terça-feira, 24 de julho de 2012

O(S) MITO(S) DO DILÚVIO


De Gênesis capítulos 6 a 9, nós encontramos o conjunto textual mais longo da seção mitológica das origens, que ocupa os primeiros 11 capítulos da Bíblia Hebraica. Já vimos que este sexto capítulo começa com uma versão bem resumida do chamado “Mito dos Vigilantes”, aquele que lemos em 1Enoque. O contato proibido entre anjos e seres humanos trouxera a desgraça sobre o mundo, os homens adquiriram conhecimentos maléficos que não lhes era próprio, e os gigantes já ameaçavam a existência, quando Deus decide pôr fim à raça humana e recomeçar seu projeto. Aí entra em cena o mito do dilúvio, e no versículo 8 lemos: “Noé, porém, achou graça aos olhos do SENHOR”.
Noé é o protagonista desta narrativa mítica em sua versão bíblica. Diz o texto que toda a terra estava corrompida, (6.11-12), e por isso a decisão de destruir a vida por meio de um dilúvio estava tomada (6.17). Mas Noé “andava com Deus” (6.9), e é escolhido dentre toda a espécie humana para se preservar as formas de vida que foram criadas. Ele é avisado da destruição vindoura, e Deus o instrui a construir uma arca, para onde deveria levar sua família e um casal de cada espécie animal (v. 19-20), instruções que Noé atende perfeitamente (6.13-22).
Curiosamente, no início do capítulo 7 Deus muda parcialmente as instruções. Agora Noé já não deveria levar apenas um casal de cada espécie animal (6.19-20), mas sete machos e sete fêmeas de cada (7.2-3). Essa incoerência interna geralmente é explicada como um problema resultante do processo redacional, que juntou duas versões do mesmo mito numa só narrativa. Acredita-se que na versão que exige sete machos e sete fêmeas, temos uma tradição sacerdotal, que fará Noé sacrificar alguns animais para Deus após o dilúvio, coisa que seria um problema caso ele só tivesse um casal daquela espécie.
Na versão bíblica, a numerologia é muito significativa. Além dos sete machos e sete fêmeas, depois de sete dias viria o dilúvio sobre a terra, e o dilúvio duraria quarenta dias e quarenta noites (7.4). Este hábito linguístico talvez nos sirva para mostrar que a redação do texto já conta com conceitos teológicos bem estabelecidos pelo judaísmo pós-exílico. E passados os sete dias, e tendo Noé obedecido a Deus em todas as coisas, veio o dilúvio:
10 E aconteceu que, passados sete dias, vieram sobre a terra as águas do dilúvio. 11 No ano seiscentos da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia, se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas dos céus se abriram, 12 e houve chuva sobre a terra quarenta dias e quarenta noites.
Aqui vale recordar alguns detalhes que vimos nos textos mitológicos lidos antes. No primeiro capítulo de Gênesis, vimos que Deus havia criado os céus e a terra, e que depois separou definitivamente estas duas faces do cosmos criado por meio de um espaço: “E fez Deus a expansão e fez separação entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a expansão” (Gn 1.7). Ali já havíamos entendido que na cosmologia desse texto, os mares da terra eram apenas parte das águas, pois também haviam águas nos céus. O dilúvio é, portanto, um retrocesso na criação, um ato que desfaz a separação entre as águas, uma eliminação temporária e controlada dos limites que mantinham as águas de cima e de baixo contidas. Assim, vemos que as chuvas eram porções pequenas de água derramadas sobre a terra quando Deus abria as janelas dos céus, e este evento natural que era tão necessário à vida agrícola, era também uma ameaça constante. Eles pensavam que estavam cercados por água, pois além das águas suspensas que podiam cair sobre suas cabeças de maneira desmedida, os mares infinitos estavam lá bem ao lado e pareciam tentar invadir a terra a todo momento. Eles também pensavam que a terra boiava sobre as águas, e prova disso são as nascentes dos rios, e a água que se podia encontrar quando se cavava um poço.
As narrativas míticas do dilúvio talvez tenham alguma origem história que não podemos comprovar, talvez tenham nascido de após algum período de inundação, mas o caso é que a importância do mito e sua proliferação se deve a outros motivos, como o medo universal da destruição pelas águas.
Quando o dilúvio acaba e, já no capítulo 8 de Gênesis, uma bonita história nos conta que Noé verificou se a terra estava seca enviando pássaros:
6 E aconteceu que, ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. 7 E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra. 8 Depois, soltou uma pomba, a ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra. 9 A pomba, porém, não achou repouso para a planta de seu pé e voltou a ele para a arca; porque as águas estavam sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e meteu-a consigo na arca. 10 E esperou ainda outros sete dias e tornou a enviar a pomba fora da arca. 11 E a pomba voltou a ele sobre a tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico; e conheceu Noé que as águas tinham minguado sobre a terra. 12 Então, esperou ainda outros sete dias e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele. 13 E aconteceu que, no ano seiscentos e um, no mês primeiro, no primeiro dia do mês, as águas se secaram de sobre a terra. Então, Noé tirou a cobertura da arca e olhou, e eis que a face da terra estava enxuta.
