terça-feira, 24 de julho de 2012

O(S) MITO(S) DO DILÚVIO


De Gênesis capítulos 6 a 9, nós encontramos o conjunto textual mais longo da seção mitológica das origens, que ocupa os primeiros 11 capítulos da Bíblia Hebraica. Já vimos que este sexto capítulo começa com uma versão bem resumida do chamado “Mito dos Vigilantes”, aquele que lemos em 1Enoque. O contato proibido entre anjos e seres humanos trouxera a desgraça sobre o mundo, os homens adquiriram conhecimentos maléficos que não lhes era próprio, e os gigantes já ameaçavam a existência, quando Deus decide pôr fim à raça humana e recomeçar seu projeto. Aí entra em cena o mito do dilúvio, e no versículo 8 lemos: “Noé, porém, achou graça aos olhos do SENHOR”.
Noé é o protagonista desta narrativa mítica em sua versão bíblica. Diz o texto que toda a terra estava corrompida, (6.11-12), e por isso a decisão de destruir a vida por meio de um dilúvio estava tomada (6.17). Mas Noé “andava com Deus” (6.9), e é escolhido dentre toda a espécie humana para se preservar as formas de vida que foram criadas. Ele é avisado da destruição vindoura, e Deus o instrui a construir uma arca, para onde deveria levar sua família e um casal de cada espécie animal (v. 19-20), instruções que Noé atende perfeitamente (6.13-22).
Curiosamente, no início do capítulo 7 Deus muda parcialmente as instruções. Agora Noé já não deveria levar apenas um casal de cada espécie animal (6.19-20), mas sete machos e sete fêmeas de cada (7.2-3). Essa incoerência interna geralmente é explicada como um problema resultante do processo redacional, que juntou duas versões do mesmo mito numa só narrativa. Acredita-se que na versão que exige sete machos e sete fêmeas, temos uma tradição sacerdotal, que fará Noé sacrificar alguns animais para Deus após o dilúvio, coisa que seria um problema caso ele só tivesse um casal daquela espécie.
Na versão bíblica, a numerologia é muito significativa. Além dos sete machos e sete fêmeas, depois de sete dias viria o dilúvio sobre a terra, e o dilúvio duraria quarenta dias e quarenta noites (7.4). Este hábito linguístico talvez nos sirva para mostrar que a redação do texto já conta com conceitos teológicos bem estabelecidos pelo judaísmo pós-exílico. E passados os sete dias, e tendo Noé obedecido a Deus em todas as coisas, veio o dilúvio:
10 E aconteceu que, passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. 11 No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia, se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, 12 e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites.
Aqui vale recordar alguns detalhes que vimos nos textos mitológicos lidos antes. No primeiro capítulo de Gênesis, vimos que Deus havia criado os céus e a terra, e que depois separou definitivamente estas duas faces do cosmos criado por meio de um espaço: “E fez Deus a expansão e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão” (Gn 1.7). Ali já havíamos entendido que na cosmologia desse texto, os mares da terra eram apenas parte das águas, pois também haviam águas nos céus. O dilúvio é, portanto, um retrocesso na criação, um ato que desfaz a separação entre as águas, uma eliminação temporária e controlada dos limites que mantinham as águas de cima e de baixo contidas. Assim, vemos que as chuvas eram porções pequenas de água derramadas sobre a terra quando Deus abria as janelas dos céus, e este evento natural que era tão necessário à vida agrícola, era também uma ameaça constante. Eles pensavam que estavam cercados por água, pois além das águas suspensas que podiam cair sobre suas cabeças de maneira desmedida, os mares infinitos estavam lá bem ao lado e pareciam tentar invadir a terra a todo momento. Eles também pensavam que a terra boiava sobre as águas, e prova disso são as nascentes dos rios, e a água que se podia encontrar quando se cavava um poço.
As narrativas míticas do dilúvio talvez tenham alguma origem história que não podemos comprovar, talvez tenham nascido de após algum período de inundação, mas o caso é que a importância do mito e sua proliferação se deve a outros motivos, como o medo universal da destruição pelas águas.
