunda pessoa, e já existem versões que modificaram o texto bíblico no mesmo sentido. Mas esta notícia não é tão boa quanto pode parecer; ao se produzir uma versão deste tipo (partindo do princípio da equivalência dinâmica), os tradutores buscam substituir conteúdos que são ininteligíveis no texto grego e hebraico, e atualizar algumas expressões; lidando assim com o texto, os tradutores ficam mais livres para transformar o texto, impondo nele suas próprias leituras, e por vezes, suas afirmações dogmáticas. Daí, frases que parecem erradas são transformadas em outras, e pontos que possivelmente refletem religiosidades politeístas são cristianizados.
Como vemos, não temos mesmo uma versão ideal de Bíblia, e nem poderemos ter. Continuarão surgindo novas traduções, com as quais, o estudioso deve lidar conjuntamente. Logicamente, é sempre preferível analisar as narrativas bíblicas a partir dos idiomas originais, o que ao menos eliminam uma parte do problema. Enfim, temos novos motivos para evitar leituras dogmáticas, incentivos para procurar ler a Bíblia criticamente; está indicado aqui um caminho para aqueles que desejam utilizar a Bíblia como de partida para o discurso teológico.