Seguiremos com nosso estudo sobre a teologia mítica a partir de
Gênesis, passando agora para uma enigmática passagem do capítulo 6. Façamos a leitura
pausadamente:
E aconteceu que, como os homens
começaram a multiplicar-se sobre a face da terra, e lhes nasceram filhas, viram
os filhos de Deus que as filhas dos homens eram formosas; e tomaram para si
mulheres de todas as que escolheram. [...] Havia, naqueles dias, gigantes na
terra; e também depois, quando os filhos de Deus entraram às filhas dos homens
e delas geraram filhos; estes eram os valentes que houve na antiguidade, os
varões de fama.
Nestas linhas vemos que os homens haviam se multiplicado e que
os “filhos de Deus” ficaram atraídos pela formosura das mulheres. É verdade que
é enigmática essa designação “filhos de Deus”, mas veremos adiante que se trata
de anjos, seres celestiais que não possuem a mesma natureza que os homens. Em todo
caso, ele desceram à terra e tomaram mulheres humanas para si, gerando filhos de
constituição híbrida, que são comparados a “gigantes”, seres superiores aos homens
aos quais se atribui feitos “heroicos” do passado.
Então, o mito parece nos contar, numa versão monoteísta, que outros
seres celestiais não chamados deuses, existiam e agiam por conta própria. De certa
forma, eles desrespeitaram a divisão originalmente criada entre céus e terra por
conta de seus desejos sexuais, e o resultado foi uma “deformação” na ordem criada,
uma imperfeição, um resultado não previsto. Tais “deuses” ou anjos, como vemos,
são sexuados, e não estão permanentemente servindo com perfeição a Deus, o quer
dizer que este mito traz elementos muito distantes do imaginário cristão sobre os
seres angelicais.
Há um outro detalhe que merece atenção. O mito fala de uma iniciativa
aparentemente proibida dos anjos, mas acaba por atribuir a ação deles às mulheres
formosas. Isso levaria muitas gerações de leitores a julgar toda forma de vaidade
feminina como “pecado”. Há até um texto bastante estranho no Novo Testamento que
talvez faça alguma referência a essa ideia. O apóstolo Paulo, falando sobre a conduta
das mulheres, escreveu certa vez: “Portanto, a mulher deve ter sobre a cabeça
sinal de poderio, por causa dos anjos” (1Coríntios 11.10). Parece estar implícita
a ideia de que a vaidade feminina pode atrair a atenção de anjos, devendo ser evitada.
Na sequência da leitura temos:
E viu o SENHOR que a maldade do homem se
multiplicara sobre a terra e que toda imaginação dos pensamentos de seu coração
era só má continuamente. Então,
arrependeu-se o SENHOR de haver feito o homem sobre a terra, e pesou-lhe em seu
coração. E disse o SENHOR: Destruirei,
de sobre a face da terra, o homem que criei, desde o homem até ao animal, até
ao réptil e até à ave dos céus; porque me arrependo de os haver feito.
Geralmente, quando leem este texto que inicia a narrativa mitológica
do dilúvio, os cristãos começam deste ponto no versículo 5, deixando de fora aqueles
quatro versículos que lemos como passagens enigmáticas e desligadas do contexto
literário. Todavia, a “maldade” que agora ameaça a existência humana parece estar
ligada àquela “invasão” dos seres celestiais que contaminaram a terra. Se essa for
uma leitura correta, podemos dizer que temos um mito que nos conta como o mundo
pode ter sido maculado.
