Já dissemos que Marcos não traz com tantos
detalhes a narrativa das tentações de Jesus no deserto. Essa história está
presente em Mateus e Lucas (4.1-13), pelo que os estudiosos acreditam que ela
tenha sido produzida a partir da chamada Fonte
Q. Em nosso comentário dessa narrativa, vamos recorrer a um instrumental
específico da Semiótica Discursiva,
que identificou a existência de quatro tipos de manipulações, dentre os quais
está a tentação. Empregaremos este recurso aqui para demonstrar que as
investidas do Diabo não são todas do mesmo tipo, e para entender as razões
pelas quais Jesus pôde resistir a elas.
A
Semiótica Discursiva se ocupa da
narratividade dos textos, e da maneira como um sujeito que pode ser chamado de
destinador, manipula outro sujeito para que faça o que ele deseja. A primeira
maneira de manipular alguém seria através da “tentação”. Na tentação, o manipulador
tenta convencer o destinatário a fazer algo por meio de uma espécie de suborno,
pela oferta de valores que este destinatário deseja. Assim, para que a
manipulação seja eficaz, é preciso que a oferta seja interessante, desejável. O
sujeito é levado a fazer o que o outro deseja, ou a crer no manipulador, para
que venha a adquirir o valor oferecido. A tentação, portanto, é ineficaz quando
a oferta não é tão desejável ao sujeito que está sendo manipulado. A segunda
forma de manipulação é a chamada “intimidação”. Ao contrário da primeira, em
vez de oferecer valores interessantes, na intimidação o manipulador ameaça
retirar do seu destinatário algum(s) valor(es) que ele possui, ou acrescentá-lo
valores que ele não deseja. Uma típica intimidação religiosa é a ameaça do
inferno, que pode ser compreendida como a ameaça de se perder a paz, a saúde, a
vida, a família etc, dependendo do contexto. O religioso assim é induzido a
praticar atos que talvez não desejasse, por medo de sofrer tais consequências.
A
terceira forma de manipulação é a “sedução”. Agora já não se trata de promessas
e ameaças, mas de exaltações sinceras ou não, que o manipulador faz em relação
às características do destinatário. O sedutor é aquele que tenta convencer o
outro elogiando-o, notando ou até destacando com exagero as suas virtudes; esse
ato aparentemente benévolo, indiretamente leva o destinatário a agir para
confirmar a imagem que o outro fez dele. Enfim, também pode-se manipular alguém
por meio da “provocação”. Neste caso, em vez de exaltar as características do
outro, o manipular deprecia-as, e da mesma forma o destinatário se sente
forçado a agir, desta vez para alterar a ideia negativa que o outro faz dele.
Voltando
à narrativa de Mateus 4.1-11, Jesus é levado ao deserto pelo próprio espírito e
jejua lá por quarenta dias. Tanto o numeral “quarenta” quanto o código topográfico
“deserto” são heranças da tradição religiosa judaica, e remetem o leitor ou
ouvinte desta nova narrativa às história de Moisés e ao Êxodo, quando este
libertador tirou os israelitas da escravidão no Egito e os fez peregrinar por
quarenta anos no deserto até que tomassem posse de sua própria terra em Canaã. O
cenário evocado para as tentações de Jesus é o de uma nova libertação, de um
período de provação que conduzirá o sujeito que for aprovado à vitória. Neste
cenário, Jesus está provando sua aptidão, passando por um teste decisivo que
lhe capacitará para a missão.
No
versículo 3 temos a primeira investida do Diabo. Geralmente nos lembramos que
ele desafia Jesus a transformar pedras em pães para matar sua fome. Isso seria
uma tentação, pois está-se oferecendo a Jesus algo que ele supostamente
desejava durante seu período de jejum. Todavia, os pães não são valores tão
desejáveis no ethos religioso do
Movimento de Jesus, pois sabemos que eles consideravam a fartura um valor
negativo. Os seguidores de Jesus deviam aceitar a pobreza voluntária (Mt 19.16-22)
e se contentar com o suprimento de Deus (Mt 6.25-34). Porém, esta tentação não é
o ponto mais relevante. Antes de oferecer pães, o Diabo desafia Jesus por
provocação, dizendo: “Se és o filho de Deus...”. Lembremos que Deus mesmo havia
dito que ele era o filho de Deus em 3.17. O Diabo questiona a sanção positiva
dada por Deus, desprestigia o status de Jesus, desafia sua identidade. Por isso
dizemos que aqui não temos uma tentação, e sim uma provocação. Mais do que
matar a fome, Jesus poderia transformar pedras em pães para provar diante do
Diabo que era o filho de Deus. Todavia, Jesus resiste à provocação, e diz que
ficaria com a “palavra que sai da boca de Deus” (v. 4).
