A Bíblia de Hoje e sua História
A Bíblia
é uma verdadeira biblioteca composta por dezenas de livros antigos, e como
acontece com toda fonte literária antiga, sua própria história (a sucessão de
tempos e eventos) traz dificuldades e tradições que vão além do próprio texto;
falo aqui de particularidades como as da sua preservação, tradução e uso.
Abordar essa história é importante para que saibamos tratar de alguns dos
fundamentos das leituras dogmáticas e fundamentalistas, como a ideia de que o
texto bíblico é como divinamente inspirado, e consequentemente, perfeito. Sob
esta ótica os textos bíblicos devem ser coesos, inteligíveis, e ter um
enunciado capaz de se comunicar universalmente, isto é, relevante em todas as
épocas e culturas. Mas será que tais reivindicações correspondem à história dos
textos? Será que a leitura, livre dos condicionantes dogmáticos, confirma essas
alegações cristãs sobre a Bíblia?
Permitam
que eu fale rapidamente da origem e preservação dos textos bíblicos, partindo
da afirmação de que não existem originais desses textos. Por conta de fatores
comuns, como a própria fragilidade dos materiais utilizados para a escrita
(folhas de papiro, pergaminhos, tábuas de argila...), o mundo antigo não nos
deixou ter em mãos qualquer carta paulina ou evangelho em sua versão original.
Em sua origem, todos os textos bíblicos eram apenas textos, livres do status de
“Escritura Sagrada”; eles foram usados normalmente, aprovados pelo uso comum,
copiados, reeditados, corrigidos, e com o prestígio que atingiram ao longo
deste complexo processo histórico, chegaram a fazer parte do que chamamos de “cânon”.
Assim, geralmente reconhecemos intervalos de centenas de anos que separam a
autoria de um texto em sua primeira versão, e a sua eleição como texto sagrado.
Um
problema inevitável deste processo de canonização é que, antes da canonização
de um texto e da exigência para que o mesmo seja preservado e corretamente copiado
por profissionais, o prestígio do texto naquele círculo sócio-religioso já
havia não apenas destruído o autógrafo, como produzido inumeráveis cópias. O
processo de cópia manual de um texto neste período legava às gerações futuras
várias versões do mesmo texto, que era corrigido, melhorado, abreviado,
comentado, ou que recebia erros involuntários mesmo. Assim, desde a
canonização, a busca pela cópia mais próxima do “original” toma seu lugar.
Hoje, há milhares de manuscritos do Novo Testamento diferentes, produzidos ao
longo de séculos por copistas de vários lugares, e é simplesmente impossível
determinar com precisão qual versão dentre as centenas disponíveis, é a mais
fiel à origem. Há muitos pesquisadores que lidam com tais textos, comparando
letra por letra, avaliando a qualidade da cópia, o lugar e época de cada
manuscrito, e emitindo juízos sobre qual versão deve ser a mais original. Esta
tarefa é chamada de “crítica textual”, e é ela quem nos oferece uma versão do
Antigo Testamento em língua hebraica (Bíblia Hebraica Stuttgartensia,
atualmente em sua 4ª edição) e do Novo Testamento em grego koinê (o Novum
Testamentum Graece, que já em sua 27ª edição), que são eventualmente
atualizados e servem como base para as traduções da Bíblia para todos os
idiomas modernos.
Chegamos
aí a outro problema, que é a tradução do texto bíblico ao português. Sabemos
que todo processo de tradução, por mais competente que seja, é incapaz de
produzir um texto final que corresponda perfeitamente ao texto inicial; ainda
mais quando estamos falando de idiomas tão distantes e diferentes. Os
tradutores da Bíblia tentaram por muitos anos produzir versões que
correspondessem ao texto em sua língua nativa, mas além das discordâncias
naturais entre estas versões, o resultado deste trabalho mostra-se ineficaz
para a grande maioria dos leitores. Algumas Bíblias brasileiras são realmente
difíceis de ler, contam com vocabulários pouco usuais, e diminuem o interesse
do leitor comum que acaba delegando esta leitura aos “profissionais”, isto é,
aos líderes religiosos. A reforma protestante não alterou o dogma cristão que
aceita a Bíblia como mensagem divina, mas exigiu o direito de traduzir a Bíblia
a qualquer idioma e de tornar os textos acessíveis aos fieis, evitando assim os
abusos daqueles que sempre exerceram o papel de intermediários entre Deus e os
homens. Todavia, mesmo tendo acesso à Bíblia em português, o fenômeno da
“terceirização da fé” não foi extinto, e parte disso se deve à complexidade das
traduções brasileiras, e à má formação básica dos leitores.
Atualmente
há uma tendência por se produzir novas traduções que aproximam a linguagem do
texto bíblico àquela usada pelos leitores. Hoje, por exemplo, os brasileiros
raramente conjugam corretamente os verbos em segunda pessoa, e já existem
versões que modificaram o texto bíblico no mesmo sentido. Mas esta notícia não
é tão boa quanto pode parecer; ao se produzir uma versão deste tipo (partindo
do princípio da equivalência dinâmica), os tradutores buscam substituir conteúdos
que são ininteligíveis no texto grego e hebraico, e atualizar algumas expressões;
lidando assim com o texto, os tradutores ficam mais livres para transformar o
texto, impondo nele suas próprias leituras, e por vezes, suas afirmações
dogmáticas. Daí, frases que parecem erradas são transformadas em outras, e
pontos que possivelmente refletem religiosidades politeístas são
cristianizados.
Como
vemos, não temos mesmo uma versão ideal de Bíblia, e nem poderemos ter.
Continuarão surgindo novas traduções, com as quais, o estudioso deve lidar
conjuntamente. Logicamente, é sempre preferível analisar as narrativas bíblicas
a partir dos idiomas originais, o que ao menos eliminam uma parte do problema.
Enfim, temos novos motivos para evitar leituras dogmáticas, incentivos para
procurar ler a Bíblia criticamente; está indicado aqui um caminho para aqueles
que desejam utilizar a Bíblia como de partida para o discurso teológico.
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