Mas estas linhas bíblicas são deveras muito lacunares. A narrativa
não nos conta muita coisa, e por isso mesmo esse texto ganhou interpretações muito
contraditórias, nascidas mesmo a partir de ideias mais modernas que já estava bem
firmada nas leituras dogmáticas da igreja cristã. Contudo, hoje a leitura deste
texto bíblico foi melhor esclarecida a partir do estudo de um texto extracanônico
cada vez mais conhecido: trata-se do livro de 1Enoque, também conhecido como Apocalipse
Etíope de Enoque. Neste livro que hoje é um famoso representante da apocalíptica
judaica, há uma narrativa muito semelhante àquela que lemos em Gênesis 6, cuja versão
deve datar de poucos séculos a.C. (Isaac, 1983, p. 6-7). Esta é uma versão mais
elaborada, mais longa, e pode mesmo explicar algumas das lacunas deixadas na versão
de Gênesis. Abaixo, vamos começar sua leitura de 1Enoque a partir do capítulo VI,
tendo porém, que abreviar o texto nalguns momentos por conta de seu tamanho:
Quando outrora aumentou o número dos
filhos dos homens, nasceram-lhes filhas bonitas e amoráveis. Os Anjos, filhos
do céu, ao verem-nas, desejaram-nas e disseram entre si: “Vamos tomar mulheres
dentre as filhas dos homens e gerar filhos!” [...]
A relação entre os dois livros não poderia ser mais evidente.
Esta relação não precisa ser necessariamente intertextual, isto é, pode até ser
que eles tenham nascidos em séculos diferentes, lugares diferentes, e que um autor
não conhecesse a literatura do outro. Isso se caracterizaria como uma relação interdiscursiva,
onde este mito de conhecimento popular circularia em narrativas de múltiplas versões,
preservadas e transmitidas oralmente, fazendo parte da cultura judaica de maneira
ampla. Mas a versão de 1Enoque mostra-se mais completa que a de Gênesis, e confirma
alguns palpites feitos a partir da leitura anterior. Vejamos nos recortes abaixo,
como muitas das práticas já conhecidas no tempo da redação do mito realmente, que
inclusive eram reprovadas pelo autor, tiveram sua origem ligada a esses anjos maus:
Todos os demais que estavam com eles
tomaram mulheres, e cada um escolheu uma para si. Então começaram a frequentá-las
e a profanar-se com elas. E eles ensinavam-lhes bruxarias, exorcismos e
feitiços, e familiarizavam-nas com ervas e raízes. [...]
Azazel ensinou aos homens a confecção de
espadas, facas, escudos e armaduras, abrindo os seus olhos para os metais e
para a maneira de trabalhá-los. Vieram depois os braceletes, os adornos
diversos, o uso dos cosméticos, o embelezamento das pálpebras, toda sorte de
pedras preciosas e a arte das tintas.
E assim grassava uma grande impiedade;
eles promoviam a prostituição, conduziam aos excessos e eram corruptos em todos
os sentidos. Semjaza ensinava os esconjuros e as poções de feitiços, Armaros a
dissipação dos esconjuros, Barakijal a astrologia, Kokabel a ciência das
constelações, Ezekeel a observação das nuvens, Arakiel os sinais da terra,
Samsiel os sinais do sol e Sariel as fases da sua.
Vemos a interpretação negativa que se dá à guerra, às religiões
que são chamadas de “mágicas”, isto é, esotéricas, astrológicas, mais místicas do
que a adotada por este enunciador. Também vemos muitos hábitos femininos sendo reprovados,
chamados de bruxaria. O uso de “ervas e raízes”, talvez para fins religiosos medicinais,
está condenado no texto; depois, também algumas espécies de maquiagens e adornos
de pedras preciosas. Isso parece confirmar nosso palpite de que a vaidade feminina
era condenada, e aquele texto de Paulo que citamos deve se inserir neste contexto
argumentativo.
Entrementes elas engravidaram e deram à
luz a gigantes de 3.000 côvados de altura. Estes consumiram todas as provisões
de alimentos dos demais homens. E quando as pessoas nada mais tinham para
dar-lhes os gigantes voltaram-se contra elas e começaram a devorá-las. Também
começaram a atacar os pássaros, os animais selvagens, os répteis e os peixes,
rasgando com os dentes as suas carnes e bebendo o seu sangue. Então a terra
clamou contra os monstros.
Aqui fica mais clara nossa leitura de Gênesis, de que foi por
consequência da invasão dos anjos, e origem da raça híbrida que eles chamam de gigantes,
que a existência humana fica ameaçada. Vejamos a seguir, como esta intriga conduz
a história até o dilúvio:
Quando os homens se sentiram prestes a
serem aniquilados levantaram um grande clamor, e seus gritos chegaram ao céu [...]