Algo
semelhante acontece depois (v. 5-7). O Diabo da visão apocalíptica outra vez
desafia a identidade messiânica de Jesus levando-o para o pináculo do Templo e
desafiando-o a se jogar de lá para que os anjos o servissem. Outra vez, temos
uma provocação, que tenta manipular Jesus desafiando seu status. Se Jesus se
deixasse manipular, se atiraria para que fosse servido por anjos dando provas
de sua identidade messiânica, ou seja, agiria para confirmar a imagem que o
Diabo estava questionando. Novamente Jesus demonstra que não precisa confirmar
sua imagem, pois isso seria duvidar da voz divina. Jesus não é manipulado
porque crê na palavra de Deus sobre sua identidade, e também porque não procura
ser servido, não faz questão de ser honrado. Novamente, os valores ofertados não
interessam, não manipulam, pois Jesus estava no mundo para servir e não para
ser servido (Mt 20.28).
Finalmente,
a terceira investida do Diabo é realmente uma tentação (v. 8-10). Dessa vez ele
oferece a Jesus todos os reinos da terra (os quais lhe pertencem na perspectiva
mateana) se ele se prostrasse e o adorasse. O Diabo se faz neste ponto um opositor
de Deus, pois quer tomar para si o “servo” que Deus há havia recrutado. Para
isso ele oferece poder político, e consequentemente, riqueza. A oferta, no
entanto, é desinteressante. Jesus não poderia ser tentado por tais coisas, pois
como vimos, segundo seu quadro de valores a pobreza é melhor que a riqueza,
assim como o serviço é melhor que o senhorio. Em resposta (v. 10), Jesus mostra
que o que mais o incomodou foi a ideia de deixar de servir a Deus para servir
ao Diabo, e cita um mandamento do Antigo Testamento (Dt 6.13).
O
que vimos é que em nenhum momento Jesus parece ameaçado pela fartura de pães,
pela honra de ser servido, ou pelo poder político. Tais tentações são
enfatizadas pelos leitores de hoje porque estes valores são positivos (eufóricos)
segundo seus próprios quadros de valores. Mas o ethos de Jesus é oposto, e vê
honra, riqueza e fartura como valores negativos (disfóricos). Se fossem apenas
essas as ofertas, as tentações do Diabo seriam superadas sem dificuldades por
Jesus. Então, vemos que as verdadeiras ameaças foram outras; o Diabo atacou a fé
de Jesus, e este teve que se apoiar na palavra dita por Deus em 3.17 para
continuar acreditando que ele era o filho de Deus, o Messias. Assim, ao
adotarmos a classificação da Semiótica
Discursiva, chegamos à conclusão de que não temos somente “tentações”, mas
principalmente provocações, as quais foram superadas pela fé de Jesus na
palavra de Deus, e pela segurança que ele demonstra em relação a sua
identidade.
O
versículo 11 sanciona positivamente e pragmaticamente Jesus, o recompensa por
sua grande vitória dizendo que o Diabo o deixou e que anjos o serviram. Não foi
necessário provar nada, Jesus estava seguro de si, e pronto para sua missão.
Para
finalizar, observemos a imagem que no começo usamos para ilustrar essa leitura
de Mateus 4.1-11. As tentações do Cristo são retratadas simultaneamente pelo
artista, Sandro Botticelli, no final do século XV. Jesus e o Diabo aparecem
juntos em três lugares da imagem, nos cantos superiores e no centro. Cada “tentação”
ou “provocação” está aí retratada, e depois, à esquerda e um pouco mais abaixo,
temos o final tranquilizador da narrativa, com Jesus e os anjos. Vemos como
numa só imagem o artista retratou todas as cenas, fazendo com que tenhamos uma
confusão cronológica proposital, ainda que a disposição delas na imagem induza-nos
a uma certa sequencialidade de leitura. Vale a pena observar também, que Jesus,
o Diabo e os anjos, personagens do texto bíblico que dão nome ao quadro,
aparecem em segundo plano no ponto de vista proposto pelo autor, pois a maior
parte da imagem se dedica a apresentar pessoas em trajes medievais envolvidos
em suas atividades. A clareza com esses são apresentados é maior, são
personagens mais “redondos”, mais complexos, e parece que eles seguem em suas
próprias rotinas (também religiosas) sem sequer se dar conta do que acontece
acima de suas cabeças. É no alto, e num plano não tão visível, que o destino da
humanidade está sendo decidido, e para essa ambiguidade que o autor quer nos
chamar a atenção, nos dando o privilégio de visualizar quão paradoxal é a vida
humana.
Você pode baixar a imagem para sua análise em www.wga.hu
Você pode baixar a imagem para sua análise em www.wga.hu
5 comentários:
Só tenho a agradecer pelos estudos.
Valderi Jr - ICEC
Este texto vao para o meu blog:
http://depositoteologico.blogspot.com
Olá Altair, agradeço pela divulgação e pela atenção aos textos. Sucesso com seu blog também.
bacana anderson é bem o que vc tem nos dito na sala de aula. esclarecedor..
É INCRÍVEL ESTE PARADOXOS; LEVA-NOS À SENTIRMO-NOS "DONOS" DA ÓTICA PRIMÁRIA. AO LER, "ESTAS MIGALHAS DO PÃO CELESTIAL" ESTE TEXTO, TORNOU-SE UM MANÁ... PROFESSOR TALVEZ NUNCA SAIBAS O QUE ME ACONTECEU. DEUS TE RECOMPENSE POR ESTE TRABALHO.
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