Noé, sua família e todos os animais saíram da arca e voltaram a povoar a terra, e então lemos aquela conclusão sacrificial em 8.20-22:
20 E edificou Noé um altar ao SENHOR; e tomou de todo animal limpo e de toda ave limpa e ofereceu holocaustos sobre o altar. 21 E o SENHOR cheirou o suave cheiro e disse o SENHOR em seu coração: Não tornarei mais a amaldiçoar a terra por causa do homem, porque a imaginação do coração do homem é má desde a sua meninice; nem tornarei mais a ferir todo vivente, como fiz. 22 Enquanto a terra durar, sementeira e sega, e frio e calor, e verão e inverno, e dia e noite não cessarão.
A ideia de que há animais limpos ou puros, e outros impuros e por isso impróprios para o sacrifício, é evidência da teologia sacrificial recente que influenciou a redação final do texto de Gênesis. Vemos que Deus se agrada do cheiro dos holocaustos, que são sacrifícios em que os animais são totalmente queimados sobre o altar. Então, nas palavras de Deus encontramos temas importantes para qualquer literatura mítica: Deus declara que o coração do homem é mau, ou seja, que a potencialidade para fazer o mal é inerente ao ser humano, mas também promete não destruir nossa espécie por conta disso. O texto assegura ao leitor que não haverá outro dilúvio, e que as estações do ano se seguirão num ciclo previsível. Isso resolve o medo universal da morte através do descontrole das águas, e oferece esperança àqueles leitores do mundo rural que dependiam da terra e das chuvas, das estações e do clima, para sobreviver.
O capítulo 9 parece ser um novo acréscimo às palavras de Deus. Na seção mais longa e importante, o texto explica o mitologicamente o “arco-íris” como sendo um sinal visível de que Deus não tornaria a enviar um dilúvio sobre a terra:
8 E falou Deus a Noé e a seus filhos com ele, dizendo: 9 E eu, eis que estabeleço o meu concerto convosco, e com a vossa semente depois de vós, 10 e com toda alma vivente, que convosco está, de aves, de reses, e de todo animal da terra convosco; desde todos que saíram da arca, até todo animal da terra. 11 E eu convosco estabeleço o meu concerto, que não será mais destruída toda carne pelas águas do dilúvio e que não haverá mais dilúvio para destruir a terra. 12 E disse Deus: Este é o sinal do concerto que ponho entre mim e vós e entre toda alma vivente, que está convosco, por gerações eternas. 13 O meu arco tenho posto na nuvem; este será por sinal do concerto entre mim e a terra. 14 E acontecerá que, quando eu trouxer nuvens sobre a terra, aparecerá o arco nas nuvens. 15 Então, me lembrarei do meu concerto, que está entre mim e vós e ainda toda alma vivente de toda carne; e as águas não se tornarão mais em dilúvio, para destruir toda carne. 16 E estará o arco nas nuvens, e eu o verei, para me lembrar do concerto eterno entre Deus e toda alma vivente de toda carne, que está sobre a terra. 17 E disse Deus a Noé: Este é o sinal do concerto que tenho estabelecido entre mim e toda a carne que está sobre a terra.
A criação que fora abalada, a ordem que fora ameaçada, volta a ser ajustada quando novamente Deus controla as águas e manda o homem povoar e dominar a terra (9.1-3). Porém, regras mais específicas e judaicas também aparecem; uma porção interessante está contida entre os versículo 4 a 6. Primeiro temos a tipicamente judaica proibição de se comer sangue (9.4), e depois uma breve justificativa para o sacrifício de animais, que deveriam substituir o sangue humano, que era o que Deus realmente exigia (9.5). Isso pode ser um desenvolvimento de uma tradição religiosa sacrificial mais antiga, onde seres humanos eram oferecidos. Por fim, temos o interdito contra o homicídio, que diz que todo assassino deveria ser assassinado, instituindo a pena de morte como um tipo de controle social (9.6). Essa seção de pequenas unidades temáticas nos mostra o mito sendo aproveitado ao máximo para explicar questões existenciais, justificar ritualidades já existentes, inibir a violência no interior do clã.
Deixando Gênesis de lado, agora vamos ler de maneira rápida uma outra versão bem conhecida do mesmo mito. A epopeia de Gilgamesh, preservada da mitologia suméria da Mesopotâmia, traz uma conhecida versão do mito do dilúvio.[1] Gilgamesh, o protagonista da epopeia, era um ser humano que procurava a vida eterna, que queria saber o segredo dos deuses, e que em sua trajetória encontra um sujeito chamado Utnapishtim. Este último era um homem que tinha o que ele queria, que havia se juntado aos deuses e que conquistara a imortalidade. Este Utnapishtim passa a narrar para Gilgamesh sua própria aventura, e conta que foi por sobreviver ao dilúvio que ganhara a vida eterna. Para nossos interesses, é importante observar que esta versão pertence a uma cultura politeísta, e Enlil é o deus responsável pelo dilúvio, aquele que convence outras divindades, responsáveis pela ordem natural, a destruírem a humanidade por meio dessa grande tempestade:
Naqueles dias a terra fervilhava, os homens multiplicavam-se e o mundo bramia como um touro selvagem. Este tumulto despertou o grande deus. Enlil ouviu o alvoroço e disse aos deuses reunidos em conselho: 'O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia.' Os deuses então concordaram em exterminar a raça humana.
