terça-feira, 20 de dezembro de 2011

EX-AMOR - SAMBA




http://www.youtube.com/watch?v=m9eKbqdIlBA&feature=youtu.be

sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

POR QUE OS CRENTES NÃO SABEM LER A BÍBLIA?

A reflexão que vos proponho já começa com um problema: o título. Quem disse que os crentes não sabem ler a Bíblia? Bem, eu disse, é minha a afirmação. Vou tentar justificar minha posição nas próximas linhas, mas pode ser que estas não sejam suficientes para alguns leitores.

Como professor de interpretação bíblica e exegeta, não tenho dúvida de que os crentes (epíteto que aplico aqui aos que crêem na própria sacralidade da Bíblia nos círculos cristãos) são maus leitores. Quando tenho o raro privilégio de ver alguém “de fora” lendo a Bíblia, noto imediatamente que a falta de fé libera o leitor para descobrir no texto sentidos muito mais ricos. Todavia, não posso negar que o prestígio que a Bíblia alcançou em nossa sociedade se deve à má leitura dos crentes. Foram eles que me imputaram o amor pelo texto bíblico, e também foram eles que afastaram e afastam os não cristãos da Bíblia, posto que quem não lê a Bíblia, pensa que a lê nos comportamentos dos crentes, que convenhamos, não é nada bíblico.

Mas tenho um motivo muito específico para evocar esta discussão hoje. Quero tentar explicar como se dá a leitura do crente empregando aqui um referencial teórico da linguística. Esta explicação não é a única, não esgota a questão, mas ao menos deve lhe acrescentar algo. Passo então à parte mais técnica deste breve ensaio, onde vamos tratar das chamadas “instâncias da enunciação”.

1 – Quem é o autor da Bíblia?

Há muito tempo criou-se algumas categorias que pretendiam distinguir devidamente os níveis ou instâncias envolvidas num ato de comunicação entre seres-humanos. Eu tenho trabalhado isso com afinco nos meus textos sobre interpretação bíblica, mas quero fornecer aqui uma espécie de resumo simplificado desta teoria. Para começar, todo ato de comunicação, seja ela por meio da fala, da escrita, da pintura ou de qualquer outra forma, sempre pressupõe dois lados. Um lado é o do indivíduo que comunica, e o outro o do que recebe a comunicação. Se eu falo ou escrevo, obviamente penso que alguém me ouve ou lê, e por isso sempre há um receptor da minha comunicação, ao menos na minha imaginação.

Contudo, as coisas são mais complexas, pois entre estes dois lados, passa a existir a comunicação ou enunciado como preferem alguns. Este é o conteúdo da comunicação, minha carta, música, quadro... Aí é importante notar que esta comunicação, depois de criada, é independente do seu autor ou leitor. Por exemplo, eu posso escrever aqui mesmo um parágrafo que não corresponde exatamente àquilo em que acredito, posso falar de mim mesmo de maneira falsa, me retratando como um personagem cheio de virtudes, ou posso falar dos meus alunos sem, contudo, expressar o que eles realmente são. Assim, o enunciado não pode nos dizer tudo sobre o comunicador ou sobre o receptor.

Para finalizar, o problema cresce quando, por meio da análise de um enunciado, tentamos recriar ou criar a personalidade do seu produtor ou de seus destinatários. Um texto pode nos dar informações sobre seu autor, mas não sabemos se estas correspondem à realidade, e por isso, no fim das contas só teremos mesmo acesso a um autor-personagem, ou autor-implícito, que só existe no nível textual, mas que pode não corresponder em nada ao real autor do texto. O mesmo ocorre com o destinatário, que até mesmo na mente do autor podia corresponder a uma imagem deturpada do destinatário real a quem ele pretendia comunicar. Chamo de leitor-implícito aquele destinatário inaginário para quem um texto quer se dirigir.

Essas instâncias da enunciação estão bem estabelecidas há séculos, mas ainda não foram assimiladas pelos leitores não especializados da Bíblia (e de qualquer outro tipo de literatura), talvez porque os teóricos ainda não conseguiram expô-las de maneira simples. Enfim, vamos ver algumas das implicações que estas informações trazem para a leitura bíblica:

1) A Bíblia é um conjunto de enunciados, e ao lermos suas páginas, não temos acesso real nem aos autores nem aos destinatários destes enunciados; daí descobrimos que nossas análises de seus textos sempre se resumem ao estudo de conteúdos que não correspondem, ou melhor, não sabemos quanto correspondem, à realidade histórica. Noutras palavras, ler a Bíblia não é ver os fatos como aconteceram (se é que aconteceram), é ler narrativas fictícias que podem ou não inspirar-se em fatos. Para o estudo da Bíblia, o melhor a fazer é dedicar-se ao seu conteúdo sem ansiedade, sem fazer relações com a história. Os eventos narrados e os personagens que atuam não precisam ter existido para que o conteúdo bíblico nos comunique sua mensagem.

