sexta-feira, 18 de maio de 2012

TEOLOGIA E LITERATURA BÍBLICA: UMA INTRODUÇÃO (Parte 3)


O Texto Bíblico como Fonte de Reflexão Teológica
A partir daqui, toda a discussão anterior será empregada na avaliação da literatura bíblica, que é o objeto de estudo que escolhi aqui para usar como ponto de partida para a reflexão teológica. Por hora, devo ressaltar a relevância dessa escolha, e para isso, tenho de imediato que pôr em prática os pressupostos discutidos acima para que não venha a me encontrar justificando o uso do texto bíblico a partir de argumentos dogmáticos. Quero dizer, que se estou me voltando para a literatura bíblica, elemento tão amarrado à religiosidade pelo uso comum, não é por considerá-la escritura sagrada, livro cuja composição foi divinamente inspirada. Esses atributos comumente empregados para definir a Bíblia são essencialmente dogmáticos, mas é evidente que não é possível observar a sacralidade de qualquer livro, nem testar sob qualquer critério a sua suposta inspiração divina;[1] o que nos resta é um livro, ou melhor dizendo, uma coleção de livros antigos que aos olhos acadêmicos possui outras virtudes.
A abordagem que pretendo fazer da Bíblia se pauta no valor desse conjunto literário como patrimônio cultural da humanidade. A despeito da longa discussão que seria possível sobre a origem de cada um desses textos e do processo de aceitação que os levou à canonização, a verdade é que por meio do catolicismo romano (e do judaísmo em menor grau) a cultura ocidental de modo geral, e a brasileira mais especificamente, foi marcada por esta literatura de maneira indelével. A presença da tradição bíblica pode ser notada não apenas em muitas formas de religiosidades modernas, mas nas artes plásticas, na música, no cinema, na literatura, e até na própria maneira com a qual a ciência, se opondo ao domínio da fé dogmática ao longo de toda a Idade Média, formatou seus discursos racionais. Nosso imaginário religioso e as nossas leituras do mundo possuem marcas oriundas dos textos bíblicos, e isso independe de nossas confissões de fé. Também os códigos de relacionamentos sociais que tacitamente assimilamos foram muito motivados pelos padrões de moralidade inspirados na literatura bíblica. Assim, ao passo que nos ambientes eclesiásticos o uso da Bíblia seja essencialmente religioso e moralizador, estudar a Bíblia fora da igreja e a partir de pressupostos não (somente) religioso pode se mostrar um exercício apaixonante, que nos emerge nos fundamentos da cultura ocidental, nos faz refletir sobre nosso modo de vida, e inevitavelmente, nos leva a questionar aquelas formas de religiosidades institucionalizadas que se dizem biblicamente fundamentadas.
É preciso estar ciente de que a divulgação e a influência da literatura bíblica na nossa cultura sempre estiveram vinculadas às leituras dogmáticas dos cristianismos, e hoje, às releituras feitas a partir dessas abordagens dogmáticas. Com isso, é natural que todos vejam a Bíblia por meio do cristianismo que lhes tocou. Em nossa tarefa, é preciso primeiro desmistificar o texto bíblico, acostumar-se a se debruçar sobre ele como faríamos diante de qualquer outra literatura, impondo-lhe os mesmos métodos e critérios de avaliação que empregaríamos no estudo de qualquer outra forma de literatura. Depois, dessa leitura mais “acadêmica” que religiosa, já podemos buscar as imagens sobre deus que os textos bíblicos construíram, aproveitando no final a autoridade religiosa que o texto possui em nossa sociedade para que essa literatura, desligada daquelas abordagens dogmáticas e descontextualizadas, nos ofereça imperativos relevantes e de possível aplicação.


[1] É importante que se diga que tal projeto não pretende questionar os fundamentos dogmáticos do cristianismo ou do judaísmo, alegando que sua crença na sacralidade do texto ou na sua inspiração divina sejam tolices. Tal crença, como dogma ou parte do campo próprio da fé, é uma ideia que não se pode comprovar, mas que tampouco se pode desmentir. Aceitar ou não essa proposta dogmática é uma escolha pessoal, que condiciona o relacionamento do leitor com o texto. O caso é que no ambiente acadêmico esta proposta dogmática não pode ser considerada, pelo que seguiremos lidando com a Bíblia apenas a partir de seu valor literário.

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