segunda-feira, 4 de junho de 2012

A BÍBLIA E AS MITOLOGIAS: ANJOS, MULHERES E GIGANTES (Parte 3)


Seguiremos com nosso estudo sobre a teologia mítica a partir de Gênesis, passando agora para uma enigmática passagem do capítulo 6. Façamos a leitura pausadamente:
E aconteceu que, como os homens começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si mulheres de todas as que escolheram. [...] Havia, naqueles dias, gigantes na terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os varões de fama.
Nestas linhas vemos que os homens haviam se multiplicado e que os “filhos de Deus” ficaram atraídos pela formosura das mulheres. É verdade que é enigmática essa designação “filhos de Deus”, mas veremos adiante que se trata de anjos, seres celestiais que não possuem a mesma natureza que os homens. Em todo caso, ele desceram à terra e tomaram mulheres humanas para si, gerando filhos de constituição híbrida, que são comparados a “gigantes”, seres superiores aos homens aos quais se atribui feitos “heroicos” do passado.
Então, o mito parece nos contar, numa versão monoteísta, que outros seres celestiais não chamados deuses, existiam e agiam por conta própria. De certa forma, eles desrespeitaram a divisão originalmente criada entre céus e terra por conta de seus desejos sexuais, e o resultado foi uma “deformação” na ordem criada, uma imperfeição, um resultado não previsto. Tais “deuses” ou anjos, como vemos, são sexuados, e não estão permanentemente servindo com perfeição a Deus, o quer dizer que este mito traz elementos muito distantes do imaginário cristão sobre os seres angelicais.
Há um outro detalhe que merece atenção. O mito fala de uma iniciativa aparentemente proibida dos anjos, mas acaba por atribuir a ação deles às mulheres formosas. Isso levaria muitas gerações de leitores a julgar toda forma de vaidade feminina como “pecado”. Há até um texto bastante estranho no Novo Testamento que talvez faça alguma referência a essa ideia. O apóstolo Paulo, falando sobre a conduta das mulheres, escreveu certa vez: “Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça sinal de poderio, por causa dos anjos” (1Coríntios 11.10). Parece estar implícita a ideia de que a vaidade feminina pode atrair a atenção de anjos, devendo ser evitada.
Na sequência da leitura temos:
E viu o SENHOR que a maldade do homem se multiplicara sobre a terra e que toda imaginação dos pensamentos de seu coração era só má continuamente.  Então, arrependeu-se o SENHOR de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu coração.  E disse o SENHOR: Destruirei, de sobre a face da terra, o homem que criei, desde o homem até ao animal, até ao réptil e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.
Geralmente, quando leem este texto que inicia a narrativa mitológica do dilúvio, os cristãos começam deste ponto no versículo 5, deixando de fora aqueles quatro versículos que lemos como passagens enigmáticas e desligadas do contexto literário. Todavia, a “maldade” que agora ameaça a existência humana parece estar ligada àquela “invasão” dos seres celestiais que contaminaram a terra. Se essa for uma leitura correta, podemos dizer que temos um mito que nos conta como o mundo pode ter sido maculado.
Mas estas linhas bíblicas são deveras muito lacunares. A narrativa não nos conta muita coisa, e por isso mesmo esse texto ganhou interpretações muito contraditórias, nascidas mesmo a partir de ideias mais modernas que já estava bem firmada nas leituras dogmáticas da igreja cristã. Contudo, hoje a leitura deste texto bíblico foi melhor esclarecida a partir do estudo de um texto extracanônico cada vez mais conhecido: trata-se do livro de 1Enoque, também conhecido como Apocalipse Etíope de Enoque. Neste livro que hoje é um famoso representante da apocalíptica judaica, há uma narrativa muito semelhante àquela que lemos em Gênesis 6, cuja versão deve datar de poucos séculos a.C. (Isaac, 1983, p. 6-7). Esta é uma versão mais elaborada, mais longa, e pode mesmo explicar algumas das lacunas deixadas na versão de Gênesis. Abaixo, vamos começar sua leitura de 1Enoque a partir do capítulo VI, tendo porém, que abreviar o texto nalguns momentos por conta de seu tamanho:
Quando outrora aumentou o número dos filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “Vamos tomar mulheres dentre as filhas dos homens e gerar filhos!” [...]

