Após
aquela introdução que lemos em Gênesis, nosso trabalho continua. O mito bíblico da criação segue com as seguintes palavras:
E disse Deus: Haja luz.
E houve luz. E viu Deus que era boa a luz;
e fez Deus separação entre a luz e as trevas.
E Deus chamou à luz Dia; e às trevas chamou Noite.
E foi a tarde e a manhã: o dia primeiro.
Destacam-se
os verbos, as ações de Deus, que primeiro cria a luz de maneira sobrenatural
(aparentemente apenas falando, ordenando que o inexistente passe a existir).
Depois ele mesmo vê a luz que criou e a aprova, fazendo a seguir a separação
entre luz e trevas. O próprio Deus dá nome às duas condições que criou,
chamando-as “dia” e “noite”. Podemos ver que aqui o mito cumpre o papel de
oferecer uma cosmologia; ele explica a diferença já conhecida de todos entre o
dia a noite. A linguagem não é científica, e não há nenhum conhecimento
astronômico: o texto nem sequer relaciona o sol à luz do dia; ele não sabia distinguir
a luz solar da luz lunar, não sabia que esta última era também de origem solar,
e de maneira simples explica a razão de existir luz e trevas.
Por fim,
uma frase conclui a estrofe dizendo que “foi a tarde e a manhã, o dia primeiro”.
O dia de trabalho de Deus estava concluído; teologicamente, este é um Deus
humano, ou melhor dizendo, que está construído a partir dos limites da
imaginação humana. Deus pode criar todas as coisas, é muito poderoso, mas
também respeita a rotina de trabalho como todo homem. Deus se assemelha neste
aspecto a qualquer homem que no campo podia suar até que a luz natural o
obrigasse a descansar em casa no final da tarde, dando por concluído o lavor do
dia. Esta é uma característica teológica muito importante neste mito bíblico.
Seguindo
com nossa leitura:
E disse Deus: Haja uma expansão no meio
das águas, e haja separação entre águas e águas.
E fez Deus a expansão e fez separação
entre as águas que estavam debaixo da expansão e as águas que estavam sobre a
expansão.
E assim foi. E chamou Deus à expansão
Céus;
e foi a tarde e a manhã: o dia segundo.
No seu
segundo dia de trabalho Deus finalmente separou as águas, tornando os “céus”
definitivamente inatingíveis para quem estivesse na terra. Aquele abismo sobre
o qual o espírito se movia não era necessariamente uma separação, mas como
dissemos, uma espécie de mar que tornava distante a terra e o céu. Esta
expansão ou firmamento é também uma espécie de solo celestial, e agora existe
água na terra e água no céu, o que deve explicar a razão das chuvas.
Não é
nosso objetivo escrever um comentário do livro de Gênesis e de suas mitologias,
assim vamos resumir alguns pontos. Deus continua trabalhando ao longo de sua
semana, ele cria os mares da terra no terceiro dia, deixando assim uma parte
seca sobre a qual cresce todo tipo de vegetação. No quarto dia Deus cria os
“luminares”, o sol e a lua, cria a relação entre eles e o dia e a noite, e os
fixa no céu. Nos quinto e sexto dias surgem todos os seres vivos para que
encham os mares e toda a face da terra. No sexto dia são criados os homens
(macho e fêmea simultaneamente), e a particularidade desta espécie é que ela
foi feita segundo imagem de Deus, condição especial que lhe permitiria dominar
a terra e todas as outras formas de vida. Essa nova aproximação entre Deus(es)
e os homens provavelmente os ajudava a explicar seu domínio; o poder do homem,
sua inteligência, o fazia maior que os demais seres vivos, e isso era uma
característica divina que só eles tinham.
Finalmente,
chegamos ao final da semana de trabalho de Deus, o sétimo dia. Toda sua obra
estava feita, e curiosamente, Deus aqui se mostra mais humano do que nunca, e
tira o dia para descansar. Em Gênesis 2.3 nós lemos:
E abençoou Deus o dia sétimo e o santificou;
porque nele descansou de toda a sua obra, que Deus criara e fizera.
A
tradição mitológica diz que o sétimo dia, isto é, o sábado, foi o dia em que
Deus descansou de seu trabalho criativo, um dia abençoado e desde a criação.
Imediatamente podemos relacionar estes últimos e contraditórios gestos divinos
à cultura judaica, que nos dias em que este mito ganhou sua forma escrita, já
“guardava” o sábado como dia sagrado. O texto então não só estaria ocupado com
suas explicações cosmológicas, como também serviria como um documento que dava
legitimidade a uma tradição religiosa que já existia, mas que talvez precisasse
de defesa naquele exato momento. Milton Schwantes escreveu sobre este estranho
dia na mitologia de Gênesis, e explicou-o em termos sociológicos. Para
Schwantes, está implícito no mito uma reivindicação pelo descanso do trabalho,
o que o leva a afirmar que o texto teria sido escrito durante um período de
dominação sobre o povo judeu, mais precisamente, durante o domínio babilônico
no século VI a.C. (2002, p. 36-39). Se Schwantes estiver correto, o mito que
oferece razões religiosas para a guarda do sábado era antes de mais nada um
apelo contra o trabalho forçado sem descanso; não podendo recorrer a qualquer constituição
ou fundação de defesa dos direitos humanos, eles usaram Deus, e um Deus
bastante humanizado, para exigir um dia de descanso.
