terça-feira, 21 de janeiro de 2014

SALMO 2 – O CANTO DE UM OPRESSOR



Tenho trabalhado com o Salmo 2 há um tempo, servindo-me dele nas minhas aulas de exegese. Geralmente me lembro de empregá-lo quando surge a necessidade de tratar de algumas questões técnicas relativas à literatura bíblica, principalmente no que diz respeito às características de sua enunciação. Mas o que me motivou a escrever sobre esse texto é seu conteúdo, que é surpreendentemente estranho à Bíblia de um modo geral (ou pelo menos à leitura que dela costumamos fazer).
Os textos bíblicos, como quaisquer textos, são usados por seus leitores para diferentes finalidades. Não é difícil encontrar leitores empregando a Bíblia para legitimar suas próprias ideias. Mas apesar dessa autonomia interpretativa exercida pelo leitor, a maioria deles encontram nas páginas da Bíblia conteúdos que incentivam o amor ao próximo, a caridade, a religiosidade... O Salmo 2 me surpreendeu justamente porque não lida com esses conteúdos mais habituais; antes, é um texto ideologicamente maligno. Noutras palavras, é um texto ditatorial, que justifica a violência e a opressão, e eu nunca tinha notado isso.
No estudo que farei empregarei a versão de João Ferreira de Almeida Revista e Corrigida (ARA), e isso simplesmente porque estou mais acostumado a ler o Salmo nessa versão. Farei ainda alguns comentários sobre as questões técnicas, conjeturas sobre o contexto social e histórico, mas com brevidade, para que a análise não se desvie de seus objetivos iniciais.
Façamos a leitura dos primeiros versículos:
1 Por que se enfurecem os gentios e os povos imaginam coisas vãs?
2 Os reis da terra se levantam, e os príncipes conspiram contra o SENHOR e contra o seu Ungido, dizendo:
3 “Rompamos os seus laços e sacudamos de nós as suas algemas”.
As primeiras palavras nos colocam em contato com o narrador, sujeito anônimo como geralmente acontece na Bíblia. Ele nos fala de eventos e personagens bem específicos, que parecem nos remeter ao período monárquico em Judá, também chamado de Reino do Sul (em oposição a Israel, Reino do Norte), antes da invasão babilônica e do exílio. Não cheguei a empreender pesquisas extra-textuais que me permitissem apontar com maior precisão se esse texto condiz com algum momento histórico vivido por aquele reino, mas o que importa é que o mundo do texto, o cenário criado, nos remete à monarquia judaíta em dias de apogeu.
Segundo o narrador, os gentios, que são todos os que não são de Judá, planejam inutilmente se libertar do domínio político que este exercia sobre eles. Os gentios supostamente clamavam por liberdade e planejavam um motim contra Judá, o dominador. O versículo 3 deixa isso muito claro: Judá e os hebreus, que na maior parte de sua história estiveram sujeitos a reinos e impérios, surpreendentemente estão por cima. Daí minha estranheza frente ao contexto sugerido pelo texto; estamos ouvindo a voz do opressor, e não do oprimido como quase sempre acontece.
Peço licença para falar do que o texto não diz: Normalmente, o domínio de um reino sobre o outro era expresso de forma violenta, num controle militar rigoroso, na expropriação de terras, na escravização das pessoas, na cobrança de taxas... Imagino, portanto, que era desse tipo o domínio que Judá poderia estar exercendo sobre algumas nações vizinhas, domínio sempre ditatorial que o texto figurativiza através de expressões como laços e algemas.
Vale destacar que o plano de liberdade dos gentios, dos reis da terra, é considerado inútil por esse narrador porque ele acredita que o domínio de Judá é um estado que o próprio Deus estabeleceu. Por isso, no versículo 2 ele diz que se levantar contra Judá é lutar contra Deus. Também diz que o rei de Judá é o “Ungido”, isto é, aquele que Deus elegeu e capacitou para exercer uma missão especial.
A prova de que sua confiança na manutenção do domínio judaíta está em Deus aparece nos próximos versículos:
4 Ri-se aquele que habita nos céus; o Senhor zomba deles.
5 Na sua ira, a seu tempo, lhes há de falar e no seu furor os confundirá.
6 “Eu, porém, constituí o meu Rei sobre o meu santo monte Sião”.
Os versículos 4 e 5 falam de Deus. Como é comum nos textos bíblicos, um narrador onisciente e anônimo fala como quem conhece Deus, como quem entende seus planos, ouve sua voz. A suposta rebelião dos gentios seria dissipada pela ira de Deus, que é tão superior, são poderoso, que ri dos rebeldes e de seus projetos libertários.
