Desde que
a tradição judaico-cristã legou à Bíblia a autoridade normativa, esta se tornou
mais que um instrumento de reflexão teológica e inspiração religiosa, se tornou
um verdadeiro campo de batalha entre diferentes grupos religiosos. Como texto
sagrado adotado por diversas formas de culto, a interpretação da Bíblia passou
a servir a objetivos apologéticos; cada grupo procurava legitimar suas próprias
práticas e dogmas através do texto bíblico, o que produziu inumeráveis leituras
contraditórias.
Os judeus
já produziam antes de Jesus e do completo fechamento do cânon do Antigo
Testamento, suas exegeses de caráter pragmático e alegórico, e o próprio
Novo Testamento atesta essa afirmação. Em algumas narrativas Jesus aparece
discutindo com outros judeus (geralmente fariseus e escribas) sobre a
verdadeira interpretação da Lei, e o apóstolo Paulo também fazia uso abundante
de tradições literárias para legitimar suas posições. No Evangelho de Mateus
temos alguns bons exemplos: primeiro no capítulo 5.17-48, onde o autor usa
Jesus para oferecer sua própria leitura de alguns conhecidos mandamentos,
alguns fixados na tradição literária, outros talvez ainda divulgados oralmente
(sobre homicídio, adultério, divórcio, juramentos e sobre a retribuição do mal
recebido), e constrói sua “lei” em oposição direta à dos seus rivais, os
fariseus, que deveriam ser superados (Mt 5.20). Apesar de criar novas maneiras
de seguir tais “obras de justiça”, o evangelho faz questão de afirmar que Jesus
não queria abolir a Lei, mas cumpri-la (Mt 5.17), criando um paradoxo que se
explica pela necessidade de fazer os textos, cuja autoridade já era
indiscutível naquela cultura, confirmar sua religiosidade a todo custo.
O
apóstolo Paulo se envolveu em questão similar. Ele transformou o “evangelho de
Jesus Cristo” numa forma de religião praticável não somente entre judeus, mas
também para gentios, e sofreu com a oposição de judeus ortodoxos que exigiam que
os tais gentios seguidores de Jesus fossem “judaizados”, isto é, que se
circuncidassem, que passassem a seguir seus rituais de pureza, suas restrições
alimentares etc. Paulo negava a necessidade de tais ações, e embora estivesse
claramente descartando boa parte da tradição judaica e do Antigo Testamento,
não podia admiti-lo. Numa de suas cartas ele tenta conciliar a tradição legal
de Israel (a Toráh) com a liberdade e igualdade que apregoava. Em Gálatas,
capítulo 3, ele usa as narrativas bíblicas sobre Abraão para demonstrar que
antes de Moisés e da Lei, já existia uma promessa divina de que todos os que
cressem seriam “justificados” e se encontrariam entre os eleitos “filhos de
Abraão” (Gn 15.6; Gl 3.6-7); para Paulo, a própria tradição legal confirmava
sua doutrina da salvação pela fé, o que inevitavelmente negava a prática da Lei
e a escolha de Israel como nação especial.
Não
pensemos, todavia, que as coisas mudaram. Ainda existem diferentes formas de
culto que buscam assegurar sua legitimidade por meio de textos bíblicos.
Diferentes denominações evangélicas se acusam diariamente através da citação de
passagens bíblicas, o que é um resustado direto da antiga luta dos reformadores
protestantes para transformar a Bíblica na grande fonte de autoridade normativa.
Até o
espiritismo kardecista, nascido na França em meados do século XIX, julgou
necessário incluir Jesus, o nome mais à tradição cristã ocidental, dentre suas
doutrinas. Se não o fizesse, o kardecismo sofreria a resistência da cultura
europeia ao ser rotulada como seita anticristã. Como nos exemplos bíblicos
vistos acima, a apropriação de Jesus e de outras tradições bíblicas pela
doutrina kardecista revela muitas contradições e equívocos, mas cumpre seu
papel ao acalmar ex-cristãos que anseiam por saber onde fica Jesus em meio à
nova religiosidade.
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