terça-feira, 21 de agosto de 2012

OS DISCURSOS RELIGIOSOS E SEUS RECURSOS RETÓRICOS


Já dedicamos algumas páginas à análise dos discursos religiosos, mas até então, nossas observações se resumiram ao conteúdo dos discursos. Nossa atenção esteve voltada para as ofertas, tentações, intimidações... Desta feita nossa análise dos discursos religiosos se voltará para questões externas, para recursos retóricos, características literárias, estratégias empregadas durante o processo de enunciação dos discursos que têm por objetivo conduzir o leitor à aceitação dos valores defendidos no texto. Passamos a outro nível da linguagem, o discursivo, e já não será apenas o conteúdo que nos importará, mas principalmente o modo como esse é transmitido.
            Conhecemos diversas estratégias linguísticas que visam criar no texto sentidos de realidade, objetividade, imparcialidade, e é claro que esses recursos são abundantemente empregados nos textos religiosos. Sabemos, por exemplo, que a narração em terceira pessoa transmite ao leitor a impressão de distanciamento, de racionalidade, diferente da passionalidade comum aos textos narrados em primeira pessoa. Não é por acaso que os textos acadêmicos são narrados em terceira pessoa, e geralmente no plural, para o leitor tenha a sensação de estar lendo teses, hipóteses e argumentos não de um sujeito individual, mas de toda uma comunidade científica. Assim, em vez de dizer “minha hipótese é...”, o acadêmico diz “nossa hipótese é...”. Também são recursos desse tipo o emprego de muitas aspas com citações alheias que servem mais para confirmar uma ideia defendida do que propriamente para acrescentar algo novo. Nas citações, o autor toma emprestado a autoridade de outro, tenta nos convencer por meio de breves fragmentos descontextualizados de que suas afirmações são verdadeiras e de ampla aceitação. Apesar da aparente objetividade desse linguajar acadêmico, a própria evolução de cada uma das áreas do conhecimento humano é prova de que mesmo os argumentos mais bem desenvolvidos acabam, num momento futuro, sendo reconsiderados.
            Outro exemplo de discurso que faz uso abundante desses recursos retóricos é o discurso jornalístico. Faz-se na imprensa o uso constante de citações, exibe-se amostras de documentos, trechos de supostas gravações telefônicas, e tudo isso passa a ideia de que realmente foi empreendida uma grande investigação. Apesar de toda a informação ser selecionada e interpretada pelo autor do discurso, têm-se a impressão de que este apenas está transmitindo a notícia, contando os fatos sem emitir opiniões pessoais ou fazer julgamentos; isso, contudo, é mera sensação criada pelo modo como o texto está construído, é o resultado das estratégias literárias bem empregadas para convencer o outro. O curioso é que lendo os jornais, pensamos que as evidências de um determinado crime que anunciam parecem claras, e somos conduzidos a fazer julgamentos precipitados; depois, quando um verdadeiro julgamento ocorre, os advogados tratam de esclarecer quantas daquelas evidências podem ser interpretadas de outras maneiras, como um olhar diferente revela a insuficiência das provas, e nós, que só tivemos acesso à informação parcial dos jornais, ficamos revoltados quando os supostos criminosos são inocentados e não compreendemos como aquelas “provas indiscutíveis” não foram consideradas.
            Nesses textos jornalísticos, também encontramos o uso abundante de menções a lugares, datas precisas, horários exatos, nomes completos, idade e profissão de pessoas envolvidas na notícia... Muitas vezes, se prestarmos atenção podemos notar que muitos desses detalhes eram simplesmente desnecessários, porém, eles também são recursos retóricos. O vínculo que este detalhamento cria com a suposta realidade histórica faz o destinatário sentir que o assunto realmente aconteceu como está sendo narrado. Amarrar a ficção com aquilo que nos parece histórico confunde nosso senso de realidade, assim como também o seu contrário, quando elementos fantásticos nos levam desacreditar os fatos possivelmente históricos que estão contidos num determinado discurso.
            Falamos de discursos acadêmicos e jornalísticos porque ambos são bons exemplos de como algumas estratégias podem produzir o sentido de distanciamento entre os fatos narrados e o próprio narrador, passando a impressão de imparcialidade, objetividade. Mas também devemos considerar as estratégias contrárias, que procuram aproximar o leitor através de discursos mais passionais.
            Tomemos como exemplo agora os discursos publicitários. Um dos recursos retóricos empregados pelos publicitários é criar uma identificação entre o produto que oferecem e o público. Para isso, eles precisam determinar com exatidão seu público alvo, e produzir discursos capazes de atingi-los. Temos assim a criação de um destinatário da mensagem, um estereótipo que o discurso quer manipular. Por vezes, podemos mesmo notar que tal mensagem não nos causa nenhum interesse, mas isso pode ser apenas um resultado previamente previsto; ou seja, pode ser que não estejamos entre os sujeitos que são “alvos” da mensagem. Para criar identificação com o destinatário, é sempre melhor usar uma linguagem mais informal, narrações em primeira pessoa, se dirigir ao outro como “você”, criar cenários com os quais o outro se identifique. É assim que procedem, por exemplo, os políticos antes das eleições. Se eles querem atingir os evangélicos, aparecem na TV com ternos, bíblias, visitam igrejas, terminam seus discursos falando de Deus... O objetivo é fazer com o público evangélico pense que o tal candidato é “um deles”. Caso determinada empresa automobilística queira vender um carro luxuoso e de valor elevado, ela tentará atingir um público de poder econômico elevado com imagens que enaltecem o conforto, a classe ou o status das pessoas que possuem tal automóvel, e fará o seu carro circular em lugares bonitos, com ruas limpas e sem trânsito.
            Literariamente, vemos que para obter esse efeito de proximidade, de identificação, o autor cria personagens, cenários e enredos que parecem reais para seu público. Isso também acontece nos discursos religiosos; na Bíblia, Jesus, seus discípulos e os fariseus, são personagens que mudam de acordo com os interesses dos autores. Como eles são verdadeiros papéis temáticos, poderemos sempre notar que Jesus fala o que Deus falaria, que não erra, que não se confunde, e é de quem podemos esperar sempre verdades absolutas. Por outro lado, os discípulos são os personagens com os quais os leitores dos evangelhos deveriam se identificar, e se numa comunidade eles precisavam ser repreendidos, Jesus trata nos textos de chamar a atenção deles; mas se noutro grupo os discípulos precisam de consolo e motivação, Jesus trata de exaltá-los e reafirmar o privilégio que eles têm. Os fariseus não são diferentes, como rivais, assumem a cada evangelho novas características que facilitam a identificação desses personagens com os rivais concretos do grupo que produzia o evangelho.
            Ainda falando dos evangelhos, vemos que seus narradores, embora sejam diferentes entre si, assumem características comuns. Nenhum deles tem nome, não estão envolvidos pessoalmente na história que contam e por isso narram sempre em terceira pessoa, possuem conhecimentos privilegiados que só eles e Deus poderiam ter, estão sempre de acordo com Jesus, procuram se ocultar deixando muitos dizeres importantes por conta dos próprios personagens... Nas chamadas “cartas paulinas”, por sua vez, as estratégias do narrador são outras. Ele usa a primeira pessoa, e embora diga que a carta seja de autoria coletiva, fala como se só houvesse um autor a maior parte do tempo, e este autor assume a personalidade de um apóstolo Paulo ideal. Enfim, vamos a seguir nos dedicar a alguns poucos fragmentos religiosos, bíblicos ou não, para ver mais de perto o funcionamento desses recursos retóricos que temos discutido.

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