Sugiro que o meu leitor atente para o versículo 6, e para o fato de que eu o coloquei entre aspas. Fiz isso porque entendo que nesse ponto o narrador cita o próprio Deus. Entenda: o narrador continua falando, mas usa a voz de Deus, seu personagem, como um recurso literário, com propósitos estilísticos e retóricos. O problema é que isso não está indicado no texto por nenhum sinal gráfico nem por palavras; cabe ao leitor atento descobrir de quem é as palavras. Essa é uma das questões técnicas às quais me referi no começo: os salmos não costumam marcar para o leitor as transições da voz narrativa; não costumam anunciar quem está se expressando com a clareza que vemos, por exemplo, nos evangelhos.
Seja como for, o conteúdo que as supostas palavras divinas querem transmitir é simples: Foi Deus quem instituiu o rei de Judá, que habita provavelmente num palácio localizado no Monte Sião, que é Jerusalém. Isso, como vimos, já fora dito pelo narrador, mas agora é Deus quem fala, e isso torna qualquer asserção mais confiável para o leitor.
Seguindo como a leitura, eu acredito que há uma nova transição não anunciada pelo narrador. Eu diria que a partir do versículo 7 quem fala não é nem o narrador, nem Deus, mas o próprio rei, também chamado de Ungido. Todavia, o tal Ungido também faz como o narrador e cita supostas palavras de Deus:
7“Proclamarei o decreto do SENHOR: Ele me disse:
8 ‘Tu és meu Filho, eu, hoje, te gerei.
Pede-me, e eu te darei as nações por herança
e as extremidades da terra por tua possessão.
9 Com vara de ferro as regerás e as despedaçarás como um vaso de oleiro’”.
O objetivo dessas linhas é anunciar um decreto divino, que elegeu este tal rei para exercer o cargo de governante de Judá e, por meio desse cargo, das nações das redondezas. O decreto deixa claro que ele tem o direito de dominar toda a terra, isto é, de fundar um verdadeiro império.
O rei ganha um novo epíteto, o de Filho de Deus, e isso tem conduzido muitos leitores a ignorar os problemas desse texto em nome de uma leitura cristológica. Sua proximidade para com Deus é, portanto, fator determinante para que se aceite seu domínio como um domínio divinamente fundamentado.
Para os leitores mais devotos, ofereço dois argumentos para defender a posição de que esse rei não é Jesus: Primeiro, sabemos que esse império israelita ou judaíta nunca existiu. Embora não saibamos com exatidão de que período histórico esse texto está falando (se é que fala de algum), é fato que Judá não exerceu um domínio tão extenso e duradouro quanto o que autor acredita que exerceria. Segundo, o versículo 9 nos mostra que o projeto imperialista desse Ungido é violento, ditatorial, maligno... Ele quer que Judá despedace seus dominados, e não sei como isso pode ser lido como um projeto divino.
Enfim, discordo do projeto ideológico do salmo; discordo de sua teologia, de sua política, e conhecendo um pouco da história fico feliz por saber que esse judeu não realizou seus objetivos. Mas passemos às últimas estrofes dessa poesia ditatorial que por algum motivo desconhecido ganhou um lugar privilegiado no cânon bíblico:
10 Agora, pois, ó reis, sede prudentes; deixai-vos advertir, juízes da terra.
11 Servi ao SENHOR com temor e alegrai-vos nele com tremor.
12 Beijai o Filho para que se não irrite, e não pereçais no caminho; porque dentro em pouco se lhe inflamará a ira.
Bem-aventurados todos os que nele se refugiam.
O narrador retoma o controle e cala seus personagens. Depois de várias linhas empenhado em nos fazer acreditar que esse reino é divinamente fundamentado, e que seu governante é uma espécie de líder messiânico, ele passa ao que realmente queria. O narrador coloca os imperativos, dá ao leitor as ordens que queria transmitir desde o começo.
Ele pede aos narratários, os reis da terra, que sejam prudentes, que se deixem advertir pelo salmo, que sirvam ao Senhor com alegria e respeito, e que se submetam ao domínio exercido pelo rei que habita em Jerusalém. Na verdade, o salmo nada mais é que uma tentativa de suprimir a revolta dos gentios, anunciada nos primeiros versos. Para convencer seus narratários, para levá-los finalmente a aceitar o contrasto proposto, ele usa de vários recursos: 1) ele usa principalmente de intimidação; ameaça-os com a ira de Deus, que segundo ele está prestes a se irritar com os rebeldes que não aceitam servi-lo (isto é, submeter-se ao governo de Judá); 2) ao mesmo tempo lhes oferece segurança, refúgio àqueles que atendem a seus pedidos, que beijam o filho e passivamente se deixam dominar; 3) e ainda provoca dizendo que seu modo de agir é imprudente, já que seria prudente deixar-se advertir.
