O já citado João Décio Passos nos oferece algumas palavras úteis para introduzir nossa abordagem da mitologia bíblica:
As representações religiosas, assim como todas as outras, oferecem uma visão global da realidade – cosmovisão – que permite superar a desordem, o acaso, e a anomia. Os seres sobrenaturais, com suas funções e ações no mundo imanente, constroem um sistema que permite situar a realidade: como um conjunto significativo que tem origem e fim; como diversidade que encontra em uma unidade maior; como realidade contingente, limitada no tempo e no espaço pela dinâmica da vida e como possibilidade de sentido, perante os limites implacáveis da vida, de modo particular a morte. (Passos, 2011, p. 80)
Pressupõe-se que os homens convivam com um natural desconforto pela impressão que temos de que o mundo e a vida não possuem sentido. O inevitável ciclo de vida e morte, as imperfeições da natureza e do próprio corpo, as doenças, as dores, e falta de nexo entre todas estas coisas, são difíceis de engolir para os seres racionais. Deste desconforto notado há muito tempo é que nasceram as “representações religiosas” mais essenciais, as narrativas mitológicas. Quando não era possível responder às dúvidas mais elementares da existência por meio de nenhum argumento científico, eram os mitos com suas histórias sobre os deuses, sobre os antepassados, sobre o futuro da humanidade, que preenchiam estas lacunas. Assim, os mitos antigos se assemelham pela recorrência de determinados temas; oferecem explicações sobre as origens e destino do mundo e dos seres vivos, assim como explicam a origem dos povos e sua presente situação; os mitos explicam a origem do mal (seja moral ou natural), oferecem motivos para os rituais religiosos e para as estruturas sociais, em suma criam roteiros dentre os quais a vida se encaixa e faz sentido.
Os mitos nascem, se desenvolvem e passam de geração a geração sob a forma oral, mas quando falamos de textos bíblicos ou de outra formas de mitologia escrita, o que temos são mitos que foram fixados depois de circularem por algum tempo, sofrendo modificações e adequações. Portanto, lendo a mitologia bíblica sabemos que estamos diante de leituras tardias, nas quais, além das antigas explicações cosmológicas ainda relevantes, são expressas preocupações de origem social cujos interesses nos remetem ao tempo dessa fixação literária. Faremos a seguir nossa primeira leitura bíblica, e observaremos já na primeira mitologia, a da criação, como as características acima mencionadas aparecem nesta narrativa. Vamos a Genesis 1.1-2.3, porém, sempre que nos parecer necessário, faremos análises comparativas entre o mito bíblico e outros:
No princípio, criou Deus os céus e a terra.
E a terra era sem forma e vazia;
E havia trevas sobre a face do abismo;
E o espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
Estes quatro versos formam a primeira estrofe do mito bíblico da criação. As preocupações cosmológicas são as mais evidentes. Tudo teve um começo, e este começo está em Deus (que é único). Deus é preexistente, mesmo o mito não é capaz de explicá-lo, mas o mundo é temporal. É como se o mito colocasse a existência do mundo na experiência humana de tempo, e esta ideia de tempo sempre é limitada, isto é, possui começo e fim. Mas esta criação inexplicável de Deus nos mostra uma cosmologia dualista, isto é, Deus criou dois mundos, o céu e a terra.
Sabemos que o imaginário bíblico (que segue vivo ainda hoje) fará coexistir um céu, onde habita Deus e outros seres celestiais, e a terra, onde habitam os homens e toda forma de materialidade. A terra será sempre uma cópia imperfeita, uma sombra da realidade celestial. Depois esses dois lugares serão construídos a partir de inconciliáveis oposições entre bom e mal, luz e trevas, perfeição e imperfeição, eterno e transitório. O objetivo do homem deverá ser viver no céu, ou ao menos viver na terra segundo os padrões estabelecidos no céu, como que tal prática antecipasse sua vida futura. Os religiosos buscarão esse ideal, sendo que a perfeita conformidade com a realidade celestial imaginada poderá ser o que chamamos de “santidade”.