A relação entre os dois livros não poderia ser mais evidente. Esta relação não precisa ser necessariamente intertextual, isto é, pode até ser que eles tenham nascidos em séculos diferentes, lugares diferentes, e que um autor não conhecesse a literatura do outro. Isso se caracterizaria como uma relação interdiscursiva, onde este mito de conhecimento popular circularia em narrativas de múltiplas versões, preservadas e transmitidas oralmente, fazendo parte da cultura judaica de maneira ampla. Mas a versão de 1Enoque mostra-se mais completa que a de Gênesis, e confirma alguns palpites feitos a partir da leitura anterior. Vejamos nos recortes abaixo, como muitas das práticas já conhecidas no tempo da redação do mito realmente, que inclusive eram reprovadas pelo autor, tiveram sua origem ligada a esses anjos maus:
Todos os demais que estavam com eles tomaram mulheres, e cada um escolheu uma para si. Então começaram a frequentá-las e a profanar-se com elas. E eles ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e feitiços, e familiarizavam-nas com ervas e raízes. [...]
Azazel ensinou aos homens a confecção de espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo os seus olhos para os metais e para a maneira de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos diversos, o uso dos cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de pedras preciosas e a arte das tintas.
E assim grassava uma grande impiedade; eles promoviam a prostituição, conduziam aos excessos e eram corruptos em todos os sentidos. Semjaza ensinava os esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a dissipação dos esconjuros, Barakijal a astrologia, Kokabel a ciência das constelações, Ezekeel a observação das nuvens, Arakiel os sinais da terra, Samsiel os sinais do sol e Sariel as fases da sua.
Vemos a interpretação negativa que se dá à guerra, às religiões que são chamadas de “mágicas”, isto é, esotéricas, astrológicas, mais místicas do que a adotada por este enunciador. Também vemos muitos hábitos femininos sendo reprovados, chamados de bruxaria. O uso de “ervas e raízes”, talvez para fins religiosos medicinais, está condenado no texto; depois, também algumas espécies de maquiagens e adornos de pedras preciosas. Isso parece confirmar nosso palpite de que a vaidade feminina era condenada, e aquele texto de Paulo que citamos deve se inserir neste contexto argumentativo.
Entrementes elas engravidaram e deram à luz a gigantes de 3.000 côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las. Também começaram a atacar os pássaros, os animais selvagens, os répteis e os peixes, rasgando com os dentes as suas carnes e bebendo o seu sangue. Então a terra clamou contra os monstros.
Aqui fica mais clara nossa leitura de Gênesis, de que foi por consequência da invasão dos anjos, e origem da raça híbrida que eles chamam de gigantes, que a existência humana fica ameaçada. Vejamos a seguir, como esta intriga conduz a história até o dilúvio:
Quando os homens se sentiram prestes a serem aniquilados levantaram um grande clamor, e seus gritos chegaram ao céu [...] Então Michael, Uriel, Raphael e Gabriel olharam do alto do céu e viram a quantidade de sangue derramado sobre a terra e todas as desgraças que sobrevieram [...]
Então o Altíssimo, o Santo, o Grande, tomou a palavra e enviou Uriel ao filho de Lamech, com a ordem seguinte: “Dize-lhes, em meu nome: ‘Esconde-te’, e anuncia-lhe o fim próximo! Pois o mundo inteiro será destruído; um dilúvio cobrirá toda a terra e aniquilará tudo o que sobre ela existe. Comunica-lhe que ele poderá salvar-se, e que seus descendentes serão mantidos por todas as gerações do mundo!”
E a Raphael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés, e lança-o nas trevas! [...] E a Gabriel disse o Senhor: “Levanta a guerra entre os bastardos, os monstros, os filhos das prostituídas e extirpa-os do meio dos homens, juntamente com todos os filhos dos Guardiões! [...] A Michael disse o Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se misturaram com as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas!
O “filho de Lamech” é Noé narrativa bíblica (Gn 5.28-29), e aqui ele também é avisado do dilúvio para que por meio de sua família a raça humana fosse preservada. Mais que um dilúvio, era necessário punir os seres celestiais que causaram a desordem, e por isso uma batalha angelical precisava acontecer, pelo que alguns anjos são encarregados de destruir os “gigantes” e punir os rebeldes.
Lembrando do que lemos nos mitos da criação, entendemos que a separação entre céus e terra é uma maneira de manter a ordem do cosmos. Os homens não podem subir e nem os seres celestiais descer. Mas o imaginário religioso, claro, vai criar exceções a esta regra geralmente aceita. Uma delas é a do próprio Enoque, personagem que dá nome ao livro apocalíptico e pseudoepigráfico que lemos, e que aparece rapidamente em Gênesis 5.21-23, quando é “arrebatado” ao céu, dando margem para muita imaginação religiosa. Os anjos também não podem descer, pois o contato entre os dois polos da criação é profanador; assim, a não ser que haja um consentimento divino, toda descida desses seres à terra constitui-se num ato de rebeldia, que traz consequências. Teologicamente falando, podemos ver que o imaginário religioso destes textos é contrário às práticas místicas, às bruxarias, aos feitiços... todo tipo de prática que traz para o nosso mundo algum tipo de conhecimento celestial é condenado. Ele reconhece a existência desses fenômenos, não diz que são farsas o fantasias, mas os teme, pensa que não são controláveis, que são perigosos, e por meio de ameaças míticas pretende regular a religião. Paradoxalmente, encontramos um mito que quer afastar os homens das experiências religiosas, que explica a existência de certos males através dessa interpretação racional que faz de religiosidades alheias. Temos um embate real e ainda hoje observável em diferentes formas de religiosidades, e como não podia deixar de ser, os argumentos míticos são os únicos possíveis nessas discussões.

4 comentários:

João Queiroz disse...

E ai Anderson, interessante esse texto.

Anderson de Oliveira Lima disse...

João, que bom que continua acompanhando minhas leituras. Pra você e para os outros leitores que gostarem do tema, indico a leitura de uma dissertação de mestrado de um amigo, o Kenner, que conhece bem mais sobre a tradição de Enoque do que eu. Veja o link abaixo, onde podemos baixar o texto dele em PDF:

http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes[]=916&processar=Processar

Unknown disse...

em primeiro lugar temos que ter uma definiçao detalhada do que é um anjo.e espiritual? e material? e corporeo?e incorporeo?pode engravidar uma mulher? qual o seu DNA?possui sistema reprodutor? porque os filhos nasceram gigantes? de onde vem essa herança genetica? eram os anjos gigantes? se sim como seria a relaçao de uma mulher com um gigante? a mulher pode engravidar de um ser de especie diferente?

Anônimo disse...

aff nossa como gostaria de saber dessas respostas misael!