Mas o herói da epopeia, assim como Noé na versão bíblica, foi avisado pelo deus Ea sobre a destruição vindoura, através dessas palavras:
Oh, homem de Shurrupak, filho de Ubara-Tutu, põe abaixo tua casa e constrói um barco. Abandona tuas posses e busca tua vida preservar; despreza os bens materiais e busca tua alma salvar.
A divindade o instruiu sobre as medidas da embarcação a ser construída para que pudesse sobreviver ao dilúvio. Ele obedeceu, e junto de sua família construiu o barco, que ficou pronto no sétimo dia. Também conforme as instruções, ele levou para o barco a “semente de todas as criaturas vivas”, fechou-se lá dentro, e esperou pelo dilúvio que os deuses irados trariam para destruir a vida na terra.
Surgiram então os deuses do abismo; Nergal destruiu as barragens que represavam as águas do inferno; Ninurta, o deus da guerra, pôs abaixo os diques; e os sete juizes do outro mundo, os Anunnaki, elevaram suas tochas, iluminando a terra com suas chamas lívidas. Um estupor de desespero subiu ao céu quando o deus da tempestade transformou o dia em noite, quando ele destruiu a terra como se despedaça um cálice.
O número sete é muito importante nesta narrativa mitológica, assim como é para toda a tradição bíblica. Não por coincidência, lemos que a tempestade só se acalmou no sétimo dia, e quando o barco encalhou no alto da montanha do Nisir, levaram mais sete dias até que a embarcação fosse aberta; e como acontece na versão bíblica, pássaros foram soltos a fim de se verificar se já havia alguma parte seca na terra. Quando finalmente todos puderam sair do barco, Utnapishtim fez como Noé (ou Noé fez como Utnapishtim), oferecendo um sacrifício:
Preparei um sacrifício e derramei vinho sobre o topo da montanha em oferenda aos deuses. Coloquei quatorze caldeirões sobre seus suportes e juntei madeira, bambu, cedro e murta. Quando os deuses sentiram o doce cheiro que dali emanava, eles se juntaram como moscas sobre o sacrifício.
O diferente posicionamento dos deuses em relação ao dilúvio e destruição da raça humana gera então um conflito. Alguns se agradavam do sacrifício, da preservação da espécie humana, mas Enlil, o deus que elaborara o plano de destruição, se ira ao ver que o dilúvio não havia exterminado todos. Os deuses então se juntam contra Enlil, consideram-no um transgressor por ter decidido sozinho provocar tamanha destruição. O herói que superara o dilúvio, conquista agora com sua devoção expressa pelo bom sacrifício, a aprovação dos deuses, e este apreço divino pelo homem se transforma num motivo que reúne todos contra Enlil:
Que todos os deuses se reúnam em torno do sacrifício; todos, menos Enlil. Ele não se aproximará desta oferenda, pois sem refletir trouxe o dilúvio; ele entregou meu povo à destruição.' "Quando Enlil chegou e viu o barco, ele ficou furioso. Enlil se encheu de cólera contra o exército de deuses do céu. 'Alguns destes mortais escaparam? Ninguém deveria ter sobrevivido à destruição.' Então Ninurta, o deus das nascentes e dos canais, abriu a boca e disse ao guerreiro Enlil: 'E que deus pode tramar sem o consentimento de Ea? Somente Ea conhece todas as coisas.' Então Ea abriu a boca e falou para o guerreiro Enlil: 'Herói Enlil, o mais sábio dos deuses, como pudeste tão insensatamente provocar este dilúvio?
A narrativa acaba abruptamente, sem que o vilão da história, Enlil, seja devidamente julgado ou punido. O que temos aqui como conclusão, é que Enlil precisa aceitar seu erro, e abençoa o herói do dilúvio e sua mulher, dando-lhes vida eterna e fazendo-os habitar na “foz dos rios”. Isso é o que Gilgamesh queria saber de Utnapishtim, como ele conquistara o privilégio divino da vida eterna.
As semelhanças entre as duas versões do mito são tantas, que muitos estudiosos já se dedicaram a explicar as relações intertextuais ou interdiscursivas. Esse não é nosso interesse, queríamos apenas fazer essa leitura panorâmica, entender a que interesses essas histórias atendiam, encontrar as dúvidas que aquelas pessoas tinham, que respostas podiam oferecer, que tipo de fé ou teologia expressavam... Enfim, nos mitos os deuses estavam no controle, e toda a realidade se explica como efeito de suas ações.


[1] Todas as citações da “Epopeia de Gilgamesh” foram extraídas da versão publicada pela editora Martins Fontes em 2001 (2ª ed.).

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