Constatamos
que a mitologia de Gênesis começa de maneira poética, separando estrofes,
aproximando suas formas, repetindo vocabulário... O sétimo dia, que
consideramos o ponto mais relevante para o mito em sua versão bíblica, destoa
formalmente dos anteriores, o que dá destaque ao tema do sábado. Misturam-se no
texto bíblico os interesses sociais e as explicações cosmológicas, o imaginário
dualista de um universo dividido (céu e terra), e as ideias sobre as possíveis relações
entre homens (com características divinas) e Deus (com características humanas).
Como já supúnhamos, o mito pode ter tido uma origem muito remota, um
desenvolvimento oral, uma canonização na tradição religiosa judaica; porém, a
versão que nos chegou às mãos já sob a forma escrita claramente acrescentou
preocupações mais localizáveis no tempo, o que nos permite oferecer alguns
palpites sobre sua datação. A criação é, portanto, coletiva, mas a verdade é
que aqueles aspectos mais míticos, que oferecem explicações para questões
existenciais, são mais duradouros do que os aspectos sociológicos que nele se
possam encontrar, que são mais localizados e condicionados ao momento da
redação.
Nas
narrativas míticas que antes empregamos para fins comparativos, também é
possível notar como o mito possui uma dimensão explicativa mais localizada. Na
criação segundo o mito do candomblé na versão de Reginaldo Prandi, o objetivo é
explicar ou legitimar o próprio ritual religioso baseado na experiência do
transe. Conta o mito que depois da separação entre céu e terra, que impedia os
orixás de festejar junto aos seres humanos, o único modo de superar tal
separação era através dos corpos físicos destes últimos:
Isoladas dos humanos habitantes do Aiê, as
divindades entristeceram. Os orixás tinham saudades de suas peripécias entre os
humanos e andavam tristes e amuados.
Foram queixar-se com Olodumare, que acabou
consentindo que os orixás pudessem vez por outra retornar à Terra. Para isso,
entretanto, teriam que tomar o corpo material de seus devotos. Foi a condição
imposta por Olodumare.
Práticas
rituais deste tipo de religiosidade são apresentadas como exigências dos deuses,
o que é no universo religioso um forte argumento. Segundo a narrativa mítica,
Oxum recebeu o encargo de “preparar os mortais para receberem em seus
corpos os orixás”, e segue:
Veio ao Aiê e juntou as mulheres à sua volta,
banhou seus corpos com ervas preciosas, cortou seus cabelos, raspou suas
cabeças, pintou seus corpos
[...] Vestiu-as com belíssimos panos e
fartos laços,
enfeitou-as com jóias e coroas [...] Finalmente
as pequenas esposas estavam feitas, estavam prontas, e estavam odara. As
iaôs eram a noivas mais bonitas que a vaidade de Oxum conseguia
imaginar. Estavam prontas para os deuses.
Os orixás agora tinham seus cavalos, podiam
retornar com segurança ao Aiê, podiam cavalgar o corpo das devotas.
Os humanos faziam oferendas aos orixás,
convidando-os à Terra, aos corpos das iaôs. Então os orixás vinham e
tomavam seus cavalos. E, enquanto os homens tocavam seus tambores [...],
enquanto os homens cantavam e davam vivas e aplaudiam, convidando todos os
humanos iniciados para a roda do xirê, os orixás dançavam e dançavam e
dançavam.
Os orixás podiam de novo conviver com os mortais.
Os orixás estavam felizes.
Na roda das feitas, no corpo das iaôs, eles
dançavam e dançavam e dançavam. Estava inventado o candomblé.
A escolha das mulheres e os padrões de beleza, sem dúvida
devem possuir uma origem bem anterior à esta bonita narrativa mítica. A riqueza
de detalhes neste ponto, a própria extensão do texto (consideremos que acima não
expusemos todas as linhas da narrativa registrada por Prandi) nos mostra que a
perfeição no ritual, a formação de uma identidade religiosa, a preservação da
cultura, são temais bem mais importantes nesta versão do que aquelas
preocupações cosmológicas. Este é o mesmo fenômeno que testemunhamos em
Gênesis, que parecia preocupado com a criação, as que por fim se mostrou mesmo é
preocupado com a sacralidade do descanso sabático. Assim, estudar narrativas
míticas é mais do que estudar a teologia de povos primitivos pré-científicos, é
estudar antropologia das religiões, é investigar culturas e as ricas
possibilidades da linguagem religiosa, que insiste em superar as previsões
pessimistas de ocaso feitos pela cultura racional do mundo ocidental moderno.