Faremos agora
novas leituras, e o tema dessas leituras é a religiosidade sacrificial. Vamos estudar
fragmentos textuais que possam nos oferecer alguma compreensão sobre a lógica e
a teologia daquelas formas de religiosidade que têm, como elemento central do culto,
o sacrifício. A primeira leitura é a de um texto longo de Levíticos capítulo 16, que trata de um
ritual sacrificial do antigo Israel, e que acabou por dar origem a uma tradição
popular. Este é o texto que nos fala do “bode expiatório”:
2 Disse,
pois, o SENHOR a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em
todo o tempo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a
arca, para que não morra; porque eu apareço na nuvem sobre o propiciatório.
É necessário fazer algumas considerações para que leitores não
experientes compreendam o texto. Primeiro, vemos que todo o texto é narrado como
se fosse uma coleção de detalhadas instruções divinas dadas a Moisés. Este personagem,
famoso nos mitos de Israel como nação, é aquele que teria recebido de Deus, em suas
experiências místicas no alto de uma montanha, os “dez mandamentos”. O nome de Moisés
se tornou a autoridade legislativa do povo judeu, e por isso, o texto usa essa autoridade
para que Moisés empreste sua autoridade ao conteúdo.
Arão é na narrativa bíblica irmão de Moisés, e foi o escolhido
por Deus (ele e sua descendência) para o serviço sacerdotal. Neste Israel idealizado
na literatura, o ofício sacerdotal que era sagrado deveria sempre ser exercido pela
mesma família, exigência que não pôde ser seguida sempre, em parte porque a própria
religiosidade sacrificial centrada em templos e altares não existiu em todas épocas,
ou porque dominadores estrangeiros impuseram outras leis para a eleição de sacerdotes.
Então, o que temos aqui são instruções sobre parte do serviço
sacerdotal. Todavia, o texto se utiliza de um recurso literário que chamamos de
analepse (Marguerat; Bourquin, 2009, p. 112-113), e constrói a narrativa
de maneira anacrônica, num tempo passado em relação ao tempo do autor. Ou seja,
o texto não foi realmente escrito no tempo em que os fatos narrados acontecem, se
é que aconteceram. Assim, Moisés e Arão já eram personagens lendários do passado
judaico quando alguém os emprega como personagens para elaborar por escrito um documento
que regule a atividade sacerdotal. Enfim, o narrador é Deus, é ele quem fala no
texto. Porém, esta voz teria chegado aos nossos ouvidos através da intermediação
de Moisés. Vamos agora às instruções propriamente ditas:
Lemos naquele primeiro versículos que Arão não deveria entrar
no santuário todo tempo. Este santuário é um lugar específico localizado nalgum
templo, ou no “Tabernáculo” neste caso, que era um templo ambulante ideologicamente
construído pelas histórias bíblicas. O que nos importa é que este santuário, como
lugar de contato entre o humano e sagrado, não pode ser um lugar comum. Assim, mesmo
o sacerdote só deve entrar lá nas ocasiões certas, e isso para que não morra. O
próprio Deus judeu aparecia naquele lugar, e sua presença era insuportável para
os homens; era preciso uma permissão especial para entrar no lugar santo.
Outro detalhe interessante é que Deus aparecia na nuvem sobre
o propiciatório. Ali havia um objeto destinado ao culto, o propiciatório. Devia
ser algo como um altar para se depositar oferendas. Também havia uma arca, que segundo
a tradição bíblica, tinha em seu interior as tábuas com a lei que Deus dera a Moisés.
Estes objetos sagrados eram potencializadores da experiência religiosa, eram facilitadores
do contato místico, costume ainda muito presente em diferentes formas de religião.
E Deus estava eventualmente por ali fisicamente, sob a forma de uma nuvem, que talvez
seja a fumaça dos incensos aromáticos que ali eram queimados constantemente.
3 Com isto
Arão entrará no santuário: com um novilho para expiação do pecado e um carneiro
para holocausto. 4 Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá
ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho, e se
cobrirá com uma mitra de linho: estas são vestes santas; por isso, banhará a
sua carne na água e as vestirá. 5 E da congregação dos filhos de
Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e um carneiro para holocausto.
Neste trecho nós vemos a descrição da roupa de Arão. É impossível
explicar porque uma cultura antiga como essa adotou exatamente essas peças e esses
tecidos; o texto não explica a origem a não ser como ordem pronta da divindade.
