quinta-feira, 16 de agosto de 2012

O TEXTO E SUAS LACUNAS: CHICO BUARQUE




Estamos começando um novo estudo, que como sempre, tem por finalidade nos ensinar a ler textos bíblicos. Dessa vez o tema que nos importa são as "lacunas" das narrativas bíblicas.  Estamos falando de espaços deixados em branco que nem sempre são falhas ou carência de detalhes; essas lacunas podem mesmo ser propositais, e seja como for, se lá estão, acabam servindo para impulsionar a criatividade do leitor, que as preenche por conta própria.

Quando falamos dessas lacunas em relação à literatura bíblica, o estudo de tal recurso retórico mostra-se de especial complexidade. A confusão se instala mais na exegese bíblica do que noutras leituras, porque os estudiosos das metodologias de interpretação bíblica aprendem com muita ênfase a não criar sentidos durante a interpretação, a apenas averiguar o que o próprio texto está dizendo. A exegese por muito tempo afirmou que a busca do exegeta era pelo sentido literal do texto, e esta história acabou por “engessar” a criatividade da leitura bíblica.

Antes de falar de textos bíblicos, vamos lidar como exemplo de uma canção de Chico Buarque chamada “Aquela Mulher”, gravada no álbum “As Cidades” de 1999. O ponto que nos toca está logo no início da letra da canção, que começa dizendo:

Se você quer mesmo saber
Por que que ela ficou comigo
Eu digo que não sei.

            Já nessa primeira estrofe vemos que o autor faz uso de um narrador com identidade própria. Ou seja, não é o próprio Chico Buarque quem fala, mas um personagem seu, um homem que no tempo narrativo tem algum tipo de relação amorosa e sexual com uma mulher. Esta mulher é apenas mencionada, não atua, não fala, não aparece, porém, é construída como um valor desejado por dois sujeitos. O narrador é uma das partes interessadas, e a outra é representada por outro sujeito, também do sexo masculino, que convém chamarmos de narratário. Aí já podemos notar quantas informações estão implícitas, como o texto está construído como uma imitação da vida, de um diálogo entre dois homens que parecem desejar a mesma mulher. De tudo isso, o único elemento que podemos considerar uma realidade histórica extra-textual, é o desejo dos sujeitos do sexo masculino por outro do sexo feminino, e a possibilidade de que a coincidência dos seus desejos os faça atuar como anti-sujeitos, disputando de alguma forma o amor da mesma mulher.
            Mas o que há de mais importante é que o começo do texto não nos apresenta o verdadeiro começo do diálogo. Temos uma conversa incompleta; nos foi permitido ouvir apenas a voz de um dos sujeitos (o narrador), cuja fala já se constitui numa resposta a uma pergunta feita. Aqui temos uma verdadeira “lacuna” sugerida pelo texto. Sabemos que a pergunta que originou a resposta deve ter havido, porém, só podemos imaginá-la. A pergunta que o narratário teria feito ao narrador pode ser depreendida da própria resposta: ele perguntou por que a mulher ficou com o narrador.
Na estrofe seguinte há novas respostas, provavelmente oferecidas a outras perguntas feitas:

Se ela ainda tem seu endereço
Ou se lembra de você
Confesso que não perguntei

A grande atratividade da canção é a ironia com que o narrador responde àquelas perguntas aparentemente indiscretas e indesejadas. Ele mostra respeito aos contratos sociais de civilidade, mas provoca o seu rival de diversas maneiras, e a primeira delas é demonstrando desinteresse completo. Ele diz que durante as “noites”, o que já sugere a intimidade sexual entre ele e a mulher, eles não cuidam do mundo. É assim que ele explica porque (segundo ele) eles nunca conversaram sobre o narratário. Notemos que tal detalhamento é desnecessário; bastava dizer “não sei”, mas ele procura ressaltar provocativamente sua intimidade com a mulher dizendo coisas como “que noites de alucinação passo dentro daquela mulher”.
A ironia se dá pelo fato de o enunciado, o conteúdo da mensagem, que é provocador e até agressivo, negar o estilo ou o gênero. Apesar de tudo parecer uma conversa entre sujeitos civilizado, a provocação contraria as aparências, e atinge seu ápice quando na próxima estrofe o narrador passa a mencionar as supostas palavras da mulher, ditas, tudo leva a crer, exclusivamente a ele. Segundo sua explanação, a mulher teria dito que com “outros homens” sempre se exibiu e “até fingiu sentir prazer”, e que nunca soube antes dele “que o amor vai longe assim”. Tudo isso desqualifica o narratário, o primeiro amante da mulher; tudo desqualifica seu desempenho sexual, deslegitima-o como candidato a amante. É interessante sempre observar como em todas essas provocações, o narrador manteve-se “educado”, sendo capaz de diminuir seu anti-sujeito abertamente sem que isso fosse interpretado como agressão explícita. A ironia é o recurso que o permitiu fazê-lo.
Por fim, ele volta a nos lembrar que o motivador daquelas respostas foi o outro, dizendo: “Não foi você quem quis saber?”. Provavelmente, o narrador sentiu-se desafiado quando o ex-amante o havia abordado com perguntas sobre sua intimidade. Ele extrapolara alguns limites invisíveis ao questionar o outro querendo saber se a mulher se lembrava dele. Sentindo-se desafiado, o narrador parte em contra-ataque, e munindo-se da ironia luta por superar seu rival naquela disputa psicológica. Mas, como temos afirmado, isso tudo aconteceu antes de o texto começar, e por isso este é um caso em que nossa imaginação é instigada, convidada a participar do texto e criar junto com o autor. O que não poderíamos fazer, é criar novos diálogo, acrescentar palavras àquelas que o narrador disse. Isso o autor tomou para si, fez o trabalho completo. Contudo, também nos foi dado o direito de imaginar o final da história, e podemos conjeturar livremente sobre as possíveis reações do narratário, vendo-o constrangido, raivoso, envergonhado...
Por termos ouvido apenas a voz do narrador, que parece atacar o narratário em legítima defesa, obviamente nos identificamos com ele, desfrutamos da sua ironia e achamos “bem feito” que o outro tenha tido que suportar tais palavras. Mas a verdade é que não sabemos, nem nós nem o narratário, se toda aquela história é verdade ou mera ficção retórica. Nunca será possível saber se realmente a mulher disse aquelas coisas, se o amor deles é tão perfeito, se ela deveras despreza o antigo amante como o narrador quer fazer acreditar. Como expectadores, essas dúvidas nos são colocadas para que fiquem, não para que tentemos resolvê-las, o que seria, outra vez, superinterpretar o texto.
Ouça a canção em: http://www.youtube.com/watch?v=CQyBNfxEc2c

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