Já
dedicamos algumas páginas à análise dos discursos religiosos, mas até então,
nossas observações se resumiram ao conteúdo dos discursos. Nossa atenção esteve
voltada para as ofertas, tentações, intimidações... Desta feita nossa análise
dos discursos religiosos se voltará para questões externas, para recursos retóricos,
características literárias, estratégias empregadas durante o processo de
enunciação dos discursos que têm por objetivo conduzir o leitor à aceitação dos
valores defendidos no texto. Passamos a outro nível da linguagem, o discursivo,
e já não será apenas o conteúdo que nos importará, mas principalmente o modo
como esse é transmitido.
Conhecemos diversas estratégias
linguísticas que visam criar no texto sentidos de realidade, objetividade,
imparcialidade, e é claro que esses recursos são abundantemente empregados nos
textos religiosos. Sabemos, por exemplo, que a narração em terceira pessoa
transmite ao leitor a impressão de distanciamento, de racionalidade, diferente
da passionalidade comum aos textos narrados em primeira pessoa. Não é por acaso
que os textos acadêmicos são narrados em terceira pessoa, e geralmente no
plural, para o leitor tenha a sensação de estar lendo teses, hipóteses e
argumentos não de um sujeito individual, mas de toda uma comunidade científica.
Assim, em vez de dizer “minha hipótese é...”, o acadêmico diz “nossa hipótese
é...”. Também são recursos desse tipo o emprego de muitas aspas com citações
alheias que servem mais para confirmar uma ideia defendida do que propriamente
para acrescentar algo novo. Nas citações, o autor toma emprestado a autoridade
de outro, tenta nos convencer por meio de breves fragmentos descontextualizados
de que suas afirmações são verdadeiras e de ampla aceitação. Apesar da aparente
objetividade desse linguajar acadêmico, a própria evolução de cada uma das
áreas do conhecimento humano é prova de que mesmo os argumentos mais bem desenvolvidos
acabam, num momento futuro, sendo reconsiderados.
Outro exemplo de discurso que faz
uso abundante desses recursos retóricos é o discurso jornalístico. Faz-se na
imprensa o uso constante de citações, exibe-se amostras de documentos, trechos
de supostas gravações telefônicas, e tudo isso passa a ideia de que realmente
foi empreendida uma grande investigação. Apesar de toda a informação ser
selecionada e interpretada pelo autor do discurso, têm-se a impressão de que
este apenas está transmitindo a notícia, contando os fatos sem emitir opiniões
pessoais ou fazer julgamentos; isso, contudo, é mera sensação criada pelo modo
como o texto está construído, é o resultado das estratégias literárias bem
empregadas para convencer o outro. O curioso é que lendo os jornais, pensamos
que as evidências de um determinado crime que anunciam parecem claras, e somos
conduzidos a fazer julgamentos precipitados; depois, quando um verdadeiro
julgamento ocorre, os advogados tratam de esclarecer quantas daquelas
evidências podem ser interpretadas de outras maneiras, como um olhar diferente
revela a insuficiência das provas, e nós, que só tivemos acesso à informação parcial
dos jornais, ficamos revoltados quando os supostos criminosos são inocentados e
não compreendemos como aquelas “provas indiscutíveis” não foram consideradas.
Nesses textos jornalísticos, também
encontramos o uso abundante de menções a lugares, datas precisas, horários
exatos, nomes completos, idade e profissão de pessoas envolvidas na notícia... Muitas
vezes, se prestarmos atenção podemos notar que muitos desses detalhes eram simplesmente
desnecessários, porém, eles também são recursos retóricos. O vínculo que este
detalhamento cria com a suposta realidade histórica faz o destinatário sentir
que o assunto realmente aconteceu como está sendo narrado. Amarrar a ficção com
aquilo que nos parece histórico confunde nosso senso de realidade, assim como também
o seu contrário, quando elementos fantásticos nos levam desacreditar os fatos
possivelmente históricos que estão contidos num determinado discurso.
