terça-feira, 12 de junho de 2012

O BODE EXPIATÓRIO DE LEVÍTICOS: RELIGIOSIDADE SACRIFICIAL


Faremos agora novas leituras, e o tema dessas leituras é a religiosidade sacrificial. Vamos estudar fragmentos textuais que possam nos oferecer alguma compreensão sobre a lógica e a teologia daquelas formas de religiosidade que têm, como elemento central do culto, o sacrifício. A primeira leitura é a de um texto longo de Levíticos capítulo 16, que trata de um ritual sacrificial do antigo Israel, e que acabou por dar origem a uma tradição popular. Este é o texto que nos fala do “bode expiatório”:
2 Disse, pois, o SENHOR a Moisés: Dize a Arão, teu irmão, que não entre no santuário em todo o tempo, para dentro do véu, diante do propiciatório que está sobre a arca, para que não morra; porque eu apareço na nuvem sobre o propiciatório.

É necessário fazer algumas considerações para que leitores não experientes compreendam o texto. Primeiro, vemos que todo o texto é narrado como se fosse uma coleção de detalhadas instruções divinas dadas a Moisés. Este personagem, famoso nos mitos de Israel como nação, é aquele que teria recebido de Deus, em suas experiências místicas no alto de uma montanha, os “dez mandamentos”. O nome de Moisés se tornou a autoridade legislativa do povo judeu, e por isso, o texto usa essa autoridade para que Moisés empreste sua autoridade ao conteúdo.
Arão é na narrativa bíblica irmão de Moisés, e foi o escolhido por Deus (ele e sua descendência) para o serviço sacerdotal. Neste Israel idealizado na literatura, o ofício sacerdotal que era sagrado deveria sempre ser exercido pela mesma família, exigência que não pôde ser seguida sempre, em parte porque a própria religiosidade sacrificial centrada em templos e altares não existiu em todas épocas, ou porque dominadores estrangeiros impuseram outras leis para a eleição de sacerdotes.
Então, o que temos aqui são instruções sobre parte do serviço sacerdotal. Todavia, o texto se utiliza de um recurso literário que chamamos de analepse (Marguerat; Bourquin, 2009, p. 112-113), e constrói a narrativa de maneira anacrônica, num tempo passado em relação ao tempo do autor. Ou seja, o texto não foi realmente escrito no tempo em que os fatos narrados acontecem, se é que aconteceram. Assim, Moisés e Arão já eram personagens lendários do passado judaico quando alguém os emprega como personagens para elaborar por escrito um documento que regule a atividade sacerdotal. Enfim, o narrador é Deus, é ele quem fala no texto. Porém, esta voz teria chegado aos nossos ouvidos através da intermediação de Moisés. Vamos agora às instruções propriamente ditas:
Lemos naquele primeiro versículos que Arão não deveria entrar no santuário todo tempo. Este santuário é um lugar específico localizado nalgum templo, ou no “Tabernáculo” neste caso, que era um templo ambulante ideologicamente construído pelas histórias bíblicas. O que nos importa é que este santuário, como lugar de contato entre o humano e sagrado, não pode ser um lugar comum. Assim, mesmo o sacerdote só deve entrar lá nas ocasiões certas, e isso para que não morra. O próprio Deus judeu aparecia naquele lugar, e sua presença era insuportável para os homens; era preciso uma permissão especial para entrar no lugar santo.
Outro detalhe interessante é que Deus aparecia na nuvem sobre o propiciatório. Ali havia um objeto destinado ao culto, o propiciatório. Devia ser algo como um altar para se depositar oferendas. Também havia uma arca, que segundo a tradição bíblica, tinha em seu interior as tábuas com a lei que Deus dera a Moisés. Estes objetos sagrados eram potencializadores da experiência religiosa, eram facilitadores do contato místico, costume ainda muito presente em diferentes formas de religião. E Deus estava eventualmente por ali fisicamente, sob a forma de uma nuvem, que talvez seja a fumaça dos incensos aromáticos que ali eram queimados constantemente.
3 Com isto Arão entrará no santuário: com um novilho para expiação do pecado e um carneiro para holocausto. 4 Vestirá ele a túnica santa de linho, e terá ceroulas de linho sobre a sua carne, e cingir-se-á com um cinto de linho, e se cobrirá com uma mitra de linho: estas são vestes santas; por isso, banhará a sua carne na água e as vestirá. 5 E da congregação dos filhos de Israel tomará dois bodes para expiação do pecado e um carneiro para holocausto.