Quando o dilúvio acaba e, já no capítulo 8 de Gênesis, uma bonita história nos conta que Noé verificou se a terra estava seca enviando pássaros:
6 E aconteceu que, ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. 7 E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra. 8 Depois, soltou uma pomba, a ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra. 9 A pomba, porém, não achou repouso para a planta de seu pé e voltou a ele para a arca; porque as águas estavam sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e meteu-a consigo na arca. 10 E esperou ainda outros sete dias e tornou a enviar a pomba fora da arca. 11 E a pomba voltou a ele sobre a tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que as águas tinham minguado sobre a terra. 12 Então, esperou ainda outros sete dias e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele. 13 E aconteceu que, no ano seiscentos e um, no mês primeiro, no primeiro dia do mês, as águas se secaram de sobre a terra. Então, Noé tirou a cobertura da arca e olhou, e eis que a face da terra estava enxuta.
Noé, sua família e todos os animais saíram da arca e voltaram a povoar a terra, e então lemos aquela conclusão sacrificial em 8.20-22:
20 E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos sobre o altar. 21 E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz. 22 Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite não cessarão.
A ideia de que há animais limpos ou puros, e outros impuros e por isso impróprios para o sacrifício, é evidência da teologia sacrificial recente que influenciou a redação final do texto de Gênesis. Vemos que Deus se agrada do cheiro dos holocaustos, que são sacrifícios em que os animais são totalmente queimados sobre o altar. Então, nas palavras de Deus encontramos temas importantes para qualquer literatura mítica: Deus declara que o coração do homem é mau, ou seja, que a potencialidade para fazer o mal é inerente ao ser humano, mas também promete não destruir nossa espécie por conta disso. O texto assegura ao leitor que não haverá outro dilúvio, e que as estações do ano se seguirão num ciclo previsível. Isso resolve o medo universal da morte através do descontrole das águas, e oferece esperança àqueles leitores do mundo rural que dependiam da terra e das chuvas, das estações e do clima, para sobreviver.
O capítulo 9 parece ser um novo acréscimo às palavras de Deus. Na seção mais longa e importante, o texto explica o mitologicamente o “arco-íris” como sendo um sinal visível de que Deus não tornaria a enviar um dilúvio sobre a terra:
8 E falou Deus a Noé e a seus filhos com ele, dizendo: 9 E eu, eis que estabeleço o meu concerto convosco, e com a vossa semente depois de vós, 10 e com toda alma vivente, que convosco está, de aves, de reses, e de todo animal da terra convosco; desde todos que saíram da arca, até todo animal da terra. 11 E eu convosco estabeleço o meu concerto, que não será mais destruída toda carne pelas águas do dilúvio e que não haverá mais dilúvio para destruir a terra. 12 E disse Deus: Este é o sinal do concerto que ponho entre mim e vós e entre toda alma vivente, que está convosco, por gerações eternas. 13 O meu arco tenho posto na nuvem; este será por sinal do concerto entre mim e a terra. 14 E acontecerá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, aparecerá o arco nas nuvens. 15 Então, me lembrarei do meu concerto, que está entre mim e vós e ainda toda alma vivente de toda carne; e as águas não se tornarão mais em dilúvio, para destruir toda carne. 16 E estará o arco nas nuvens, e eu o verei, para me lembrar do concerto eterno entre Deus e toda alma vivente de toda carne, que está sobre a terra. 17 E disse Deus a Noé: Este é o sinal do concerto que tenho estabelecido entre mim e toda a carne que está sobre a terra.
A criação que fora abalada, a ordem que fora ameaçada, volta a ser ajustada quando novamente Deus controla as águas e manda o homem povoar e dominar a terra (9.1-3). Porém, regras mais específicas e judaicas também aparecem; uma porção interessante está contida entre os versículo 4 a 6. Primeiro temos a tipicamente judaica proibição de se comer sangue (9.4), e depois uma breve justificativa para o sacrifício de animais, que deveriam substituir o sangue humano, que era o que Deus realmente exigia (9.5). Isso pode ser um desenvolvimento de uma tradição religiosa sacrificial mais antiga, onde seres humanos eram oferecidos. Por fim, temos o interdito contra o homicídio, que diz que todo assassino deveria ser assassinado, instituindo a pena de morte como um tipo de controle social (9.6). Essa seção de pequenas unidades temáticas nos mostra o mito sendo aproveitado ao máximo para explicar questões existenciais, justificar ritualidades já existentes, inibir a violência no interior do clã.
