quarta-feira, 27 de outubro de 2010

AS LIÇÕES DE ANANIAS E SAFIRA (Parte IV)

Para abordar a próxima peculiaridade literária desta narrativa (que aliás é bem mais problemática que a anterior), vamos primeiro esboçar a estrutura sob a qual foi construída esta narrativa. Observemos no quadro abaixo, como podemos facilmente estruturar o texto distinguindo nele seções que diferenciam-se umas das outras pelas transições entre vozes narrativas e personagens. Em linhas gerais, tal comparação nos leva à conclusão de que temos duas vezes a mesma história sendo contada, uma para Ananias e outra para Safira:

ANANIAS

SAFIRA

Introdução do narrador: chegada à comunidade (v. 1-2)

Introdução do narrador: chegada à comunidade (v. 7)

Intervenção de Pedro: acusação de Ananias (v. 3-4)

Intervenção de Pedro: diálogo com Safira (v.8-9)

Conclusão do narrador: morte, sepultamento e medo coletivo (v. 5-6)

Conclusão do Narrador: morte, sepultamento e medo coletivo (v. 10-11)

Temos em ambas as partes uma fala introdutória do narrador. A introdução à história da morte de Safira pôde ser mais econômica (v. 7), já que o leitor está ciente de que ela estava de acordo com seu marido na venda da propriedade e na tentativa de enganar a comunidade. Depois, na intervenção em primeira pessoa na voz de Pedro, a mesma acusação feita sob Ananias (de que Satanás enchera seu coração e de que ele mentia ao Espírito Santo) parece ser válida para Safira. O autor então enriquece a segunda parte de sua narrativa fazendo da intervenção de Pedro um diálogo (v. 8-9), ainda que Safira só tenha a oportunidade de dizer duas palavras. Por fim o narrador retorna com uma conclusão bem semelhante, mas que como era de se esperar, é um pouco mais detalhada que aquela primeira conclusão provisória.

Não parece que após a morte de Ananias temos uma mera repetição daquilo que já lemos? Nos perguntamos, neste caso, se era realmente necessário dividir a narrativa desta maneira, fazendo Ananias e Safira morrerem separadamente. Não poderiam os dois personagens apresentarem-se e morrerem juntos já que estavam em comum acordo? São as duas partes da narrativa essenciais ou será que a seção sobre Safira não passa de um elemento adicional? E se há realmente dois elementos distintos, um constituinte e outro adicional, porque este segundo foi aí incluso? Para responder a este problema os exegetas levantaram muitas hipóteses, e nós teremos que observar algumas delas, ainda que nenhuma seja definitiva.

Lendo a respeito desta narrativa de Atos encontramos a hipótese de que o texto demonstra que Safira não precisaria morrer junto com seu marido se fosse honesta; cada um deles teria tido a chance de viver, mas ambos preferiram a tentativa de enganar a comunidade para obter vantagens. Essa é a proposta mais conservadora, resumida nas palavras de Werner de Boor: “A princípio, ela (Safira) é apenas cúmplice. Por isso Pedro, ao questioná-la, lhe dá a possibilidade do arrependimento. Por meio dessa pergunta ela poderá se liberar da mentira e dizer a verdade”. Outra proposta é feita por Pablo Richard, a de que o autor tenha tentado diferenciar a morte de Safira, que não atribui às escolhas econômicas como acontece com Ananias; a culpa de Safira estaria em sua submissão a um modelo matrimonial antiquado. Porém, Safira não foi retratada em nenhum momento como uma mulher “escrava” do casamento, e a unicidade das opiniões do casal é descrita como um pressuposto natural. Pessoalmente discordo de ambas as hipóteses.

Uma terceira hipótese foi levantada por Daniel Marguerat, que viu uma relação entre Atos 5.1-11 e a narrativa da queda de Adão e Eva de Gênesis 3. Essa proposta explica a repetição aparentemente desnecessária a partir da influência de um arquétipo do Antigo Testamento, fenômeno comum de intertextualidade bíblica que Robert Alter chama de adoção “cenas padrão”. Sem dúvida a adoção de um modelo narrativo de condenação divina herdado do Antigo Testamento solucionaria o problema da repetição da história com Safira, mas mesmo tomando conhecimento da hipótese de Marguerat, há detalhes na defesa dessa relação entre Gênesis e Atos que ainda precisariam ser revistos. A tentativa de enganar a Deus, a influência de Satanás, a pergunta feita ao casal individualmente para destacar através das respostas a intenção de enganar, e a sequência da narrativa que primeiro apresenta o diálogo do homem e depois o da mulher, são pontos favoráveis à proposta de Marguerat, mas há também pontos desfavoráveis. Ananias e Safira não são membros da comunidade, estão apenas entrando, e ler a cena como um pecado original que acarretará em tristes conseqüências daí por diante parece um exagero. O pecado do casal de Gênesis também não possui qualquer conotação econômica, e aqui em Atos Satanás não é tão presente, e não está entre os “condenados”.

Todas as propostas me parecem excessivamente criativas. Segundo as definições de H. Porter Abbott, estaríamos testemunhando um caso de “overreading” (superleitura), ou nos guiando pelas palavras de Umberto Eco, diríamos que se tratam de “superinterpretações” do texto. Trata-se de casos nada incomuns em que os leitores lêem mais do que deveras está escrito. Procurando preencher as lacunas deixadas pela própria narrativa, o leitor é tentado a criar essas leituras adaptativas, que ao menos para eles solucionam a tensão deixada pelo texto. Neste caso específico, a impressão é que para solucionar o aparente problema os intérpretes forçam uma leitura independente da morte de Safira, porém, isso contraria um princípio bíblico bem conhecido, que é a falta de autonomia dos seus personagens. Observa-se que em geral os personagens bíblicos não existem, pensam ou agem de maneira independente, mas sempre em relação com uma figura central na narrativa. A autonomia de Safira em relação a Ananias na segunda parte da narrativa, além pressupor uma autonomia incomum à personagem, contraria a afirmação feita no início de que eles estavam de acordo naquele projeto.

Então, qual é a minha própria hipótese? Talvez esta seja a mais simples de todas. Defendo que tal duplicidade aparentemente desnecessária foi empregada apenas com a função de dar maior ênfase no ensinamento; a repetição seria apenas a maneira lucana de “grifar” passagens que lhe parecem mais significativas. Há décadas tal característica foi notada por Roland Barthes, que dedicou-se à análise de Atos 10 e 11. Há outros exemplos, como o relato da conversão de Paulo que repete-se três vezes ao longo do livro, gravando na memória do leitor a pergunta “Saulo, Saulo, por que me persegues?” (At 9.4; 22.7; 26;14). Se esse realmente for um recurso utilizado em Atos para dar ênfase a temas relevantes para o autor, e se este mesmo recurso puder ser aplicado na compreensão da narrativa de Ananias e Safira, então temos que encerrar nossa análise dizendo que o exemplo positivo narrado em 4.36-37 não recebeu o mesmo destaque no livro por se tratar de uma mensagem de pouca importância para seus destinatários, ou porque tal mensagem já está enfatizada noutro ponto. Aqui especificamente o tema em pauta era “como não ingressar na comunidade cristã primitiva”.

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