Estranho esse título? Posso explicá-lo. No presente
trabalho proponho uma reflexão a partir da leitura de Filipenses 1.12-30, uma
carta paulina que, assim como as demais cartas paulinas, é um dos textos mais
antigos da história do cristianismo. Sabemos que os evangelhos do Novo
Testamento e o livro de Atos dos Apóstolos, foram produzidos já nas últimas
décadas do primeiro século, entre os anos 80 e 90 para sermos mais exatos, mas
as cartas de Paulo são documentos que nos remetem aos anos 50. Por isso, digo
que Filipenses é anterior ao próprio cristianismo.
É aceito por todos os historiadores que a religião
cristã não adquiriu independência em relação ao judaísmo pelo menos até fins do
primeiro século. Os evangelhos, que refletem as crises entre os seguidores de
Jesus e outros judeus, nos dão testemunhos do processo conflituoso que dava aos
grupos cristãos de diversas localidades uma identidade própria. Mas isso ainda
não existe em Paulo. Enquanto ele esteve vivo, ninguém diria que Jesus fundara
uma nova religião, nem sequer aceitariam a hipótese de que deixaram o judaísmo.
Por isso tudo, é mais correto dizermos que estamos lidando com um “proto-cristianismo”,
um cristianismo em fase embrionária; ou talvez seja melhor dizer que estamos
estudando formas diferentes de judaísmo.
Isso explica uma parte do nosso título, mas ainda
falta demonstrar as tais “divisões” que nós alegamos existir já naquele
período, e para isso, vou convidá-los a acompanhar minha leitura de Filipenses.
Começaremos no capítulo 1, versículo 12, e seguirei comentando as seções
rapidamente, fazendo observações sobre pontos mais específicos, e seria bom que
o leitor também tivesse uma Bíblia em suas mãos.
Pois bem, o versículo 12 traz o que chamei de “asserção”,
onde Paulo oferece aos leitores sua própria interpretação a respeito de
determinado evento. Ele estava preso, e naturalmente esse evento era
interpretado negativamente pela comunidade de discípulos de Jesus de Filipos;
mas Paulo afirma que isso foi bom, ou seja, interpreta a realidade e convida os
destinatários a aceitarem sua leitura da vida. O motivo para essa interpretação
otimista é o “progresso do evangelho” (v. 13-14); pessoas do palácio (que talvez
seja o lugar em que Paulo estava retido) ouviram sua história e com ela sobre
Cristo, e os “irmãos” estavam anunciando a palavra com mais dedicação desde
então. Com isso, Paulo diz que sua prisão acabou se tornando um evento
positivo.
Aqui, no versículo 15, aparecem os opositores, os
inimigos que nos levaram a afirmar desde nosso título que o proto-cristianismo
já conhecia diferentes vertentes que lutavam por alguma supremacia. Dois
grupos, personagens coletivos, são apresentados e brevemente descritos. Alguns
são vistos por Paulo como bons, e anunciam o evangelho por amor, de boa
vontade; os outros são os vilões da história, e segundo a visão de Paulo,
pregam Cristo por inveja e rivalidade, por ambição egoísta (v. 15-18). Alguns
pontos são importantes, como por exemplo, o que nos diz claramente que o grupo
antagonista é cristão (v. 15). Depois, é interessante que (pelo menos na ótica
paulina) eles querem fazer mal a Paulo, o que nos mostra que no meio do embate,
Paulo é visto pelos “outros” como uma espécie de liderança (v. 17b). Não é
difícil imaginar que o conflito aqui repita formas que nós podemos conhecer
através de outras cartas paulinas, e que há um grupo judaico mais conservador
que crê em Cristo, mas que não concorda com o liberalismo proposto pelo tipo
gentílico de seguimento cristão de Paulo. Os dois grupos lutam entre si, um
embate que pode adquirir muitas formas. Embora ambos sejam formados por pessoas
que se dizem seguidores de Jesus, as divergências já se mostram tão sérias que
os leva a lutar ativamente uns contra os outros. Este primeiro capítulo da
carta aos filipenses gira em torno de uma realidade difícil que é a prisão de
Paulo, e dos consolos e motivações que este apóstolo quer transmitir aos
irmãos; agora, quando esses rivais vão sendo revelados, podemos até supor que a
própria prisão tenha alguma relação com esse conflito.
Há um parágrafo bem definido entre os versículos 19
e 26. A princípio Paulo demonstra confiança na libertação/salvação, mostra-se
otimista com a oração dos irmãos e com o auxílio do Espírito de Jesus Cristo (v.