Arão deveria se banhar também, e rituais de banho e purificações desse tipo são
muito antigos. É bem provável que tenham nascido quando questões de higiene pessoal
começaram a ser consideradas necessárias para o bem comunitário, mas como era de
se esperar, as justificativas para exigir “pureza” são sempre religiosas, míticas,
e não médicas como hoje gostaríamos.
Agora atentemos para os animais exigidos para os rituais sacrificiais.
Eles estão listados separadamente, confusão talvez causada por algum problema nas
reedições pelas quais o texto pode ter passado. Eles são: Um novilho para expiação
do pecado, isto é, um animal que seria oferecido para agradar a divindade pedindo
o perdão; um carneiro para o holocausto, uma oferta específica, em que todo o animal
era queimado no altar, não restando nenhuma parte para as comuns refeições comunitárias
religiosas; e dois bodes também para expiação de pecados.
6 Depois,
Arão oferecerá o novilho da oferta pela expiação, que será para ele; e fará
expiação por si e pela sua casa.
O primeiro sacrifício é o do novilho, morto no lugar sagrado para
purificação de pecados do próprio sacerdote e de sua família. Isso habilita o sacerdote
a ter seu contato com a divindade e a interceder pelo povo.
7 Também
tomará ambos os bodes e os porá perante o SENHOR, à porta da tenda da
congregação. 8 E Arão lançará sortes sobre os dois bodes: uma sorte
pelo SENHOR e a outra sorte pelo bode emissário. 9 Então, Arão fará
chegar o bode sobre o qual cair a sorte pelo SENHOR e o oferecerá para expiação
do pecado. 10 Mas o bode
sobre que cair a sorte para ser bode emissário apresentar-se-á vivo perante o
SENHOR, para fazer expiação com ele, para enviá-lo ao deserto como bode
emissário [para Azazel].
Neste trecho lemos sobre a função dos dois bodes. Arão os leva
até a entrada do templo ou tenda, e lança sorte sobre eles, quer dizer, faz uma
espécie de sorteio, destinando um para seu Deus e outro para Azazel. Algumas traduções
não tracem o nome próprio Azazel, preferindo transformá-lo simplesmente em “bode
emissário”, e é claro que as opções religiosas dos tradutores determinam suas escolhas
em casos assim (Toorn (et. al.), 1999, p. 128-131). Aqui estamos diante de um problema
redacional, onde possivelmente se misturaram tradições religiosas de uma espécie
de divindade do deserto e leituras mais recentes que não parecem admitir a existência
desse deus. Sem querer nos aprofundar no tema, nos parece que enquanto um bode é
sacrificado para Javé, o outro é enviado como oferta a um outro tipo de divindade
que não habita no lugar sagrado, mas no deserto, e seja como for, a ideia central
é a de que certas transgressões não são suficientemente apagadas nos sacrifícios,
e precisam desse outro recurso expiatório, que talvez seja mesmo uma herança religiosa
muito antiga vinda de alguma cultura do norte da Síria, como alegam alguns comentaristas.
Continuemos a leitura alguns versículos a frente:
15 Depois,
degolará o bode da oferta pela expiação, que será para o povo, e trará o seu
sangue para dentro do véu; e fará com o seu sangue como fez com o sangue do
novilho, e o espargirá sobre o propiciatório e perante a face do propiciatório.
16 Assim, fará expiação pelo santuário por causa das imundícias dos
filhos de Israel e das suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e,
assim, fará para a tenda da congregação, que mora com eles no meio das suas
imundícias. 17 E nenhum homem estará na tenda da congregação, quando
ele entrar a fazer propiciação no santuário, até que ele saia; assim, fará
expiação por si mesmo, e pela sua casa, e por toda a congregação de Israel.
O bode sacrificado oferece seu sangue ao sacerdote, que deverá
aspergi-lo sobre o altar e o próprio santuário. Tudo é considerado impuro, tanto
pessoas como objetos, e é por meio do sangue desse animal que eles passam a considerar
purificado o ambiente e a sociedade. O mais curioso é o que está por vir, o ritual
que se fazia com o segundo bode:
20
Havendo, pois, acabado de expiar o santuário, e a tenda da congregação, e o
altar, então, fará chegar o bode vivo. 21 E Arão porá ambas as mãos
sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confessará todas as iniquidades dos
filhos de Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados;
e os porá sobre a cabeça do bode e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um homem
designado para isso. 22 Assim, aquele bode levará sobre si todas as
iniquidades deles à terra solitária; e o homem enviará o bode ao deserto.