Neste trecho nós vemos a descrição da roupa de Arão. É impossível explicar porque uma cultura antiga como essa adotou exatamente essas peças e esses tecidos; o texto não explica a origem a não ser como ordem pronta da divindade. Arão deveria se banhar também, e rituais de banho e purificações desse tipo são muito antigos. É bem provável que tenham nascido quando questões de higiene pessoal começaram a ser consideradas necessárias para o bem comunitário, mas como era de se esperar, as justificativas para exigir “pureza” são sempre religiosas, míticas, e não médicas como hoje gostaríamos.
Agora atentemos para os animais exigidos para os rituais sacrificiais. Eles estão listados separadamente, confusão talvez causada por algum problema nas reedições pelas quais o texto pode ter passado. Eles são: Um novilho para expiação do pecado, isto é, um animal que seria oferecido para agradar a divindade pedindo o perdão; um carneiro para o holocausto, uma oferta específica, em que todo o animal era queimado no altar, não restando nenhuma parte para as comuns refeições comunitárias religiosas; e dois bodes também para expiação de pecados.
6 Depois, Arão oferecerá o novilho da oferta pela expiação, que será para ele; e fará expiação por si e pela sua casa.

O primeiro sacrifício é o do novilho, morto no lugar sagrado para purificação de pecados do próprio sacerdote e de sua família. Isso habilita o sacerdote a ter seu contato com a divindade e a interceder pelo povo.
7 Também tomará ambos os bodes e os porá perante o SENHOR, à porta da tenda da congregação. 8 E Arão lançará sortes sobre os dois bodes: uma sorte pelo SENHOR e a outra sorte pelo bode emissário. 9 Então, Arão fará chegar o bode sobre o qual cair a sorte pelo SENHOR e o oferecerá para expiação do pecado.  10 Mas o bode sobre que cair a sorte para ser bode emissário apresentar-se-á vivo perante o SENHOR, para fazer expiação com ele, para enviá-lo ao deserto como bode emissário [para Azazel].

Neste trecho lemos sobre a função dos dois bodes. Arão os leva até a entrada do templo ou tenda, e lança sorte sobre eles, quer dizer, faz uma espécie de sorteio, destinando um para seu Deus e outro para Azazel. Algumas traduções não tracem o nome próprio Azazel, preferindo transformá-lo simplesmente em “bode emissário”, e é claro que as opções religiosas dos tradutores determinam suas escolhas em casos assim (Toorn (et. al.), 1999, p. 128-131). Aqui estamos diante de um problema redacional, onde possivelmente se misturaram tradições religiosas de uma espécie de divindade do deserto e leituras mais recentes que não parecem admitir a existência desse deus. Sem querer nos aprofundar no tema, nos parece que enquanto um bode é sacrificado para Javé, o outro é enviado como oferta a um outro tipo de divindade que não habita no lugar sagrado, mas no deserto, e seja como for, a ideia central é a de que certas transgressões não são suficientemente apagadas nos sacrifícios, e precisam desse outro recurso expiatório, que talvez seja mesmo uma herança religiosa muito antiga vinda de alguma cultura do norte da Síria, como alegam alguns comentaristas. Continuemos a leitura alguns versículos a frente:
15 Depois, degolará o bode da oferta pela expiação, que será para o povo, e trará o seu sangue para dentro do véu; e fará com o seu sangue como fez com o sangue do novilho, e o espargirá sobre o propiciatório e perante a face do propiciatório. 16 Assim, fará expiação pelo santuário por causa das imundícias dos filhos de Israel e das suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e, assim, fará para a tenda da congregação, que mora com eles no meio das suas imundícias. 17 E nenhum homem estará na tenda da congregação, quando ele entrar a fazer propiciação no santuário, até que ele saia; assim, fará expiação por si mesmo, e pela sua casa, e por toda a congregação de Israel.

O bode sacrificado oferece seu sangue ao sacerdote, que deverá aspergi-lo sobre o altar e o próprio santuário. Tudo é considerado impuro, tanto pessoas como objetos, e é por meio do sangue desse animal que eles passam a considerar purificado o ambiente e a sociedade. O mais curioso é o que está por vir, o ritual que se fazia com o segundo bode:
20 Havendo, pois, acabado de expiar o santuário, e a tenda da congregação, e o altar, então, fará chegar o bode vivo. 21 E Arão porá ambas as mãos sobre a cabeça do bode vivo e sobre ele confessará todas as iniquidades dos filhos de Israel e todas as suas transgressões, segundo todos os seus pecados; e os porá sobre a cabeça do bode e enviá-lo-á ao deserto, pela mão de um homem designado para isso. 22 Assim, aquele bode levará sobre si todas as iniquidades deles à terra solitária; e o homem enviará o bode ao deserto.