2) Ignorando a necessidade de distinguir as instâncias narrativas, a tradição criou autores, leitores, e deu uma falsa historicidade a eles e aos personagens bíblicos, de modo que hoje, mais que o conteúdo dos textos, estas tradições se tornaram importantes fontes de informações para os leitores da Bíblia. Assim, antes de lermos as cartas de Paulo e as avaliarmos, somos instruídos sobre a erudição e a coragem do apóstolo.

Por isso fiz no início deste item a pergunta: quem é o autor da Bíblia? Esta pergunta é muito importante para nossa discussão, pois determina todo o entendimento que alguém pode ter dos textos. Vamos à próxima seção, onde quero demonstrar onde exatamente se encontra o erro dos crentes.

2 – A Bíblia não traz Contos de Fadas Reais

Quando um crente abre uma Bíblia, ele primeiro ignora a distância cheia de subjetividade que separa um texto de seu autor. Os textos bíblicos, mais ainda, na maioria das vezes não nos dizem nada sobre sua autoria, datação, ou mesmo em que circunstâncias foram produzidos; estas informações, quase sempre são retiradas ou da tradição cristã (que não é segura) ou de informações indiretas tiradas dos textos. Se o crente soubesse quão problemático é aplicar tais dados à leitura dos textos, os deixaria de lado e aproveitaria as narrativas como faz o descrente, mas como não sabe, apropria-se de numerosas fábulas sobre os heróicos apóstolos e profetas e então passa às leituras imaginando que os contos de fadas um dia foram reais.

E isso pode ficar pior. O leitor crente não só confia demasiadamente nos mitos sobre os personagens bíblicos como também possui uma estranha concepção de “inspiração divina” para cada palavra ali registrada. A Bíblia é a Palavra de Deus para o crente, o que infelizmente quer dizer para ele que Deus é um escritor. E se Deus é um escritor, ele deve ser o mais hábil de todos os escritores, não esquece nada, não mente, não comete erros ortográficos... O crente mesmo não sabe explicar bem como se dá essa autoria divino-humana (que neste caso são super-homens, pessoas escolhidas que também não cometeriam erros), então escolhe como lhe convém se um texto é mais divino ou humano. Quando alguém mostra ter encontrado um problema, um erro, uma contradição, ou uma informação que historicamente não se confirma, esse alguém é rebatido com um argumento religioso, e ponto final.

Outra consequência problemática dessa ideia sobre autoria é a de que as narrativas bíblicas são diferentes de todas as outras narrativas do mundo. Só as narrativas bíblicas correspondem aos fatos, posto que por motivo que ainda ignoro, a ideia que os crentes fazem de Deus não permite que ele faça brincadeiras ou conte histórias fictícias. Dizer que alguma narrativa bíblica é mítica é um pecado para o crente, mas para o resto do mundo, certamente é mais pecado dizer que as narrativas bíblicas são históricas. Bastaria lê-las como lemos qualquer outro texto da antiguidade.

O resultado inevitável da prévia e impensada aceitação desses pressupostos equivocados sobre autoria, só pode ser a má leitura de que falei desde o título. Hoje não hesito em dizer que os crentes, os que mais lêem e veneram a Bíblia, são também os que menos desfrutam da riqueza de seu conteúdo. Para o crente a Bíblia quando é lida alimenta a fé, tira-o do mundo e de alguma forma o põe em contato com o Reino de Deus. Essa espécie de experiência religiosa, mais induzida pelas doutrinas do que propriamente mística, deixa de existir quando o estudioso da Bíblia deixa de ler a Bíblia sempre por meio da interpretação dogmática da sua igreja, e deixa também de estudar através das publicações das editoras também cristãs. Não fossem aquelas asserções, leríamos a Bíblia de outra maneira, a entenderíamos melhor, e negaríamos as opressões religiosas que as pessoas aceitam passivamente.