sexta-feira, 15 de junho de 2012

O JEJUM E OS DOIS TEMPOS: PROPONDO SOLUÇÕES PARA UM TEXTO DIFÍCIL (MATEUS 9.14-17)


Com frequência textos bíblicos que já lemos dezenas de vezes acabam, num dia qualquer, nos deixando conhecê-los de uma maneira nova. Isso me aconteceu ontem, enquanto lia o Evangelho de Mateus com meus companheiros de estudo do ICEC. Esta postagem traz o resultado essa nova leitura, e propõe soluções que eu mesmo não conhecia para um texto que geralmente não é bem compreendido. Propor novas soluções interpretativas para textos difíceis é uma responsabilidade que nos convida.

O texto dá continuidade à discussão sobre a dignidade dos discípulos de Jesus, que se dava nos versículos anteriores. Foi demonstrado que Jesus escolhia discípulos dentre grupos marginalizados, convida um coletor de impostos para ser um apóstolo (9.9), e tinha comunhão com pessoas que os religiosos em geral condenavam (9.10-13). O Evangelho de Mateus então passa para a discussão sobre o jejum (v. 14-17), que não trata tanto do jejum em si, tema que já foi abordado com mais detalhes em Mateus 6.16-18, mas do modo de vida praticado pelos seguidores de Jesus, o que nos faz lê-los como continuidade ao tema anterior.
O tema é introduzido pela pergunta dos discípulos de João, que são um “personagem coletivo” que representa uma forma de religiosidade distinta. Eles querem saber por qual razão Jesus e os discípulos não jejuam, o que não quer dizer que o evangelho seja contrário ao jejum (v. 14). Os seguidores de Jesus são comparados aos próprios discípulos de João e aos fariseus, e é bem possível que essa resposta tenha uma motivação histórica, isto é, procurava explicar uma contradição real que fora notada entre a prática religiosa dos seguidores de Jesus da geração mateana (anos 80 a 90 d.C. aproximadamente), e a conduta que teria sido própria de Jesus e seus primeiros discípulos.
Jesus responde aos que o questionam com uma metáfora (v. 15), propondo dois tempos distintos, dois personagens, e duas expressões de sentimentos através de ações. Os tempos colocados são: o “durante o casamento”, e o “depois do casamento”. Os personagens apresentados na metáfora são: o “noivo” e os “convidados do noivo”. E as expressões de sentimentos opostos são a “alegria”, própria do primeiro tempo em que a festa de casamento ainda acontece e o noivo está entre os convidados, e o sentimento de “tristeza”, que convém ao tempo em que o noivo já não está com eles e a festa está terminada. Deixando a metáfora e voltando ao tempo da narrativa, Jesus então fala de seu próprio futuro dizendo que ele, como o noivo da metáfora, não estaria com seus discípulos no futuro. Assim, entendemos que os dois tempos aos quais ele refere são o do ministério de Jesus e o tempo posterior à sua morte, quando sua presença física já não seria experimentada. Se Jesus é o noivo, os discípulos são os convidados, e se os dias de Jesus são dias de alegria e festa, o tempo posterior seria de tristeza e jejum.
Mas a leitura não fica mais fácil depois disso. Nos versículos seguintes (v. 16-17) temos dois ditos populares cujo entendimento é difícil. Eles tratam de questões do cotidiano do leitor implícito, de peculiaridades sobre costura, tecidos e vinhos, e nós dificilmente compreendemos o que esses elementos realmente significam a não ser que nos empenhemos em pesquisas e confiemos na opinião de outros autores. A falta de clareza dos signos para os leitores modernos cria verdadeiras lacunas no discurso, as quais que são preenchidas com facilidade pela imaginação. Por isso mesmo esses dois versículos costumam ser lidos alegoricamente e aplicados a diversos contextos diferentes e distantes àquele que o próprio texto os quer aplicar. Ao menos sabemos que a leitura desses dois ditos está condicionada aos versículos anteriores e à metáfora do casamento, e tanto lá quanto aqui a questão da oposição entre dois tempos distintos e dos respectivos comportamentos permanece. Com isso, podemos dizer com alguma segurança que a perícope toda, que une essas unidades textuais de provável origem independente, nos quer ensinar que para cada tempo temos as práticas devidas. Pensando outra vez na pergunta dos discípulos de João, diríamos que existem dois tempos em pauta, aquele em que o noivo ainda está presente, e o tempo de sua ausência. Analogicamente, a resposta de Jesus antecipa sua morte e diz que a vida dos discípulos também pode ser dividida em dois tempos, o tempo com Jesus, e o tempo sem Jesus. Para cada uma dessas fases há condutas ideais, ilustradas pelos exemplos dos tecidos e vinhos novos e velhos, e daí entendemos que a alegria era própria dos dias do ministério de Jesus, enquanto que o jejum e a tristeza seriam naturais depois dele.
Assim, o texto até afirma que Jesus e seus discípulos não jejuavam, mas dá legitimidade ao jejum que já devia ser praticado entre os discípulos da geração de Mateus. Um erro comum dos leitores é interpretar erroneamente os dois tempos, e pensar, por exemplo, que os tempos dos tecidos e vinhos velhos e novos se aplicam ao tempo da Lei e ao tempo da graça, ao tempo do Antigo e Novo Testamentos, ou ao tempo do judaísmo e do cristianismo. Nada disso é correto, pois no texto os tempos que importam estão indicados, e são os do ministério de Jesus, e o da “igreja” sem a presença física de Jesus.

Antes de encerrarmos, deixe-me apenas fazer algumas observações sobre a imagem que usei para ilustrar o texto, como um anexo. Trata-se do evangelista Mateus segundo a leitura de Rembrandt, como o próprio título do quadro diz. Como logo vemos, Rembrandt não era um biblista, aceitou a tradição não atestada de que o apóstolo Mateus era o autor do evangelho, e imaginou este Mateus como um homem sério, escrevendo num livro cujo formato nem existia na época, sentado numa escrivaninha medieval. O autor pintado parece surpreso, olha para lugar nenhum como quem tem a mente ocupada com pensamentos internos, traz uma mão na pena, para a qual não olha, e outra na região do pescoço, como que nos mostrando que algo acontecia com sua própria fala. Realmente, segundo a imagem a voz de Mateus não era de Mateus, mas de um anjo, que está visível na pintura, mas que parece ser invisível para o próprio Mateus no quadro. Este anjo, cuja aparência é tradicional, a de um rapaz jovem com cabelos cacheados, fala ao ouvido de Mateus, provavelmente o auxiliando no processo composicional. Ou seja, a mensagem central da obra de Rembrandt é a de que o Evangelho de Mateus era um livro de inspiração sobre-humana.

Um comentário:

Anônimo disse...

Foi muito boa esta aula ontem, para o crescimento espiritual e acadêmico, abçs.
Valderi