O sacerdote faz uma espécie de transmissão das iniquidades do povo para o bode através da imposição de mãos e confissão. Alguém pega o bode carregado com os pecados, e o conduz ao deserto, talvez como oferta àquele Azazel. Importante é que esse bode leva sobre si todos os crimes, é considerado naquele momento o único pecador, e deve ser afastado da comunidade. No final de todo o ritual, são feitos novos banhos de purificação daqueles que tiveram contato com os animais:
23 Depois, Arão virá à tenda da congregação, e despirá as vestes de linho, que havia vestido quando entrara no santuário, e ali as deixará. 24 E banhará a sua carne em água no lugar santo e vestirá as suas vestes; então, sairá, e preparará o seu holocausto e o holocausto do povo, e fará expiação por si e pelo povo. 25 Também queimará a gordura da oferta pela expiação do pecado sobre o altar. 26 E aquele que tiver levado o bode (que era bode emissário) lavará as suas vestes e banhará a sua carne em água; e, depois, entrará no arraial [...] 29 E isto vos será por estatuto perpétuo: no sétimo mês, aos dez do mês, afligireis a vossa alma e nenhuma obra fareis, nem o natural nem o estrangeiro que peregrina entre vós. 30 Porque, naquele dia, se fará expiação por vós, para purificar-vos; e sereis purificados de todos os vossos pecados, perante o SENHOR. 31 É um sábado de descanso para vós, e afligireis a vossa alma; isto é estatuto perpétuo.

O narrador então abandona as descrições específicas e passa às gerais, estabelecendo a data anual deste ritual, fazendo dele um feriado nacional e religioso.
Por fim, a leitura nos aproximou um pouco de uma forma de religião sacrificial. Há uma teologia implícita, a de que existe um Deus que não tolera o pecado, as transgressões, as impurezas... Esse Deus é, a princípio, uma ameaça constante, e precisa ser aplacado por meio de alguma ação propiciatória. Essa ideia de um Deus ameaçador é típica da religiosidade antiga, onde o mal em suas múltiplas formas era atribuído às divindades miticamente. Mais difícil é entender a origem da lógica sacrificial, que pressupõe que Deus se agrada do sacrifício de animais. De alguma forma, entende-se que o mal deste mundo precisa ser punido, eliminado, e talvez o sacrifício seja uma maneira de colocar outra vida no alvo divino, de forma que os reais pecadores sejam poupados.
Não há, nesta lógica sacrificial, o perdão divino verdadeiro. Há sempre a punição, algum sangue que é derramado para que a ira divina seja aplacada. O bode expiatório não possui um papel central no texto que lemos, mas assumiu na tradição popular um papel importante. Falamos de “bodes expiatórios” quando queremos nos referir a vítimas escolhidas em lugar de outras que na verdade também merecem punição. A religião sacrificial representada por este texto expressa, portanto, uma concepção teológica que foi superada ou revista pelo cristianismo, que interpretou Jesus como uma bode expiatório, o “Cordeiro de Deus”. Assim, partindo da teologia sacrificial, o cristianismo aboliu o sacrifício contínuo de animais alegando que Jesus foi o perfeito e definitivo sacrifício. No judaísmo, a lógica sacrificial também foi perdida quando o Templo de Jerusalém foi destruído pelos romanos em 70 d.C. Neste período emergiu um novo tipo de judaísmo, herdeiro do judaísmo farisaico, que passou a cultuar seu Deus fora dos ambientes sagrados e por meio da obediência às leis. Assim, o judaísmo rabínico que surgiria nos próximos séculos deu grande ênfase à literatura religiosa, substituindo altares e sacerdotes por sinagogas e escribas.
Também notamos quão fundamental é a pessoa do sacerdote neste tipo de religiosidade. Ele deve ser especial para que seja considerado apto para interceder junto a um Deus irado pelos homens culpados, e por isso todo sacerdócio se fundamenta em algum argumento religioso que dá legitimidade à sua função. Todavia, ainda que o cristianismo e o judaísmo tenham abandonado a religiosidade sacrificial que este texto de Levíticos nos mostrou, a tradição sacerdotal não morreu nessas religiões. Por muitos motivos os “intercessores” continuaram existindo, seja como mestres, como intérpretes legítimos das leis escritas, como condutores dos novos tipos de rituais, ou como administradores das religiões institucionalizadas.

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