Deixando Gênesis de lado, agora vamos ler de maneira rápida uma outra versão bem conhecida do mesmo mito. A epopeia de Gilgamesh, preservada da mitologia suméria da Mesopotâmia, traz uma conhecida versão do mito do dilúvio.[1] Gilgamesh, o protagonista da epopeia, era um ser humano que procurava a vida eterna, que queria saber o segredo dos deuses, e que em sua trajetória encontra um sujeito chamado Utnapishtim. Este último era um homem que tinha o que ele queria, que havia se juntado aos deuses e que conquistara a imortalidade. Este Utnapishtim passa a narrar para Gilgamesh sua própria aventura, e conta que foi por sobreviver ao dilúvio que ganhara a vida eterna. Para nossos interesses, é importante observar que esta versão pertence a uma cultura politeísta, e Enlil é o deus responsável pelo dilúvio, aquele que convence outras divindades, responsáveis pela ordem natural, a destruírem a humanidade por meio dessa grande tempestade:
Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana.
Mas o herói da epopeia, assim como Noé na versão bíblica, foi avisado pelo deus Ea sobre a destruição vindoura, através dessas palavras:
Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar.
A divindade o instruiu sobre as medidas da embarcação a ser construída para que pudesse sobreviver ao dilúvio. Ele obedeceu, e junto de sua família construiu o barco, que ficou pronto no sétimo dia. Também conforme as instruções, ele levou para o barco a “semente de todas as criaturas vivas”, fechou-se lá dentro, e esperou pelo dilúvio que os deuses irados trariam para destruir a vida na terra.
Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice.
O número sete é muito importante nesta narrativa mitológica, assim como é para toda a tradição bíblica. Não por coincidência, lemos que a tempestade só se acalmou no sétimo dia, e quando o barco encalhou no alto da montanha do Nisir, levaram mais sete dias até que a embarcação fosse aberta; e como acontece na versão bíblica, pássaros foram soltos a fim de se verificar se já havia alguma parte seca na terra. Quando finalmente todos puderam sair do barco, Utnapishtim fez como Noé (ou Noé fez como Utnapishtim), oferecendo um sacrifício:
Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício.
O diferente posicionamento dos deuses em relação ao dilúvio e destruição da raça humana gera então um conflito. Alguns se agradavam do sacrifício, da preservação da espécie humana, mas Enlil, o deus que elaborara o plano de destruição, se ira ao ver que o dilúvio não havia exterminado todos. Os deuses então se juntam contra Enlil, consideram-no um transgressor por ter decidido sozinho provocar tamanha destruição. O herói que superara o dilúvio, conquista agora com sua devoção expressa pelo bom sacrifício, a aprovação dos deuses, e este apreço divino pelo homem se transforma num motivo que reúne todos contra Enlil:
Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.' "Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?
A narrativa acaba abruptamente, sem que o vilão da história, Enlil, seja devidamente julgado ou punido. O que temos aqui como conclusão, é que Enlil precisa aceitar seu erro, e abençoa o herói do dilúvio e sua mulher, dando-lhes vida eterna e fazendo-os habitar na “foz dos rios”. Isso é o que Gilgamesh queria saber de Utnapishtim, como ele conquistara o privilégio divino da vida eterna.
As semelhanças entre as duas versões do mito são tantas, que muitos estudiosos já se dedicaram a explicar as relações intertextuais ou interdiscursivas. Esse não é nosso interesse, queríamos apenas fazer essa leitura panorâmica, entender a que interesses essas histórias atendiam, encontrar as dúvidas que aquelas pessoas tinham, que respostas podiam oferecer, que tipo de fé ou teologia expressavam... Enfim, nos mitos os deuses estavam no controle, e toda a realidade se explica como efeito de suas ações.


[1] Todas as citações da “Epopeia de Gilgamesh” foram extraídas da versão publicada pela editora Martins Fontes em 2001 (2ª ed.).

