A Teologia e os Dogmas
É verdade
que são raras as pessoas que se dedicam seriamente ao estudo da religião e que
não tenham tido, ao menos no início de suas carreiras, uma ligação pessoal com alguma
forma de religiosidade. Também é verdade que em nossos dias já não se acredita
na possibilidade de separar completamente os julgamentos pessoais do pensamento
científico; isto é, nossas posições sempre influenciam de alguma forma nossa
ciência, e não há método que seja capaz de nos conduzir à pura objetividade, embora
o rigor metodológico seja útil neste sentido. Com isso, é necessário admitir
que nossas opções religiosas irão continuar presentes (e em transição) em nossa
carreira teológica, ainda que essas crenças não sejam explicitadas. Mas esse
fato precisa ser bem considerado, pois há detalhes que diferenciam as
abordagens dos “crentes” daquelas dos “cientistas que creem”.
Se como
teólogos defendemos que o direito de falar das coisas relacionadas à fé já não
é exclusividade das instituições religiosas, precisamos entender também em que
nosso discurso pode acrescentar àqueles que as igrejas já oferecem. Para isso,
é preciso diferenciar aquilo que chamamos de teologia, dos tradicionais dogmas
religiosos.
Toda
forma de religiosidade desenvolve, ao passo que se institucionaliza a fim de
sobreviver, seus próprios dogmas. Eles são os pontos considerados centrais para
aquele tipo de crença, como o monoteísmo para o judaísmo, a divindade de Jesus
Cristo para o cristianismo, e a crença na reencarnação para o espiritismo
kardecista. Os dogmas são considerados indiscutíveis no interior das
instituições religiosas, são anunciados como verdades absolutas, e se espera que
todo seguidor daquela forma de religiosidade os aceite e se possível, divulgue.
Contudo, o discurso teológico não pode lidar dessa maneira com os dogmas. Quando
a teologia reivindica o status de conhecimento acadêmico deve assumir com esse
status os pressupostos mais caros à cientificidade acadêmica, tais como o
direito de pesquisar e pensar de forma autônoma, que é contrário à defesa e
imposição de todo tipo de dogma.
Claro que
o teólogo, como ser humano, pode aceitar certos dogmas para si mesmo,
entretanto, não poderá em seu discurso como teólogo seja determinado por seus
dogmas pessoais. Os dogmas (e os poucos exemplos oferecidos já o demonstram)
estão entre aqueles elementos próprios da fé, que nascem da reflexão da
religião a partir de si mesma, e que buscam se impor geração após geração sem a
devida contextualização, mas apoiando-se na força da tradição e das
“autoridades” por ela constituídas. Logo se nota que dogmas são inacessíveis à
avaliação dos métodos científicos, e que não podem conviver no espaço acadêmico
onde o ideal da racionalidade autônoma prevalece.
Fazer
essa separação entre o a fé e a ciência tem sido o grande desafio da teologia
como área do conhecimento acadêmico, em especial nas faculdades de teologia que
se vinculam a alguma religião institucionalizada. Por isso este tipo de
reflexão se faz tão necessário especialmente aos teólogos que estão vinculados
a alguma forma de religiosidade ou a instituições confessionais. Deixar de
refletir sobre o tema pode trazer consequência graves ao estudante de teologia.
Muitos teólogos confessionais veem sua carreira limitada ao circulo de fé de
onde saíram, incapazes de produzir qualquer reflexão aceitável para o mundo
científico, e acabam se perguntando se era realmente necessário dedicar seus
anos ao estudo teológico, já que os únicos conhecimentos que lhe são exigidos
são aqueles próprios da “igreja”.
Não tenho
nenhuma intenção de diminuir o valor das instituições religiosas com tais palavras;
apenas quero demonstrar que para os teólogos, como grupo bem específico de
cientistas que pesquisam fenômenos religiosos e pensam sobre o mundo em que
vivem a partir do diálogo entre fé e razão, é fundamental se posicionar
conscientemente diante da academia de das instituições religiosas. Cada uma
deve exercer seu papel na sociedade com competência, e o teólogo pode ser um dos
poucos seres capazes de transitar entre os dois campos e de atuar positivamente
em ambos. Se o teólogo é parte de alguma instituição religiosa, ali se ocupara
das experiências de fé, se dedicará à formação do indivíduo “espiritual”, da
prática ritual, das experiências místicas, e ajudará tal instituição a não se
fechar em si mesma até o ponto de se encontrar completamente irrelevante. Mas
seu discurso também deve contribuir com o conhecimento humano e para todos
públicos, deve estar adequado à linguagem acadêmica, interagindo com as teorias
contemporâneas, fazendo uso consciente e competente dos métodos, e deve se
ocupar da formação de cidadãos, do aperfeiçoamento da sociedade de forma geral.
Nas palavras de João Décio Passos:
[...] a teologia só
pode ser legítima dentro de qualquer academia se se mostrar teórica e
metodologicamente relevante para a compreensão da realidade e para a educação
do cidadão e do futuro profissional. Do contrário, reproduzirá a postura
equivocadamente instituída de “coisa de igreja”. (2011, p. 12)
Em vez de
defender seus dogmas pessoais, o teólogo assume em seu discurso o dever de ser
sincrético e ecumênico como seu público. O elemento religioso, é claro,
continuará presente neste discurso, mas de maneira autônoma, isto é,
independente dos dogmas estabelecidos, o teólogo transformará a leitura
religiosa da realidade em conhecimento científico, e assim poderá demonstrar
como os princípios éticos oriundos dessa reflexão teológica podem contribuir
com a sociedade. Aquela definição provisória que temos à teologia (o estudo do
discurso humano sobre as coisas de deus) pode, agora, receber algum
aperfeiçoamento. Fazer teologia é sim conceber uma leitura crítica das ideias
que se tem sobre deus, não vendo estas ideias simplesmente como fenômenos
sociais ou antropológicos, mas como potenciais motivações para se construir
propostas que integrem na vida cotidiana as esperanças e os princípios éticos
recebidos da fé, e a atuação benéfica e relevante sobre a realidade social.
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