De Gênesis
capítulos 6 a 9, nós encontramos o conjunto textual mais longo da seção
mitológica das origens, que ocupa os primeiros 11 capítulos da Bíblia Hebraica.
Já vimos que este sexto capítulo começa com uma versão bem resumida do chamado
“Mito dos Vigilantes”, aquele que lemos em 1Enoque. O contato proibido entre
anjos e seres humanos trouxera a desgraça sobre o mundo, os homens adquiriram
conhecimentos maléficos que não lhes era próprio, e os gigantes já ameaçavam a
existência, quando Deus decide pôr fim à raça humana e recomeçar seu projeto.
Aí entra em cena o mito do dilúvio, e no versículo 8 lemos: “Noé, porém, achou graça aos olhos do SENHOR”.
Noé é o protagonista desta
narrativa mítica em sua versão bíblica. Diz o texto que toda a terra estava
corrompida, (6.11-12), e por isso a decisão de destruir a vida por meio de um
dilúvio estava tomada (6.17). Mas Noé “andava com Deus” (6.9), e é escolhido
dentre toda a espécie humana para se preservar as formas de vida que foram
criadas. Ele é avisado da destruição vindoura, e Deus o instrui a construir uma
arca, para onde deveria levar sua família e um casal de cada espécie animal (v.
19-20), instruções que Noé atende perfeitamente (6.13-22).
Curiosamente, no início do
capítulo 7 Deus muda parcialmente as instruções. Agora Noé já não deveria levar
apenas um casal de cada espécie animal (6.19-20), mas sete machos e sete fêmeas
de cada (7.2-3). Essa incoerência interna geralmente é explicada como um
problema resultante do processo redacional, que juntou duas versões do mesmo
mito numa só narrativa. Acredita-se que na versão que exige sete machos e sete
fêmeas, temos uma tradição sacerdotal, que fará Noé sacrificar alguns animais
para Deus após o dilúvio, coisa que seria um problema caso ele só tivesse um
casal daquela espécie.
Na versão bíblica, a
numerologia é muito significativa. Além dos sete machos e sete fêmeas, depois
de sete dias viria o dilúvio sobre a terra, e o dilúvio duraria quarenta dias e
quarenta noites (7.4). Este hábito linguístico talvez nos sirva para mostrar
que a redação do texto já conta com conceitos teológicos bem estabelecidos pelo
judaísmo pós-exílico. E passados os sete dias, e tendo Noé obedecido a Deus em
todas as coisas, veio o dilúvio:
10 E aconteceu que, passados sete
dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. 11 No ano seiscentos
da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia,
se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram,
12 e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites.
Aqui vale recordar alguns
detalhes que vimos nos textos mitológicos lidos antes. No primeiro capítulo de
Gênesis, vimos que Deus havia criado os céus e a terra, e que depois separou
definitivamente estas duas faces do cosmos criado por meio de um espaço: “E fez
Deus a expansão e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão
e as águas que estavam sobre a expansão” (Gn 1.7). Ali já havíamos entendido
que na cosmologia desse texto, os mares da terra eram apenas parte das águas,
pois também haviam águas nos céus. O dilúvio é, portanto, um retrocesso na
criação, um ato que desfaz a separação entre as águas, uma eliminação
temporária e controlada dos limites que mantinham as águas de cima e de baixo
contidas. Assim, vemos que as chuvas eram porções pequenas de água derramadas
sobre a terra quando Deus abria as janelas dos céus, e este evento natural que
era tão necessário à vida agrícola, era também uma ameaça constante. Eles
pensavam que estavam cercados por água, pois além das águas suspensas que
podiam cair sobre suas cabeças de maneira desmedida, os mares infinitos estavam
lá bem ao lado e pareciam tentar invadir a terra a todo momento. Eles também
pensavam que a terra boiava sobre as águas, e prova disso são as nascentes dos
rios, e a água que se podia encontrar quando se cavava um poço.
As narrativas míticas do
dilúvio talvez tenham alguma origem história que não podemos comprovar, talvez
tenham nascido de após algum período de inundação, mas o caso é que a
importância do mito e sua proliferação se deve a outros motivos, como o medo
universal da destruição pelas águas.