Na segunda linha, vemos que no princípio a terra já demonstrava imperfeições. Este é o primeiro sinal de que nós estamos no lado errado da criação, e daí nascerão diferentes explicações para todo tipo de mal. O mundo em que vivemos nunca foi e nem poderia ser perfeito, explicação que segue ainda hoje sendo suficientes em muitos círculos religiosos. Tal descrição obviamente não se aplica ao céu, que nunca foi imperfeito como lar da divindade.
As outras duas linhas dessa primeira estrofe parecem explicar que entre os dois polos da criação (céu e terra) havia um abismo, um espaço que os separava e talvez escondesse um do outro. As águas que aparecem no final talvez expliquem que este espaço divisor fosse uma espécie de mar, visto que para os homens antigos, a explicação para as chuvas era a existência de um grande reservatório de água que estava sobre nossas cabeças. Veremos mais adiante, quando lermos o mito do dilúvio, que a terra poderia ser destruída caso as “janelas do céu” se abrissem (Gn 7.11). Somente o “espírito de Deus” podia se mover neste abismo e transitar entre os dois mundos, entre o caos e a perfeição.
Elementos semelhantes ao do mito bíblico da criação podem ser vistos noutros textos como no mito de criação do mundo e de origem do candomblé que Reginaldo Prandi publicou em sua obra sobre a Mitologia dos Orixás (2001, p. 524-528):
No começo não havia separação entre o Orum, o Céu dos orixás, e o Aiê, a Terra dos humanos. Homens e divindades iam e vinham, coabitando e dividindo vidas e aventuras.
Conta-se que, quando o Orum fazia limite com o Aiê, um ser humano tocou o Orum com as mãos sujas. O céu imaculado do Orixá fora conspurcado. O branco imaculado de Obatalá se perdera.
Olorum, Senhor do Céu, Deus Supremo, irado com a sujeira, o desperdício e a displicência dos mortais, soprou enfurecido seu sopro divino e separou para sempre o Céu da Terra.
Assim, o Orum separou-se do mundo dos homens e nenhum homem poderia ir ao Orum e retornar de lá com vida. E os orixás também não podiam vir à Terra com seus corpos. Agora havia o mundo dos homens e o dos orixás, separados.
A cosmologia dualista está bem presente também nesta narrativa mitológica, assim como a ideia de que a impureza existe apenas do lado humano. A separação e o impedimento de que os seres transitassem mantém o Orum e o Aiê serve para manter a pureza de um, e justificar a impureza do outro. Tantos os humanos quanto os orixás perdem com tal impedimento, pelo que a religião, como veremos noutras leituras, funciona como um modo de minimizar tais prejuízos e aproximar momentaneamente os dois lados.
Outro mito de criação conhecido é o do Enuma Elish, cuja versão do século XII a.C. é assíria, desenvolvida da tradição recebida do extinto povo sumério. Aqui a leitura é mais difícil devido à fragmentalidade do texto, mas ainda assim é possível ver a ideia de dualidade na cosmologia, e a ação dos deuses decidindo as formas da existência:
Quando não havia firmamento, nem terra, alturas, profundezas ou sequer nomes... Quando o Apsu estava sozinho, Ele, as águas doces, o iniciador da criação, e Tiamat, as águas salgadas, e útero do universo, quando não existiam os deuses...
Quando as águas doces e as salgadas estavam juntas, misturadas, Os juncos não estavam trançados, ou galhos sujavam as águas, quando os deuses não tinham nome, natureza ou futuro, então a partir de Apsu e Tiamat, nas águas dele e dela, foram criados os deuses, e para dentro das águas precipitou-se a terra [lama]...
Nestas duas primeiras estrofes vemos novamente que as águas exercem papel determinante na criação. Aqui, água doce e salgada são duas divindades, que ao se unirem dão à luz à terra. Apsu é a divindade masculina, o iniciador da criação, as águas doces. Tiamat é a fêmea, o útero do universo, as águas salgadas. Eles se unem quando não haviam impurezas, misturas, e dão origem aos deuses e à terra. A dualidade entre as águas, e depois entre o puro e o impuro, estão novamente presentes. Parece que as culturas humanas precisavam lidar com a questão do mal, que não lhes parecia natural, e que tinha que ter origem nalgum evento indesejado. Voltaremos à esse tema quando o texto bíblico também o fizer.
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