Então Michael, Uriel,
Raphael e Gabriel olharam do alto do céu e viram a quantidade de sangue
derramado sobre a terra e todas as desgraças que sobrevieram [...]
Então o Altíssimo, o Santo, o Grande, tomou a palavra e
enviou Uriel ao filho de Lamech, com a ordem seguinte: “Dize-lhes, em meu nome:
‘Esconde-te’, e anuncia-lhe o fim próximo! Pois o mundo inteiro será destruído;
um dilúvio cobrirá toda a terra e aniquilará tudo o que sobre ela existe. Comunica-lhe
que ele poderá salvar-se, e que seus descendentes serão mantidos por todas as
gerações do mundo!”
E a Raphael disse o Senhor: “Amarra Azazel de mãos e pés, e
lança-o nas trevas! [...] E a Gabriel disse o Senhor: “Levanta a guerra entre
os bastardos, os monstros, os filhos das prostituídas e extirpa-os do meio dos
homens, juntamente com todos os filhos dos Guardiões! [...] A Michael disse o
Senhor: “Vai e põe a ferros Semjaza e os seus sequazes, que se misturaram com
as mulheres e com elas se contaminaram de todas as suas impurezas!
O “filho de Lamech” é Noé narrativa bíblica (Gn 5.28-29), e aqui
ele também é avisado do dilúvio para que por meio de sua família a raça humana fosse
preservada. Mais que um dilúvio, era necessário punir os seres celestiais que causaram
a desordem, e por isso uma batalha angelical precisava acontecer, pelo que alguns
anjos são encarregados de destruir os “gigantes” e punir os rebeldes.
Lembrando do que lemos nos mitos da criação, entendemos que a
separação entre céus e terra é uma maneira de manter a ordem do cosmos. Os homens
não podem subir e nem os seres celestiais descer. Mas o imaginário religioso, claro,
vai criar exceções a esta regra geralmente aceita. Uma delas é a do próprio Enoque,
personagem que dá nome ao livro apocalíptico e pseudoepigráfico que lemos, e que
aparece rapidamente em Gênesis 5.21-23, quando é “arrebatado” ao céu, dando margem
para muita imaginação religiosa. Os anjos também não podem descer, pois o contato
entre os dois polos da criação é profanador; assim, a não ser que haja um consentimento
divino, toda descida desses seres à terra constitui-se num ato de rebeldia, que
traz consequências. Teologicamente falando, podemos ver que o imaginário religioso
destes textos é contrário às práticas místicas, às bruxarias, aos feitiços... todo
tipo de prática que traz para o nosso mundo algum tipo de conhecimento celestial
é condenado. Ele reconhece a existência desses fenômenos, não diz que são farsas
o fantasias, mas os teme, pensa que não são controláveis, que são perigosos, e por
meio de ameaças míticas pretende regular a religião. Paradoxalmente, encontramos
um mito que quer afastar os homens das experiências religiosas, que explica a existência
de certos males através dessa interpretação racional que faz de religiosidades alheias.
Temos um embate real e ainda hoje observável em diferentes formas de religiosidades,
e como não podia deixar de ser, os argumentos míticos são os únicos possíveis nessas
discussões.
4 comentários:
E ai Anderson, interessante esse texto.
João, que bom que continua acompanhando minhas leituras. Pra você e para os outros leitores que gostarem do tema, indico a leitura de uma dissertação de mestrado de um amigo, o Kenner, que conhece bem mais sobre a tradição de Enoque do que eu. Veja o link abaixo, onde podemos baixar o texto dele em PDF:
http://ibict.metodista.br/tedeSimplificado/tde_busca/processaPesquisa.php?listaDetalhes[]=916&processar=Processar
em primeiro lugar temos que ter uma definiçao detalhada do que é um anjo.e espiritual? e material? e corporeo?e incorporeo?pode engravidar uma mulher? qual o seu DNA?possui sistema reprodutor? porque os filhos nasceram gigantes? de onde vem essa herança genetica? eram os anjos gigantes? se sim como seria a relaçao de uma mulher com um gigante? a mulher pode engravidar de um ser de especie diferente?
aff nossa como gostaria de saber dessas respostas misael!
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