O sacerdote faz uma espécie de transmissão das iniquidades do
povo para o bode através da imposição de mãos e confissão. Alguém pega o bode carregado
com os pecados, e o conduz ao deserto, talvez como oferta àquele Azazel. Importante
é que esse bode leva sobre si todos os crimes, é considerado naquele momento o único
pecador, e deve ser afastado da comunidade. No final de todo o ritual, são feitos
novos banhos de purificação daqueles que tiveram contato com os animais:
23 Depois,
Arão virá à tenda da congregação, e despirá as vestes de linho, que havia
vestido quando entrara no santuário, e ali as deixará. 24 E banhará
a sua carne em água no lugar santo e vestirá as suas vestes; então, sairá, e
preparará o seu holocausto e o holocausto do povo, e fará expiação por si e
pelo povo. 25 Também queimará a gordura da oferta pela expiação do
pecado sobre o altar. 26 E aquele que tiver levado o bode (que era
bode emissário) lavará as suas vestes e banhará a sua carne em água; e, depois,
entrará no arraial [...] 29 E isto vos será por estatuto perpétuo:
no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis,
nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. 30 Porque,
naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis purificados
de todos os vossos pecados, perante o SENHOR. 31 É um sábado de
descanso para vós, e afligireis a vossa alma; isto é estatuto perpétuo.
O narrador então abandona as descrições específicas e passa às
gerais, estabelecendo a data anual deste ritual, fazendo dele um feriado nacional
e religioso.
Por fim, a leitura nos aproximou um pouco de uma forma de religião
sacrificial. Há uma teologia implícita, a de que existe um Deus que não tolera o
pecado, as transgressões, as impurezas... Esse Deus é, a princípio, uma ameaça constante,
e precisa ser aplacado por meio de alguma ação propiciatória. Essa ideia de um Deus
ameaçador é típica da religiosidade antiga, onde o mal em suas múltiplas formas
era atribuído às divindades miticamente. Mais difícil é entender a origem da lógica
sacrificial, que pressupõe que Deus se agrada do sacrifício de animais. De alguma
forma, entende-se que o mal deste mundo precisa ser punido, eliminado, e talvez
o sacrifício seja uma maneira de colocar outra vida no alvo divino, de forma que
os reais pecadores sejam poupados.
Não há, nesta lógica sacrificial, o perdão divino verdadeiro.
Há sempre a punição, algum sangue que é derramado para que a ira divina seja aplacada.
O bode expiatório não possui um papel central no texto que lemos, mas assumiu na
tradição popular um papel importante. Falamos de “bodes expiatórios” quando queremos
nos referir a vítimas escolhidas em lugar de outras que na verdade também merecem
punição. A religião sacrificial representada por este texto expressa, portanto,
uma concepção teológica que foi superada ou revista pelo cristianismo, que interpretou
Jesus como uma bode expiatório, o “Cordeiro de Deus”. Assim, partindo da teologia
sacrificial, o cristianismo aboliu o sacrifício contínuo de animais alegando que
Jesus foi o perfeito e definitivo sacrifício. No judaísmo, a lógica sacrificial
também foi perdida quando o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos em 70
d.C. Neste período emergiu um novo tipo de judaísmo, herdeiro do judaísmo farisaico,
que passou a cultuar seu Deus fora dos ambientes sagrados e por meio da obediência
às leis. Assim, o judaísmo rabínico que surgiria nos próximos séculos deu grande
ênfase à literatura religiosa, substituindo altares e sacerdotes por sinagogas e
escribas.
Também notamos quão fundamental é a pessoa do sacerdote neste
tipo de religiosidade. Ele deve ser especial para que seja considerado apto para
interceder junto a um Deus irado pelos homens culpados, e por isso todo sacerdócio
se fundamenta em algum argumento religioso que dá legitimidade à sua função. Todavia,
ainda que o cristianismo e o judaísmo tenham abandonado a religiosidade sacrificial
que este texto de Levíticos nos mostrou, a tradição sacerdotal não morreu nessas
religiões. Por muitos motivos os “intercessores” continuaram existindo, seja como
mestres, como intérpretes legítimos das leis escritas, como condutores dos novos
tipos de rituais, ou como administradores das religiões institucionalizadas.
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