quarta-feira, 4 de julho de 2012

JESUS CONTRA O TEMPLO: Mateus 21.12-17


Jesus está agora em Jerusalém, cenário inédito para as suas atividades no Evangelho de Mateus. Curiosamente, a primeira ação de Jesus é ir ao Templo, símbolo da religiosidade nacional nos dias de Jesus, mas cuja forma sacrificial de culto já havia sido abandonada quando o Evangelho de Mateus foi escrito, por volta dos anos 80 e 90 EC. A Galiléia, no norte da província, havia sido o local de atuação de Jesus, onde ele conquistara uma multidão de seguidores, fama, e de onde arrebanhara seus verdadeiros discípulos. Agora, esse grupo é visitante na helenizada Jerusalém, e esta visita parece ter razão religiosa. A questão é se a motivação é positiva ou não: Jesus e seus discípulos visitam a venerada cidade santa, visitam o Templo e ficam ali para as festividades da páscoa, e tudo isso é novidade na narrativa mateana, já que a religiosidade exposta até aqui não tinha qualquer dependência em relação àquela instituição. A peregrinação e a visita talvez nos indiquem certo respeito para com tais tradições, porém, Jesus não chega discretamente, e surpreende a todos com atitudes violentas de reprovação às práticas que vê no Templo; as ações de Jesus nestes lugares são sempre críticas, e talvez a própria “subida” a Jerusalém tivesse propósitos revolucionários, expressando completa desaprovação por tudo aquilo.
No versículo 12 Jesus realmente parece agressivo como nunca, sai derrubando mesas e empurrando homens que ali vendiam, provavelmente sob permissão, animais que deviam servir para as cerimônias sacrificiais. Mateus segue o Evangelho de Marcos (Mc 11.15-18) ao citar (Mt 21.13) o versículo “construído” a partir da união artificial de Isaías 56.7, que originalmente fala dos estrangeiros que, caso aderissem às práticas religiosas judaicas seriam aceitos no Templo, e Jeremias 7.11, que falava a Judá (reino do sul) sobre a exigência para que se praticasse a “justiça” e pelo fim da adoração a outros deuses (Jr. 7.5-10), discurso de um tempo em que o monoteísmo não estava plenamente estabelecido nem mesmo em Jerusalém. Outra vez, ler esses textos só evidencia que de nada nos serve estudar os textos em seus contextos literários originais no Antigo Testamento; para os evangelistas, só importa a memória fragmentária de passagens que nesta leitura cristianizada lhes serve como confirmação da messianidade de Jesus. Neste caso, todavia, Mateus depende muito de Marcos, que parece fazer um uso ainda mais inocente dessas memórias bíblicas. Geralmente Mateus é mais criterioso, dá mais valor ao texto escrito, e faz das citações o centro da narrativa. Aqui a redação ainda é marcana, e a crítica de Jesus contra o Templo é mais importante do que os textos citados. Devemos guardar isto: o comércio praticado no Templo é reprovável, provavelmente porque a religião não deve servir como fonte de riquezas.
Marcos partia para a conclusão (Mc 11.18), mas Mateus dá sequência à narrativa, aproveita o cenário do Templo para outros conteúdos, e no versículo 14 aparecem deficientes que Jesus cura. Pode-se encontrar muitos problemas aí, mas a sequência narrativa parece ter uma lógica própria; Jesus demonstra com sua ira que aquele comércio era uma atividade imprópria para o local, e passa a curar, fazer o bem, praticar a misericórdia, e esta talvez seja a atividade considerada própria para as dependências do Templo. Isso nos lembra a cura do homem que tinha a mão atrofiada em Mt 12.9-14, onde Jesus mostra com a cura o que é apropriado para se fazer no sábado e na sinagoga. Também é notável que as ações violentas de expulsar alguns, acabou atraindo essa classe marginalizada para Jesus.