19), mas não pode deixar de considerar a possibilidade de que não venha a sair
da prisão, a não ser pela morte (v. 20). Mesmo neste ponto delicado da carta,
Paulo procura demonstrar otimismo; medita sobre as duas possibilidades (vida ou
morte), e interpreta ambas como destinos felizes. Para ele, morrer não é ruim,
pois acredita que estará com Cristo, porém, julga “mais necessário” permanecer
vivo para contribuir com o progresso dos irmãos (v. 21-26).
Deixando de lado aquela reflexão sobre a vida ou a
morte, Paulo passa a contar com outros caminhos, ambos de vida. No versículo
27, as oposições entre visão/presença e audição/ausência nos mostram que o
assunto é outro. Temos um imperativo, o pedido para que os filipenses vivam
dignamente do evangelho, e isso é explicado na sequência. Viver dignamente do
evangelho é 1) permanecerem unidos num só espírito, 2) lutando pela fé do
evangelho, e 3) sem se intimidar pelos opositores. Um parêntese: a “fé do
evangelho” é o nome que ele dá ao que hoje chamaríamos de “fé cristã” ou “cristianismo”;
é uma maneira bem antiga de falar sobre o tipo de religiosidade deste grupo,
maneira que foi substituída posteriormente.
Os rivais reaparecem no discurso paulino (v. 28), e
com um detalhe importante: eles intimidam. Talvez isso nos ajude a fortalecer
aquela hipótese de que a prisão de Paulo tenha alguma relação com esse conflito
interno do judaísmo proto-cristão. Esse tipo indefinido de pressão imposta
pelos adversários, diz Paulo, é para eles, indício de perdição; ou seja, essa
perseguição (seja qual a for a forma que ela assuma), é uma tentativa de prejudicar
o movimento do tipo paulino, porém (e aqui novamente Paulo oferece uma leitura
otimista da situação adversa), ele os ensina ver como sinal positivo, de
salvação. Então, o sempre otimista Paulo diz que a diferença entre o seu “grupo”
e o dos rivais é que só aos seus foi concedido o “privilégio” de crer e sofrer
por Cristo (v. 29). Eis uma definição cristã que hoje não seria bem aceita, a
de que os cristãos são pessoas que creem e que sofrem por Cristo.
Para fechar o capítulo, o versículo 30 diz que os
discípulos que estão livres estavam passando pelas mesmas dificuldades pelas
quais Paulo já havia passado, e ainda passava. Eu diria que Paulo fora
perseguido primeiro pelos rivais porque era visto como uma liderança daquele
movimento, e que esses mesmos perseguidores cristãos agora se voltavam contra
os discípulos de Paulo. Com tudo isso, descobrimos que o cristianismo realmente
já estava dividido e em combate antes mesmo de ser cristianismo; trata-se de
uma religiosidade plural, que desde seus primórdios conheceu diferentes formas
de existir; pluralidade esta que não foi recebida com bons olhos, mas que
provocou lutas internas.
Esse pequeno fragmento textual que lemos é recorte
muito rigoroso pelo qual não podemos ter a pretensão de reconstruir
historicamente o cristianismo originário. Porém, ele reflete com clareza um
tipo de cristianismo multifacetado e divergente que nós nem sempre queremos
reconhecer. Imagino que os tipos de cristianismos eram muito mais numerosos e
variados do que podemos conceber. Nesta leitura, não apenas encontramos duas
formas de cristianismos, também os encontramos em conflito. Não é possível
determinar as proporções desse conflito, nem saber que tipo de iniciativa
opressiva um podia impor sobre o outro. Só tivemos acesso a pequenos indícios de
que talvez um desses movimentos tenha conseguido levar Paulo à prisão, e que
seguia amedrontando outros. Todas as acusações feitas por Paulo quanto aos
adversários podem ser exageradas, produzidas no calor do conflito; elas até nos
lembram o modo pejorativo com o qual os evangelhos retratam os fariseus. Nos
perguntamos a partir daí se, ao longo de mais de um século de lutas internas
como essa, não podem ter desaparecido muitos tipos de cristianismos hoje
desconhecidos.
Enfim, o cristianismo do tipo paulino não foi
derrotado. A preservação dos textos paulinos e a reverência das igrejas à
memória do apóstolo nos séculos seguintes nos dão provas de, pelo menos noutras
localidades, seu trabalho prevaleceu. Mesmo assim, ler estas passagens e
reconstruir os possíveis conflitos e identidades dos cristianismos originários
é um empreendimento que acaba por nos livrar de concepções ingênuas que
tínhamos em relação à chamada “igreja primitiva”. Assim como acontece hoje, os
primeiros cristãos discordaram, se opuseram, se ofenderam, se agrediram, se distanciaram...
Um comentário:
Nunca tinha pensado por esse lado.
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