segunda-feira, 21 de maio de 2012

TEOLOGIA E LITERATURA BÍBLICA: UMA INTRODUÇÃO (Parte 4)


Dificuldades para a Abordagem Literária da Bíblia
A Bíblia é uma verdadeira biblioteca composta por dezenas de livros antigos, sacralizados, preservados e divulgados pelo judaísmo e pelo cristianismo. Ela foi o livro mais conhecido e reverenciado da história humana, o que recebeu mais leituras, o que foi traduzido para o maior número de idiomas diferentes, o que foi melhor preservado dentre todos os textos literários da antiguidade, mas tantos privilégios não a esgotaram nem tornaram simples a tarefa do leitor moderno. Nesta seção, quero abordar de maneira breve algumas das dificuldades com as quais teremos que lidar antes de lermos a Bíblia para fazer nossa teologia.
Talvez as mais evidentes dificuldades com as quais todo leitor da Bíblia precisa lidar hoje são aquelas resultantes da distância temporal que nos separa da origem dos textos, o que amplifica a sempre presente limitação da linguagem humana. Todo ato de comunicação escrita já possui, por natureza, limitações. Um exemplo comum pode ser o de que qualquer palavra, como “árvore” por exemplo, é apenas um signo linguístico que nada tem a ver com o objeto que pretende representar. Na palavra escrita há apenas uma coleção de traços, que formam letras, e que formam palavras. Temos antes de mais nada que entender as letras, a caligrafia, conhecer os códigos, ter algum conhecimento do idioma empregado. Isso já pode ser um desafio nalguns casos, mas mesmo que o superemos com tranquilidade, ainda temos que superar outros.
A palavra “árvores” em si não possui nenhuma relação direta com o objeto árvore. Ela não nos lembra a forma de uma árvore, o som da sua pronúncia também não nos remete a nenhuma árvore, e daí notamos que para saber que tal ajuntamento de letras se refere a uma árvore, dependemos de uma convenção cultural. Ou seja, alguém simplesmente determinou por razões desconhecidas, que este conjunto de letras e sons, quando empregados, se referem a uma árvore.
Mas isso pode ir mais longe ainda; podemos nos perguntar a que tipo de árvore o signo linguístico se refere. Há muitas espécies de árvores no mundo, mas esta simples palavra não é capaz de especificar a que tipo o autor ou enunciador se referia. Assim, como leitores, ao ler a palavra imediatamente construímos em nossa mente uma árvore imaginária, inspirada em nossas próprias experiências com árvores. Alguns vão pensar numa árvore frondosa, com folhagem farta, de um verde vibrante, de formas perfeitas, fixada no ponto mais alto de uma elevação de terra perfeitamente simétrica encoberta por uma bonita capa de grama. Essa imagem pode ter sido vista nalgum filme, numa capa de livro, mas será que é a esse tipo de árvore que a palavra lida pretendia se referir? Outro leitor, que anos antes dessa experiência de leitura teve um carro destruído por uma árvore que caiu durante uma tempestade, pode ler a mesma palavra e imaginar uma árvore bem diferente, imagem que talvez venha seguida por um sentimento de ameaça e não de serenidade. Com tais exemplos, só queremos demonstrar a natural arbitrariedade dos signos linguísticos, afirmando que por mais detalhista que seja um escritor, sempre haverá espaço para a imaginação do leitor, o que produzirá leituras divergentes, criativas, pessoais.
Quando lidamos com a literatura bíblica, as distancias temporais e topográficas tornam a leitura ainda mais livre das possíveis intencionalidades do texto; isto é, se a palavra “árvore” aparece na Bíblia, nossas criações mentais durante a leitura provavelmente estarão ainda mais longe da realidade que a palavra queria representar, já que nem sempre podemos determinar com precisão a época e o lugar em que o texto surgiu, nem os tipos de árvores que existiam naquela época e lugar. Não é por acaso que a Bíblia, embora tão lida, seja o ponto de partida para as mais diferentes leituras, para os mais divergentes dogmas e grupos religiosos, e que seja um campo de discussões e batalhas infindáveis entre eles. Nossas pesquisas podem até amenizar tais problemas, nos oferecendo recriações de mundo que nos permitam interpretar os signos linguísticos a partir de referenciais mais próximos à realidade dos textos, mas mesmo as mais completas pesquisas históricas, sociológicas, arqueológicas etc, serão incapazes de suprimir por completo as dificuldades inerentes à leitura desses antigos documentos.
Aquelas leituras dogmáticas da Bíblia que em nosso contexto acadêmico devem ser evitadas, surgem como resultados naturais da fé, da busca religiosa por respostas num conjunto de livros cujas regras literárias o leitor religioso ignora. A superação de antigos hábitos e conceitos religiosos antiquados que são produtos dessas leituras tradicionais, tais como o machismo e a intolerância religiosa, não pode partir de novas leituras dogmáticas. É impossível convencer o outro através da mera citação de passagens bíblicas. A questão é mais profunda, exige do teólogo a compreensão dos pressupostos que motivam a manutenção daquelas leituras nos círculos religiosos, e a renovação dos seus próprios, a fim de que sua leitura supere em qualidade e atualidade aquela descontextualizada que até hoje se sustentou sob o dogmatismo religioso, e permita que seu discurso adquira o poder de transformar.

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