A cura dos deficientes provoca novas reações (v. 15-16). Diz o texto que as criancinhas louvavam o “filho de Davi”, o que nos amarra à perícope anterior, que narra a entrada em Jerusalém (21.1-11), e nos faz lembrar também do capítulo 18 em que as crianças são empregadas como exemplo de humildade e pequenez. Aqui, estes “pequenos” se identificam os deficientes que são curados, interpretam as curas de Jesus como um benefício feito aos seus; por outro lado, outra classe se mostra irritada, que é a dos líderes religiosos, sacerdotes e escribas. Eles não parecem dar grande atenção às curas, antes, ficam indignados por Jesus aceitar o louvor das crianças, como se isso fosse uma declaração indireta de que ele é o Messias. Jesus vai além ao citar o Salmo 8.2 em resposta aos líderes religiosos, o qual ressalta o valor do louvor das crianças, e tanto nós, os leitores, quanto os personagens (líderes religiosos), entendemos a mensagem. Diferente do que lemos nos versículos 13 e 14, onde a citação bíblica era secundária, aqui o salmo citado parece novamente determinante para toda a ação das crianças. A fala contrária dos líderes religiosos só faz destacar mais uma vez a falta de entendimento deles, que não compreendem o valor das obras de Jesus, nem são capazes de interpretar corretamente os textos do Antigo Testamento para aceitar que Jesus é o Messias que esperavam.

segunda-feira, 2 de julho de 2012

A ENTRADA DE JESUS EM JERUSALÉM: Mateus 21.1-11


A imagem acima é a leitura que Pietro Lorenzetti fez da narrativa evangélica conhecida como "Entrada Triunfal", por volta da primeira metade do século XIV EC. Este é o texto que vamos comentar nesta postagem, a partir da versão do Evangelho de Mateus.

No início do capítulo 21 de Mateus, o leitor atento pode notar o retorno de um recurso literário já usado pelo autor nos primeiros capítulos do evangelho. Nos referimos ao emprego de uma passagem do Antigo Testamento como se fosse um anúncio antecipado de eventos da vida de Jesus (21.5). O emprego dessas citações, como já vimos, quer acima de tudo legitimar o Jesus que Mateus anuncia, fazendo-o especial por ser o instrumento pelo qual Deus cumpre na terra seus planos e projetos. Citando passagens que eram lidas tradicionalmente como profecias a respeito de uma figura messiância e ligando-as à sua narrativa da vida de Jesus, Mateus está claramente fazendo este Jesus que anuncia encaixar-se no papel de Messias para si mesmo e para outros. Sabendo disso, é interessante observar que nas perícopes que giram em torno de uma citação do Antigo Testamento, é a intertextualidade que delineia a narrativa; isto é, aqui a citação é um marco, um elemento textual de forma fixada que faz com que a história contada, e nela a própria vida de Jesus, se adequem a seu conteúdo.
Essa mesma narrativa já existia em Marcos 11.1-11, que é a fonte de Mateus para os textos que estamos lendo. Mas Marcos não trazia a citação de Zacarias 9.9 que Mateus incluiu, o que nos mostra mais uma vez que o uso da profecia em associação com a vida de Jesus é uma estratégia literária da qual Mateus se utiliza com mais frequência que os demais evangelistas e de maneira própria. Marcos já apresentava sim uma citação do Salmo 148.1-2, que Mateus mantém. Isso quer dizer que estamos diante de um texto particular, que não é totalmente moldado a partir da leitura que o autor faz do Antigo Testamento, pois parte de um texto já escrito. Cabe ao leitor de Mateus entender como e porque este evangelho faz o acréscimo intertextual no texto original de Marcos, e quais as implicações dessa alteração.
Falando agora apenas do conteúdo do Evangelho de Mateus, vemos que ele cita no interior desta perícope uma passagem incompleta de Zacarias (Zc 9.9), que é apenas parte da perícope original que trata de um contexto de guerra e até menciona a Grécia (Zc 9.9-17). Notamos mais uma vez que a apropriação que o Novo Testamento faz do Antigo Testamento, seguindo uma prática comum à literatura de seu tempo, é exegeticamente reprovável. Isso, todavia, não deve nos servir como desmotivação à leitura. Temos que partir das limitações e práticas literárias do texto para compreender como o autor manuseou o material que tinha em mãos, e alcançar o seu conteúdo. Aqui, temos que guardar que o autor de Mateus tinha em mente um trecho de Zacarias que anunciava um “rei” que, aparentemente, em sua cerimônia de posse, entraria humildemente em Jerusalém montado num jumento. Tudo nos leva a crer que para determinados leitores essa passagem era um texto profético em relação ao Messias libertador de Israel, e provavelmente era apenas isso o que o autor do texto tinha em mente quando compôs a entrada de Jesus em Jerusalém a partir do Antigo Testamento.