Quando o dilúvio acaba e, já
no capítulo 8 de Gênesis, uma bonita história nos conta que Noé verificou se a
terra estava seca enviando pássaros:
6 E aconteceu que, ao cabo de
quarenta dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. 7 E
soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de
sobre a terra. 8 Depois, soltou uma pomba, a ver se as águas tinham
minguado de sobre a face da terra. 9 A pomba, porém, não achou repouso
para a planta de seu pé e voltou a ele para a arca; porque as águas estavam
sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e meteu-a
consigo na arca. 10 E esperou ainda outros sete dias e tornou a
enviar a pomba fora da arca. 11 E a pomba voltou a ele sobre a
tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que
as águas tinham minguado sobre a terra. 12 Então, esperou ainda
outros sete dias e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele. 13
E aconteceu que, no ano seiscentos e um, no mês primeiro, no primeiro dia do
mês, as águas se secaram de sobre a terra. Então, Noé tirou a cobertura da arca
e olhou, e eis que a face da terra estava enxuta.
Noé, sua
família e todos os animais saíram da arca e voltaram a povoar a terra, e então
lemos aquela conclusão sacrificial em 8.20-22:
20 E edificou Noé um altar ao
SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos
sobre o altar. 21 E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR
em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem,
porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei
mais a ferir todo vivente, como fiz. 22 Enquanto a terra durar,
sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite não
cessarão.
A ideia
de que há animais limpos ou puros, e outros impuros e por isso impróprios para
o sacrifício, é evidência da teologia sacrificial recente que influenciou a
redação final do texto de Gênesis. Vemos que Deus se agrada do cheiro dos
holocaustos, que são sacrifícios em que os animais são totalmente queimados
sobre o altar. Então, nas palavras de Deus encontramos temas importantes para
qualquer literatura mítica: Deus declara que o coração do homem é mau, ou seja,
que a potencialidade para fazer o mal é inerente ao ser humano, mas também promete
não destruir nossa espécie por conta disso. O texto assegura ao leitor que não
haverá outro dilúvio, e que as estações do ano se seguirão num ciclo
previsível. Isso resolve o medo universal da morte através do descontrole das
águas, e oferece esperança àqueles leitores do mundo rural que dependiam da
terra e das chuvas, das estações e do clima, para sobreviver.
O capítulo
9 parece ser um novo acréscimo às palavras de Deus. Na seção mais longa e
importante, o texto explica o mitologicamente o “arco-íris” como sendo um sinal
visível de que Deus não tornaria a enviar um dilúvio sobre a terra:
8 E falou Deus a Noé e a seus
filhos com ele, dizendo: 9 E eu, eis que estabeleço o meu concerto
convosco, e com a vossa semente depois de vós, 10 e com toda alma
vivente, que convosco está, de aves, de reses, e de todo animal da terra
convosco; desde todos que saíram da arca, até todo animal da terra. 11
E eu convosco estabeleço o meu concerto, que não será mais destruída toda carne
pelas águas do dilúvio e que não haverá mais dilúvio para destruir a terra. 12
E disse Deus: Este é o sinal do concerto que ponho entre mim e vós e entre toda
alma vivente, que está convosco, por gerações eternas. 13 O meu arco
tenho posto na nuvem; este será por sinal do concerto entre mim e a terra. 14
E acontecerá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, aparecerá o arco nas
nuvens. 15 Então, me lembrarei do meu concerto, que está entre mim e
vós e ainda toda alma vivente de toda carne; e as águas não se tornarão mais em
dilúvio, para destruir toda carne. 16 E estará o arco nas nuvens, e
eu o verei, para me lembrar do concerto eterno entre Deus e toda alma vivente
de toda carne, que está sobre a terra. 17 E disse Deus a Noé: Este é
o sinal do concerto que tenho estabelecido entre mim e toda a carne que está
sobre a terra.
A criação
que fora abalada, a ordem que fora ameaçada, volta a ser ajustada quando
novamente Deus controla as águas e manda o homem povoar e dominar a terra
(9.1-3). Porém, regras mais específicas e judaicas também aparecem; uma porção
interessante está contida entre os versículo 4 a 6. Primeiro temos a tipicamente
judaica proibição de se comer sangue (9.4), e depois uma breve justificativa
para o sacrifício de animais, que deveriam substituir o sangue humano, que era
o que Deus realmente exigia (9.5). Isso pode ser um desenvolvimento de uma
tradição religiosa sacrificial mais antiga, onde seres humanos eram oferecidos.
Por fim, temos o interdito contra o homicídio, que diz que todo assassino
deveria ser assassinado, instituindo a pena de morte como um tipo de controle
social (9.6). Essa seção de pequenas unidades temáticas nos mostra o mito sendo
aproveitado ao máximo para explicar questões existenciais, justificar
ritualidades já existentes, inibir a violência no interior do clã.