Lido o texto, passo a propor algumas poucas reflexões de caráter mais pragmático.
·       O texto que lemos nos mostra que a Bíblia não é unânime, não apresenta apenas um tipo de religiosidade, não defende apenas um projeto político ou social e, portanto, não é um simples guia para a vida cristã como muitos acreditam. A Bíblia deve ser lida como um registro de diferentes pontos de vista, de diferentes momentos históricos, e que não podem ser recebidos sem a devida reflexão. A Bíblia é apenas um ponto de partida para nossas próprias experiências, uma inspiração, cheia de bons e maus exemplos que ao cabo sempre podem nos instruir. Assim, uma leitura fundamentalista, que pretende “viver”, obedecer cada imperativo contido em suas páginas, só pode resultar em confusão.
·       Se o leitor concordou comigo e chegou à conclusão de que esse texto defende um projeto ditatorial, será obrigado a admitir que o relacionamento do cristão com a Bíblia deve ser bem mais sério do que geralmente se pratica. Os versículo 8, por exemplo, costuma legitimar o cristianismo e ser usado por teólogos da prosperidade, mas do meu ponto de vista ambos estão errados, estão se aproveitando do texto ao isolar esse versículo dos demais. O versículo 9 nos revela que não há nada do Cristo no tal Filho Ungido que o Salmo 2 nos apresenta, e que o verso não é uma promessa universal de prosperidade, não autoriza qualquer um a pedir, determinar e receber dádivas de Deus. Na verdade, o que vimos é que só o tal Ungido se achava nesse direito, e mesmo assim, a história de Israel nos prova que esse homem, se existiu, nunca recebeu as nações por herança. Essas são questões que geralmente surgem nas aulas de exegese.
·       Na leitura que fiz mostrei que a realidade histórica por traz do texto pode iluminar nossa compreensão, mas não é determinante. Procurei mostrar como a ideologia está sendo defendida, e não sabemos se as afirmações correspondem a qualquer realidade histórica passada. Ou seja, a Bíblia pode ser lida como ficção, útil para quem a recebe, independente de dizer a verdade ou não. Vale dizer que não estou dizendo que as histórias bíblicas são falsas, mas que elas podem ser e nem Sempre seremos capazes de avaliar isso; todavia, isso não é tão importante quanto se julga por aí. O que vale numa narrativa lida não é sua historicidade, e sim, sua mensagem.
·       Também gostaria de dizer que esse texto, se ele realmente preserva a memória de um opressor, pode servir para desencadear uma reflexão sobre a religiosidade humana: Os homens usam Deus, falam em seu nome, e sempre acham que estão fazendo a coisa certa. Todo vilão é herói desde seu ponto de vista, e julga ter Deus a seu lado, contar com sua bênção, e espera ir para o céu um dia. Nem o mais abusivo dos ditadores admitiria servir ao Diabo, e por isso nós temos que ser cuidadosos quando as pessoas falam em nome Deus. Como aconteceu nesse salmo, isso pode ser apenas um truque para manipular os outros. Os líderes religiosos, em especial, usam das mesmas estratégias que o salmista: apóiam-se num suposto “chamado” ou “eleição”, num título religiosamente fundamentado, ameaçam os seguidores com o inferno, e prometem que Deus vai recompensar os que fazem o que eles querem. Pois é, a história sempre se repete.
Enfim, certamente há mais lições para extrair desse texto e da nossa leitura, mas penso que as acima apontadas são suficientes. Como sempre, desejo que o leitor concorde comigo e aprenda a ler a Bíblia de um modo que considero mais maduro; contudo, se o leitor discorda (e ele tem todo o direito), ele pode seguir lendo como desejar, enquanto minha esperança é a de que ele tenha sido aperfeiçoado de algum modo pelo meu trabalho. Então, sigamos refletindo, discutindo, compartilhando, discordando... Mas resistamos aos opressores; mesmo quando eles são bíblicos.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ola Anderson. Tudo bem? lembra de mim, sou o João Queiroz estudei com você num seminário la no belém um seminário batista, o Sergio era o diretor na época. Então queria te fazer uma pergunta sobre um texto do livro de Mateus, sei que você trabalha esse livro. Bom ai vai o texto e a pergunta. Mt 16.28 Garanto a vocês que alguns dos aqui se acham não experimentarão a morte antes de verem o filho do homem vindo em seu reino. Bom Jesus diz nesse texto que alguns dos discípulos não provariam a morte antes que ele viesse no seu reino. como se explica esse texto? Jesus não voltou e esses discípulos também não estão vivos. O que você me diz sobre isso? Abraço