Podemos dizer que o autor foi astuto ao recordar Zacarias e incluí-lo explicitamente na narrativa em que Jesus, chegando a Jerusalém, manda dois discípulos buscar dois jumentinhos no povoado que estava adiante (Mt 21.1-3). A profecia de Zacarias em sua leitura “cristianizada” é citada a seguir (v. 4-5), e funciona bem, como uma explicação para a atitude de Jesus. Pode até ser que o texto de Marcos já contivesse implicitamente a relação de intertextualidade com Zacarias, que neste caso, não seria uma citação, mas uma alusão (Lima, 2012, p. 111). Mateus estaria, se assim for, apenas deixando explícita a utilização do Antigo Testamento que já influenciara a narrativa sobre a chegada de Jesus a Jerusalém, provavelmente com o intuito de melhorar ou tornar mais acessível o texto marcano.
Na narrativa, os discípulos teriam de ir ao povoado e trazer a Jesus tanto a jumenta quanto o jumentinho, e aí o leitor concebe a existência de outro personagem, o dono dos animais. Embora esse “alguém” tenha que ser considerado como um possível impedimento para a realização da tarefa dos discípulos, Jesus, o destinador, já oferece antecipadamente o instrumento (objeto-modal), que neste caso são algumas palavras, que os faria superar o empecilho e realizar com sucesso sua missão. As palavras, literalmente traduzidas, são: “o senhor tem necessidade deles”. Se, segundo Jesus, com essas poucas palavras o dono dos animais seria convencido e permitiria que os discípulos os levassem, só podemos supor que no nível narrativo o dono dos animais compreenderia tais palavras e, consciente da profecia e do momento histórico, se converteria de adversário a ajudador, ou numa linguagem mais técnica, de oponente a adjuvante (Lima, 2012, p. 73). Assim, podemos dizer que a primeira parte desta perícope sobre a entrada de Jesus em Jerusalém começa com um problema, o de realizar expectativas messiânicas extraídas da leitura fragmentária de Zacarias na vida dos personagens. Jesus é o motivador, aquele que quer cumprir as escrituras e que incumbe seus discípulos de uma missão; os discípulos atuam neste caso como seus representantes, aventureiros que deveriam conseguir jumentos de estranhos. Todavia, Jesus não os enviou de qualquer maneira, mas lhes deu as “palavras mágicas”, que segundo nossa intuição, eram capazes de convencer o possível adversário, o dono dos animais, de que ele estaria contribuindo com a realização da profecia. Como vemos, tudo gira em torno dessa expectativa messiânica derivada da leitura que faziam de Zacarias, e Mateus, com sabedoria agora mais evidente, quis citar o texto do profeta exatamente aqui, no centro do enredo, quando os discípulos estavam para encontrar-se com o possível adversário.
Os versículos 6 e 7 mostram que tudo saiu como o planejado. Ainda que a narrativa não mencione o momento em que os discípulos encontraram os animais e talvez tenham conversado com o dono deles, ficamos sabendo que eles realizaram com sucesso seu dever, e Jesus pode montar nos animais antes de entrar na cidade de Jerusalém. A omissão daquele momento aparentemente importante no enredo, do encontro dos discípulos com os animais e seu proprietário, nos mostra que tal conflito era uma possibilidade apenas imaginada, e sua menção foi importante para que a narrativa fosse mais coerente enquanto imitação da vida; mas obviamente era mais importante falar que Jesus entrou em Jerusalém sob um jumento, em cumprimento da profecia de Zacarias, do que nos contar como foi que tudo aconteceu.
A ação de Jesus trazia o texto do Antigo Testamento à memória. Esse era o intuito do autor da narrativa marcana, e sua estratégia funcionou com o autor de Mateus. Internamente, o texto também evidencia quão forte e de fácil entendimento era a relação intertextual. Não só os discípulos e o possível dono dos animais entendiam o que Jesus estava fazendo, mas uma “grande multidão” viram a chegada de Jesus sob o jumento como o cumprimento da profecia messiânica, e por isso demonstraram sua alegria e reverência estendendo capas e ramos em seu caminho, enquanto recitavam o Salmo 118.26 que é uma exaltação pela vinda do “filho de Davi”, ou seja, pelo novo rei de Israel que vem em nome do Senhor (v. 8-9).