Deixando
Gênesis de lado, agora vamos ler de maneira rápida uma outra versão bem
conhecida do mesmo mito. A epopeia de Gilgamesh, preservada da mitologia
suméria da Mesopotâmia, traz uma conhecida versão do mito do dilúvio.[1]
Gilgamesh, o protagonista da epopeia, era um ser humano que procurava a vida
eterna, que queria saber o segredo dos deuses, e que em sua trajetória encontra
um sujeito chamado Utnapishtim. Este último era um homem que tinha o que ele
queria, que havia se juntado aos deuses e que conquistara a imortalidade. Este
Utnapishtim passa a narrar para Gilgamesh sua própria aventura, e conta que foi
por sobreviver ao dilúvio que ganhara a vida eterna. Para nossos interesses, é
importante observar que esta versão pertence a uma cultura politeísta, e Enlil
é o deus responsável pelo dilúvio, aquele que convence outras divindades,
responsáveis pela ordem natural, a destruírem a humanidade por meio dessa
grande tempestade:
Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se
e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus.
Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos
humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.'
Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana.
Mas o
herói da epopeia, assim como Noé na versão bíblica, foi avisado pelo deus Ea
sobre a destruição vindoura, através dessas palavras:
Oh, homem de Shurrupak,
filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas
posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma
salvar.
A
divindade o instruiu sobre as medidas da embarcação a ser construída para que
pudesse sobreviver ao dilúvio. Ele obedeceu, e junto de sua família construiu o
barco, que ficou pronto no sétimo dia. Também conforme as instruções, ele levou
para o barco a “semente de todas as criaturas vivas”, fechou-se lá dentro, e
esperou pelo dilúvio que os deuses irados trariam para destruir a vida na
terra.
Surgiram então os
deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do
inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do
outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas
chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da
tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se
despedaça um cálice.
O número
sete é muito importante nesta narrativa mitológica, assim como é para toda a
tradição bíblica. Não por coincidência, lemos que a tempestade só se acalmou no
sétimo dia, e quando o barco encalhou no alto da montanha do Nisir, levaram
mais sete dias até que a embarcação fosse aberta; e como acontece na versão
bíblica, pássaros foram soltos a fim de se verificar se já havia alguma parte
seca na terra. Quando finalmente todos puderam sair do barco, Utnapishtim fez
como Noé (ou Noé fez como Utnapishtim), oferecendo um sacrifício:
Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da
montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus
suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o
doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício.
O
diferente posicionamento dos deuses em relação ao dilúvio e destruição da raça
humana gera então um conflito. Alguns se agradavam do sacrifício, da
preservação da espécie humana, mas Enlil, o deus que elaborara o plano de
destruição, se ira ao ver que o dilúvio não havia exterminado todos. Os deuses
então se juntam contra Enlil, consideram-no um transgressor por ter decidido
sozinho provocar tamanha destruição. O herói que superara o dilúvio, conquista
agora com sua devoção expressa pelo bom sacrifício, a aprovação dos deuses, e
este apreço divino pelo homem se transforma num motivo que reúne todos contra
Enlil:
Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos,
menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o
dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.' "Quando Enlil chegou e viu o
barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses
do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à
destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e
disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente
Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro
Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente
provocar este dilúvio?
A narrativa acaba abruptamente, sem que o vilão da história,
Enlil, seja devidamente julgado ou punido. O que temos aqui como conclusão, é
que Enlil precisa aceitar seu erro, e abençoa o herói do dilúvio e sua mulher,
dando-lhes vida eterna e fazendo-os habitar na “foz dos rios”. Isso é o que
Gilgamesh queria saber de Utnapishtim, como ele conquistara o privilégio divino
da vida eterna.
As semelhanças entre as duas versões do mito são tantas, que
muitos estudiosos já se dedicaram a explicar as relações intertextuais ou
interdiscursivas. Esse não é nosso interesse, queríamos apenas fazer essa
leitura panorâmica, entender a que interesses essas histórias atendiam,
encontrar as dúvidas que aquelas pessoas tinham, que respostas podiam oferecer,
que tipo de fé ou teologia expressavam... Enfim, nos mitos os deuses estavam no
controle, e toda a realidade se explica como efeito de suas ações.
[1] Todas as citações da “Epopeia de
Gilgamesh” foram extraídas da versão publicada pela editora Martins Fontes em
2001 (2ª ed.).
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