O
objetivo desse nosso novo empreendimento é oferecer algumas definições técnicas
e explicações práticas que ofereçam aos interessados nos fenômenos religiosos
de modo geral, instrumentos para melhor compreendê-los, avalia-los e criticá-los.
Vamos procurar entender como se constrói o discurso religioso, destacar algumas
das suas principais características, e quem sabe, teremos mais condições de
avaliar suas virtudes e fraquezas. Para começarmos a tratar do assunto, é
necessário oferecer algumas primeiras definições, o que nos ocupará nesta
primeira parte.
Quando
falamos de “discurso religioso”, nos referimos ao conteúdo de qualquer ato de
comunicação religiosa, sejam os sermões proferidos nos templos, sejam os textos
literários sagrados como a Bíblia ou o Corão, sejam livros didáticos produzidos
para “educar” prosélitos etc. Como qualquer outro ato comunicativo, o discurso
religioso é necessariamente dialógico, isto é, parte de um destinador (enunciador)
para um destinatário (enunciatário), e isso é verdade mesmo nos casos em que
esse destinatário é meramente um sujeito imaginário. Nos livros, por exemplo, o
autor oferece seus pontos de vista e suas argumentações tendo alguém em mente,
mas pode ser que seu livro, quando publicado e impresso, seja lido por um público
completamente diferente daquele que ele imaginou, e por isso, nem sempre a
comunicação atinge seus objetivos, nem sempre é compreendida como seu
destinatário pretendia que fosse.
Outro
fator que é relevante em relação a essa relação “dialógica” do discurso
religioso, é que ele é sempre ideológico, e de um modo não pejorativo, é
manipulador. Isso quer dizer que todo discurso religioso procura convencer seu
destinatário de algo, quer movê-lo, levá-lo a realizar alguma ação. Nalguns
casos o discurso religioso quer levar o destinatário à conversão, à adesão de
seus dogmas, seu modo de vida, seu quadro de valores. Mesmo quando algum
discurso pretende meramente informar, ele informa para algum propósito prático,
por exemplo, para levar o sujeito “informado” à reflexão que objetiva seu
amadurecimento e consequentemente a um novo modo de viver. Com isso, não
estamos querendo dizer que o discurso religioso é opressor, dominador ou coisa
assim; ele pode ser, como todo tipo de discurso existente no mundo, porém, como
todo tipo de discurso, ele procura atingir seu destinatário e convencê-lo.
De
posse dessa informação, importa continuar investigando o discurso religioso,
que na verdade são “discursos” no plural, para verificar que mecanismos eles
usam para atingir seus objetivos. Podemos nos perguntar quais são os “truques”
que determinado discurso religioso (que poderíamos considerar bem sucedido por ser
capaz de convencer muitos destinatários seus à adesão e obediência) tem empregado?
Também podemos perguntar o que falta, ou o que tem sido desinteressante noutros
discursos que não conseguem convencer os outros? Logo notaremos que essa
avaliação sobre os discursos de sucesso ou de fracasso podem ser bastante
desonestas. Alguns discursos na verdade utilizam-se de manobras que poderíamos
considerar impróprias para atingir seus objetivos, mostram-se mais agressivos,
dirigem-se a públicos específicos e procuram atingi-los em suas maiores
fraquezas, enquanto outro parecem mesmo desinteressados numericamente falando, e
por isso mesmo são mais informativos do que convidativos. Aqui, a princípio não
temos o interesse em elogiar ou depreciar qualquer discurso religioso, embora
isso seja de certa forma inevitável no final das contas. Para que não nos
mostremos agressivos, vamos empregar nossos conceitos e instrumentos de análise
a textos bíblicos, discursos religiosos antigos que podem ser criticados de
maneira mais impessoal. Mas antes, convém definir ainda o que aqui estamos
chamando de “manipulação”.
Se
como já afirmamos todo discurso quer nos convencer de algo ou para algo, e isso
é tentar manipular o outro. A manipulação, portanto, não precisa ser imposta,
não precisa ser contínua, e nem precisa ter más intenções, como poderíamos
supor. Há basicamente quatro tipos de “manipulações”, identificadas e definidas
nos manuais de Semiótica Discursiva.
Vamos a elas:
A
primeira maneira de manipular um destinatário de um ato qualquer de comunicação
é chamada de “tentação”. Na tentação, o produtor do discurso tenta convencer o
destinatário a fazer algo por meio de uma espécie de suborno, pela oferta de
valores que este destinatário deseja. Assim, para que a manipulação seja
eficaz, é preciso que a oferta seja interessante, desejável. O sujeito é levado
a fazer ou a crer no manipulador para que venha a adquirir o que deseja. A tentação,
portanto, é ineficaz quando a oferta não é tão desejável.
A
segunda forma de manipulação é a chamada “intimidação”. Ao contrário da
primeira, em vez de oferecer valores interessantes, na intimidação o
manipulador ameaça retirar do seu destinatário algum(s) valor(es) que ele
possui, ou acrescentá-lo valores que ele não deseja. Uma típica intimidação
religiosa é a ameaça do inferno, que pode ser compreendida como a ameaça de se
perder a paz, a saúde, a vida, a família etc, dependendo do contexto. O
religioso assim é induzido a praticar atos que talvez não desejasse, por medo
de sofrer tais consequências.
A
terceira forma de manipulação é a “sedução”. Agora já não se trata de promessas
e ameaças, mas de exaltações sinceras ou não, que o manipulador faz em relação
às características do destinatário. O sedutor é aquele que tenta convencer o
outro elogiando-o, notando ou até destacando com exagero as suas virtudes; esse
ato aparentemente benévolo, indiretamente leva o destinatário a agir para
confirmar os elogios feitos. Por exemplo, uma mulher pode chamar um homem para
matar uma barata em seu lugar dizendo: “Eu te chamei porque você é um homem tão
corajoso...”. Diante da declaração feita em relação a sua coragem, o tal homem
se vê forçado a confirmar sua coragem matando a barata, para que o conceito que
a mulher tem dele não seja alterado.
Enfim,
também pode-se manipular alguém por meio da “provocação”. Neste caso, em vez de
exaltar as características do outro, o manipular deprecia-as, e da mesma forma
o destinatário se sente forçado a agir, desta vez para alterar a ideia negativa
que o outro faz dele. Aproveitando o exemplo anterior, poderíamos imaginar
agora que a mulher diz ao mesmo homem e na mesma situação: “Eu tenho medo de
barata, mas nem sei por que te chamei, pois você também não teria coragem de matá-la”.
Na próxima seção,
vamos começar nossa análise dos discursos religiosos falando sobre um texto
bíblico que exemplifica muito bem esses quatro tipos de manipulações. Vamos ler
o Evangelho de Mateus 4.1-11, onde encontramos uma narrativa que popularmente é
conhecida como “As Tentações de Jesus”.
Um comentário:
Boa tarde Anderson, excelente explicação, obrigado pelas suas postagens são muito interessantes e de grande valor para meus estudos.
Valderi Junior - ICEC
Postar um comentário