Falamos de discursos acadêmicos e
jornalísticos porque ambos são bons exemplos de como algumas estratégias podem
produzir o sentido de distanciamento entre os fatos narrados e o próprio
narrador, passando a impressão de imparcialidade, objetividade. Mas também
devemos considerar as estratégias contrárias, que procuram aproximar o leitor
através de discursos mais passionais.
Tomemos como exemplo agora os
discursos publicitários. Um dos recursos retóricos empregados pelos
publicitários é criar uma identificação entre o produto que oferecem e o
público. Para isso, eles precisam determinar com exatidão seu público alvo, e
produzir discursos capazes de atingi-los. Temos assim a criação de um
destinatário da mensagem, um estereótipo que o discurso quer manipular. Por
vezes, podemos mesmo notar que tal mensagem não nos causa nenhum interesse, mas
isso pode ser apenas um resultado previamente previsto; ou seja, pode ser que
não estejamos entre os sujeitos que são “alvos” da mensagem. Para criar
identificação com o destinatário, é sempre melhor usar uma linguagem mais
informal, narrações em primeira pessoa, se dirigir ao outro como “você”, criar
cenários com os quais o outro se identifique. É assim que procedem, por
exemplo, os políticos antes das eleições. Se eles querem atingir os
evangélicos, aparecem na TV com ternos, bíblias, visitam igrejas, terminam seus
discursos falando de Deus... O objetivo é fazer com o público evangélico pense
que o tal candidato é “um deles”. Caso determinada empresa automobilística
queira vender um carro luxuoso e de valor elevado, ela tentará atingir um
público de poder econômico elevado com imagens que enaltecem o conforto, a
classe ou o status das pessoas que possuem tal automóvel, e fará o seu carro
circular em lugares bonitos, com ruas limpas e sem trânsito.
Literariamente, vemos que para obter
esse efeito de proximidade, de identificação, o autor cria personagens,
cenários e enredos que parecem reais para seu público. Isso também acontece nos
discursos religiosos; na Bíblia, Jesus, seus discípulos e os fariseus, são personagens
que mudam de acordo com os interesses dos autores. Como eles são verdadeiros
papéis temáticos, poderemos sempre notar que Jesus fala o que Deus falaria, que
não erra, que não se confunde, e é de quem podemos esperar sempre verdades
absolutas. Por outro lado, os discípulos são os personagens com os quais os
leitores dos evangelhos deveriam se identificar, e se numa comunidade eles
precisavam ser repreendidos, Jesus trata nos textos de chamar a atenção deles;
mas se noutro grupo os discípulos precisam de consolo e motivação, Jesus trata
de exaltá-los e reafirmar o privilégio que eles têm. Os fariseus não são
diferentes, como rivais, assumem a cada evangelho novas características que
facilitam a identificação desses personagens com os rivais concretos do grupo
que produzia o evangelho.
Ainda falando dos evangelhos, vemos
que seus narradores, embora sejam diferentes entre si, assumem características
comuns. Nenhum deles tem nome, não estão envolvidos pessoalmente na história
que contam e por isso narram sempre em terceira pessoa, possuem conhecimentos
privilegiados que só eles e Deus poderiam ter, estão sempre de acordo com
Jesus, procuram se ocultar deixando muitos dizeres importantes por conta dos
próprios personagens... Nas chamadas “cartas paulinas”, por sua vez, as
estratégias do narrador são outras. Ele usa a primeira pessoa, e embora diga
que a carta seja de autoria coletiva, fala como se só houvesse um autor a maior
parte do tempo, e este autor assume a personalidade de um apóstolo Paulo ideal.
Enfim, vamos a seguir nos dedicar a alguns poucos fragmentos religiosos,
bíblicos ou não, para ver mais de perto o funcionamento desses recursos
retóricos que temos discutido.
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