Nos aproximando de nossos objetivos, dedicaremos uma seção à
discussão sobre o mito, o que nos levará ao texto bíblico, às teologias dos
povos antigos (e modernos). Começo com essa pergunta: o mito é uma mentira?
Pelo menos é assim que popularmente o mito é entendido, como um sinônimo de
história falsa. Muitos de nós lembram de imediato da mitologia grega com suas
fantásticas narrativas sobre deuses e deusas, e tendo tais fábulas em mente o
homem moderno com suas preferências científicas recusa-se a levar tais
narrativas a sério. Quando o assunto é a literatura bíblica, os leitores se
dividem: Aqueles que olham para a Bíblia apenas como um livro, uma produção
cultural do mundo antigo, não hesitam em lhe aplicar os mesmos critérios da
literatura grega e declarar ser a Bíblia um “livro de mitologias”; mas aqueles
que a recebem como texto sagrado, como livro normativo para sua fé e prática, recusam
tal abordagem. Deveras é difícil para o homem moderno se guiar por narrativas
ficcionais, e assim se dá a encruzilhada. A Bíblia adquire o status de livro
histórico para quem a quer como “Palavra de Deus”, ou como livro mitológico
para quem a quer meramente como literatura.
Nota-se que estamos trabalhando sobre um campo de conhecimento não
meramente científico, mas também religioso, o que torna a discussão sempre mais
difícil. Mas nos voltemos para a tarefa de definir melhor o que é o mito e o
que é história, na esperança de que tais definições finalmente nos conduzam a
uma solução razoável para o suposto impasse.
O mito (do grego mythos)
possuía em sua origem um sentido bem distinto daquele hoje praticado. Em sua Poética, Aristóteles tratava da natural compulsão humana pelo “imitar”
(cap. IV), e o mito foi definido como o desenvolvimento dessa imitação em forma
narrativa; noutras palavras, o mito é na Poética
um “sistema de atos” reunidos com o objetivo de registrar o mundo sob a
forma narrativa (cap. VII). Fazer mitologia seria então se utilizar dos
instrumentos necessários para construir um “enredo” (Gazoni, 2006, p. 60), sem
que isso defina a que tipo de narrativa se quer construir. A história, por
outro lado, pode ser definida como um tipo específico de narrativa, onde o
autor não somente desenvolve um enredo, mas procura se fundamentar em fatos
verídicos, assim caracterizados através de uma investigação mais criteriosa. Como
consequência dessa distinção, o mito foi ganhando novas conotações e passou a
ser usado para definir as narrativas não históricas, aquelas que foram
construídas sem qualquer critério científico, e que permitem voos imaginativos.
Em recente palestra no IV Congresso Brasileiro de Pesquisa Bíblica
da ABIB, realizado em Setembro de 2010, o estudioso do Novo Testamento Leif E.
Vaage definiu a mitologia para nossos dias dizendo que ela se refere à
construção de relatos de coisas que não podem ser mensuradas. Isso mantém o
caráter de construção narrativa que o mito possuía em sua origem, mas o
distingue das construções que utilizam-se de critérios científicos produzidos
pelo homem de hoje. Entendemos assim, porque atualmente a literatura do mundo
antigo é definida como mitologia; são produções literárias de um tempo em que
ainda não haviam sido desenvolvidos meios tecnológicos de pesquisa ou critérios
científicos de julgamento. Não se admira que o cientista de hoje venha a
classificar a Bíblia como literatura mítica.
Entretanto, há um problema nessa maneira de diferenciar mito e
história. O mito passou a ser visto como a narração de mentiras porque a
história tomou para si o status de verdade, mas essa ideia de que a história é
a verdade está superada atualmente, e exige que reformulemos nossas definições.
Para começar, temos que nos ater ao fato de que quando alguém pretende escrever
história, ainda que se utilize de métodos mais científicos para colher
informações, interpretá-las e uni-las numa narrativa, está também desenvolvendo
um enredo que não pode retratar a realidade. Fazer história é um processo de pesquisa,
interpretação e criação. Teríamos que levar em conta o talento do historiador,
sua formação, seu empenho, seus métodos, seus pressupostos e influências... São
muitos os aspectos que tornam indeterminado o nível de realidade que uma
narrativa histórica é capaz de transmitir. Mesmo que se aproxime mais dos fatos
originais por uma criteriosa investigação, e atenda às exigências técnicas da
racionalidade moderna, o resultado do trabalho do historiador será sempre uma
leitura pessoal dos fatos.
As narrativas historiográficas mais antigas são hoje
desprestigiadas pelos historiadores por sua excessiva ênfase nas grandes
realizações de reis e imperadores, negligenciando a história da grande maioria
da população que não tiveram seus nomes listados nas crônicas imperiais e nem
deixaram grandes documentos ou edifícios para que os estudássemos. É tendência
na historiografia atual dar mais valor à história social, ou mesmo à “história
das mentalidades” reconstruindo parcialmente mundos que os livros antigos não
nos deixam ver (Burke, 2008, p. 157-158). No posfácio de O Fio e os Rastros, o historiador Carlo Ginzburg trata da diferença
entre um relato que tradicionalmente se chama história e os romances, que
geralmente são vistos como relatos fictícios (2007, p. 311-335). Ginzburg fala
de como o romancista de maneira transparente preenche as lacunas históricas, ou
seja, cria informações para ocupar os espaços que a pura análise de documentos
não foi capaz de ocupar. Ginzburg compara tal técnica criativa com o trabalho
dos historiadores, que faziam o mesmo, mas que produziam narrativas menos
interessantes, mais incompletas, e que não eram tão honestos quando também
preenchiam com a própria criatividade os buracos históricos. A pergunta que a
leitura do texto de Ginzburg nos deixa é esta: será que os romancistas do
passado, em suas ficções que retratavam a vida cotidiana através da imaginação,
não estiveram mais perto da realidade histórica da maioria da população do que
as crônicas reais nos permitiram chegar?
Concluindo essas breves
considerações teóricas, poderíamos dizer que para uma aplicação correta dos
conceitos, a distinção entre mitologia e história não deve ser entendida como
uma oposição entre mentira e verdade. A mitologia retrata tanto fábulas e
histórias fantásticas, quanto procura retratar a verdade que não se pode
constatar cientificamente, mas que é realidade na construção de mundo e
identidade de quem a produz. De maneira semelhante, a história tanto pode nos
contar com razoável precisão coisas que aconteceram, como pode nos fazer
acreditar em ficções ao conduzir nosso pensamento com base numa interpretação
equivocada do passado. O importante é estar ciente de que em ambos os casos,
realidade e ficção se misturam, e é uma tarefa árdua (e no caso da
interpretação bíblica quase sempre desnecessária) tentar distinguir entre uma e
outra.
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