terça-feira, 12 de março de 2013

HISTÓRIA DA LEITURA BÍBLICA - As Origens da Bíblia e seus Leitores/Ouvintes



A Bíblia é, como sabemos, uma coleção de textos de datação indeterminada, cujo acesso só é possível através de um custoso processo de comparação de milhares de manuscritos. Na verdade nós sabemos bastante sobre os modos de produção dos textos bíblicos, e temos nesses documentos sinais de práticas literárias de evoluíram por séculos, o que faz com que qualquer tentativa de se escrever sobre a história da leitura bíblica coincida com a própria história da escrita. Por exemplo, podemos notar que a grande maioria dos textos bíblicos são compilações de textos menores e de origens provavelmente independentes; são coleções de fragmentos de tradição oral e escrita unidos por um processo redacional mais recente. Alguns livros bíblicos parecem mesmo sugerir uma herança cultural antiquíssima, refletindo em breves unidades textuais, tempos em que a escrita mais comum devia ser a cuneiforme, em tabletes de materiais simples como argila, pedra ou madeira. 

Mas os materiais mais comuns na produção dos textos bíblicos foram o papiro e depois o couro, que deu origem ao rolo que chamamos de “pergaminho”. Essa nova tecnologia contribuiu com a durabilidade dos textos e com a produção de livros maiores, mas a prática de escrita seguiu em grande parte presa aos modestos limites dos tabletes, pelo que a crítica moderna sempre tem que lidar com a questão da delimitação das perícopes, examinando textos de tempos em que sequer haviam divisões entre as palavras, sinais de pontuação ou mesmo parágrafos.



Nos dias de Jesus e em meados do primeiro século, boa parte das tradições literárias das religiosidades judaicas já havia se consolidado o formavam coleções de textos que depois seriam chamados de Antigo Testamento. Mas é preciso levar em conta que esses rolos não costumavam ser encontrados nas casas das famílias comuns, mas nos templos, nas sinagogas, nas mãos de escribas que também estavam envolvidos com serviços administrativos do império... Além da não padronização de uma coleção canônica desses textos até a virada dos séculos I e II, há vários outros motivos que explicam a escassez de cópias dos textos bíblicos entre as massas: primeiro, devemos nos lembrar que a alfabetização não era uma característica comum a qualquer parte do chamado mundo clássico, e os estudiosos estimam que o nível de alfabetização da terra judaica nos primeiros séculos estava abaixo dos 3%; segundo, mesmo para os letrados a posse de uma grande coleção de textos que tinham que ser copiados manualmente por profissionais e em folhas de papiros importadas era algo economicamente inviável; e mais importante ainda, é que a posse de livros e a atividade da leitura individual eram simplesmente inconcebíveis naquela cultura que quase sempre transmitia seus conhecimentos através da oralidade. Quer dizer que os textos bíblicos não eram copiados para serem comprados, levados para casa e lidos; eles existiam principalmente para serem ouvidos. Ou seja, mesmo nos rituais religiosos, a memória era o principal instrumento, e os textos, quando entravam em cena, eram lidos por algum orador para que os demais ouvissem. Assim, as memórias e tradições orais eram escritas e copiadas de geração em geração para sua preservação, com a finalidade de serem novamente re-oralizadas pela prática da leitura coletiva.



            Sobre a história das práticas de leitura e a predominância da transmissão oral no mundo antigo também escreveu Robert Darnton:

[...] mesmo depois de os livros terem adquirido sua forma moderna, por muito tempo a leitura continuou a ser uma experiência oral, desempenhada em público. Em algum momento indeterminado, talvez em alguns mosteiros no século VII e seguramente nas universidades do século XIII, as pessoas começaram a ler sozinhas em silêncio. É possível que a passagem para a leitura silenciosa tenha implicado uma maior adaptação mental do que a passagem para o texto impresso, pois ela fazia a leitura uma experiência individual e interior. (2010, p. 199)


            O cristianismo antigo ainda desempenhou um papel importante relativo à história do livro por adotar mais cedo que qualquer outro grupo social, o códex de papiro em lugar dos rolos. Segundo John Dominic Crossan, “nos anos 200, a proporção cristã de rolo para códice era de um para treze. Essa vitória do códice para o rolo aconteceu só devagar e tarde para a literatura grega, mas quase instantaneamente e logo para a literatura cristã” (2004, p. 170). É difícil explicar porque os manuscritos cristãos, desde os mais antigos que hoje dispomos, já eram códices; mas ao ajudar a popularizar essa nova tecnologia que diferente do rolo possibilitava consultas quase que instantâneas a qualquer ponto de um livro, os cristãos contribuíam com o futuro do livro como instrumento de pesquisa.



Pode-se imaginar que a partir do momento que o cristianismo galgou seu lugar no mundo gentílico, institucionalizando-se inclusive, o número de cópias dos textos e o número de leitores tenham aumentado bastante. No entanto, é preciso ter cautela para não superestimar os níveis de alfabetismo e as práticas de leitura do Império Romano. Para fechar essa seção, gostaríamos de citar algumas linhas de William V. Harris em Ancient Literacy (1989) que mostram que as condições de leitura bíblica não mudaram muito até o quarto século. Ele escreveu especificamente sobre o começo do cristianismo imperial sob Constantino:

Após a fundação de Constantinopla, em 324, o imperador escreveu a Eusébio para encomendar 50 volumes de pergaminho (somatia) das escrituras para as igrejas da nova capital. Sua ação não teve nenhum tipo de precedente clássico, e se originou de uma importante mudança cultural, a ascensão de uma religião patrocinada pelo Estado, que dependia muito da palavra escrita. Mas ao mesmo tempo a carta do imperador indica a continuidade das condições antigas, pois ele encomendou livros que a maior parte dos fiéis ouviria a partir de leituras em voz alta, e ele esperava que 50 volumes atendessem às necessidades espirituais da cidade capital. (Harris, 1989, p. 285)

2 comentários:

Samuka Martins disse...

Valeu Anderson, seu blog é imprescindível às minhas pesquisas.
Ao ler seu texto me lembrei de Bart, quando em seu livro relata Orígenes se queixando das cópias que dispunha. Ele diz:
"As diferenças entre os manuscritos se tornaram gritantes, ou pela nigligência de algum copista ou pela audácia perversa de outros; ou eles descuidam de verificar o que transcreveram ou, no processo de verificação, apagam ou acrescentam trechos, como mais lhe agrade." Isso é III século. O que é inerrância mesmo? kkkkkk
Acho que devemos resignificar a teologia ou até mesmo, ter a coragem de extinguí-la. Obrigado, Anderson pela sua contribuição.

Anônimo disse...

Valeu Anderson, muito bom.
Valderi Junior/ICEC