Muitos leitores falam desse texto que estamos lendo e da ampla aceitação de Jesus em Jerusalém em oposição à rejeição que o mesmo Jesus sofre mais adiante, quando é julgado e condenado à morte. Parece haver uma grande transformação na opinião da multidão, coisa que é difícil de explicar. Mas se a multidão exulta ao ver Jesus entrando em Jerusalém sob o jumento, é porque, ao menos no âmbito literário, o identificam com o Messias e rei que conceberam a partir de Zacarias. Todavia, Jesus não vai cumprir a profecia, não vai fazer explodir a guerra santa em Jerusalém, não vai trazer paz imediata ao mundo, não vai derrubar o império dominante... Jesus vai ser rejeitado pelos líderes religiosos, vai ser preso e humilhado pelo império, vai morrer crucificado sem demonstrar qualquer poder de reação; talvez por isso, aquela multidão passará a vê-lo como um falso messias, e com o mesmo entusiasmo com que o exaltou, o rejeitará. O messianismo de Jesus trilhou um caminho diferente do esperado, essa é a mensagem que a paixão de Cristo, que culmina com sua ressurreição, quer mostrar. Era natural que a multidão que esperava por um novo rei guerreiro se decepcionasse, que a memória de Jesus não fosse amplamente cultuada em Israel, e é exatamente aí que o discurso dos Evangelhos querem interferir, levando as pessoas a aceitar outra leitura das profecias messiânicas, leitura esta que encaixaria Jesus no papel. A culpa pela incompreensão do povo não será imputada sobre a má exegese que se praticava, nem sobre a própria multidão incrédula, mas sobre os líderes religiosos que tinham acesso às escrituras, que ensinaram o povo de maneira equivocada, e que por isso não reconheceram o ministério do Messias verdadeiro.
Mas a história da rejeição de Jesus em Jerusalém ainda está por vir. Nossa narrativa continua sob a expectativa de que aquele homem que entra na cidade montando num jumento era o Messias. Curiosamente, lemos nos últimos versículos (v. 10-11) um diálogo entre dois personagens coletivos: a multidão e a cidade. A multidão entendeu a encenação de Jesus, recebeu-o como Messias na entrada da cidade, mas a cidade em si parece curiosa, ignora a identidade de Jesus. Esta cidade de Jerusalém parece nunca ter ouvido falar do profeta da Galiléia, e talvez, por ser formada por sacerdotes, escribas, soldados, e pela aristocracia de forma geral, mostrar-se-á mais resistente a Jesus do que a multidão, que de alguma forma o acompanha desde o início.
Enfim, este texto que geralmente é chamado de “Entrada Triunfal”, na verdade mostra Jesus assumindo o papel de um Messias que é rei, mas que é simples; que é exaltado, mas que não possui a pompa de uma verdadeira realeza terrena. Outros estudiosos já ressaltaram que, diante desse gesto, era impossível não compreender que Jesus entrava em Jerusalém com pretensões grandiosas, e que por isso mesmo, tal entrada era o primeiro motivo para condenar Jesus por sedição. Esse tipo de leitura é bastante enfatizada por Richard A. Horsley e Neil A. Silberman, que contudo, erram por sempre imaginar de maneira fundamentalista, o significado dos reais atos de Jesus que teriam precedido a narrativa (2000, p. 83-84). Os autores parecem exagerar quando veem Jesus parodiando num teatro de rua as entradas triunfais praticadas pelas autoridades de seu tempo, ao passo que se esquecem dos evidentes convites para que leiamos o texto a partir de Zacarias. Nós vemos a narrativa, e não os possíveis fatos, e nos ocupamos mais com as explícitas relações entre as ações dos personagens e a profecia do Antigo Testamento do que com as hipóteses de que Jesus estivesse fazendo tudo apenas para deslegitimar os poderes de então.