Depois de discutir questões práticas sobre a liberdade do cristão, voltamos aos nossos comentários sobre o Evangelho de Mateus. O trabalho é longo, mas recompensador. Nas últimas seções comentadas falávamos sobre o profeta João Batista com suas ações e mensagem. Ainda há mais para dizer, agora a partir dos versículos 7 a 12 de Mateus 3. Há uma diferença entre esses versículos e os anteriores. Aqueles falavam do próprio profeta, da sua mensagem, da sua aparência, do seu ascetismo. Agora o texto dará mais espaço ao profeta, deixando-o falar do versículo 7b a 12. Porém, o narrador desta história introduz esta fala, dá lugar a ela, contextualiza-a.
No versículo 7 o narrador diz que João Batista começou a ser procurado por fariseus e saduceus. Sabemos ao sobre estes dois partidos, o primeiro, o dos fariseus, eram religiosos que nos dias de Jesus não tinham tanta influência política, e que estruturavam sua religiosidade sobre a interpretação e prática da Torah. Os saduceus eram menos numerosos, porém, mais influentes. Aparentemente estavam integrados à religiosidade centrada no Templo de Jerusalém e seus sacrifícios; não por acaso, depois do ano 70 E.C., quando os romanos destruíram Jerusalém e o Templo, os saduceus desapareceram.
É importante dizer que os fariseus e os saduceus (v. 7) não estão presentes nas versões de Marcos e Lucas. É Mateus quem dá nome às víboras e faz o profeta João anunciar juízo sobre os mesmos por meio de várias pequenas sentenças. Os fariseus são mais importantes aqui; esta é apenas a primeira indicação das diferenças e conflitos entre o grupo mateano e os fariseus que estão por trás da composição do evangelho. Este embate se intensificará no decorrer das páginas, e veremos que as inclusões mateanas visam condenar ou deslegitimar a religiosidade farisaica, que não eram importantes nos dias de Jesus, mas que estavam em rápida expansão nos dias em que Mateus escreveu seu evangelho, provavelmente entre os anos 80 e 90 E.C. Aos poucos nos aprofundaremos neste problema.
É fácil notar que temos então uma coleção de pequenas sentenças, todas anunciando juízo sobre os fariseus e saduceus, que por motivo desconhecido, procuravam João para batizar-se. Na primeira sentença, a exigência para que dêem frutos que demonstrem o arrependimento (v. 8). O evangelho acha que aqueles religiosos não estão cumprindo sinceramente a exigência de um arrependimento, pois suas obras continuam sendo más. Depois (v. 9), o texto discute a questão étnica, pois muitos dos judeus pensavam que estariam com Deus em seu reino simplesmente por serem descendentes de Abraão. Ou seja, eles criam numa predestinação, numa eleição da nação de Israel, e portanto, não dependiam de bons frutos. Mateus diz o contrário, que a descendência judaica não era sinal de “salvação”, e exige arrependimento e mudança de hábitos para todos. O versículo 10 conclui esta primeira coleção de ditos com uma analogia sobre a árvore que não dá bons frutos. Obviamente, tal árvore é como aqueles religiosos que não dão bons frutos e que serão cortados.
No versículo 11 João legitima o ministério de Jesus. Ele é maior que João, e é ele quem apocalipticamente traria juízo sobre a terra. Embora seja difícil explicar, a parte “b” do versículo ainda está relacionada a este juízo. Jesus batiza com o Espírito Santo e com fogo: o fogo é certamente uma imagem negativa, de punição, mas o batismo com o Espírito não está claro. Talvez seja a dádiva para aqueles que tiveram bons frutos e que serão poupados do fogo. Outra imagem é evocada para falar deste juízo, desta separação entre maus e bons no “Dia do Senhor”, e o versículo 12 diz que ele então limpará sua eira, juntando os “justos”, o trigo, no celeiro, enquanto que os “ímpios” seriam queimados como palha no fogo que nunca apaga.
Para encerrar nossos comentários, sugerimos que o leitor comece a prestar atenção às imagens apocalípticas de Mateus. O Senhor vem ao mundo para limpar sua eira, para purificar a terra da injustiça. Mateus segue a expectativa herdada de Isaías de um Reino de Deus na terra, mas numa terra restaurada, purificada. Não há arrebatamentos, novos céus nem ruas de ouro. Esta imagem, contrária à expectativa da maioria dos cristãos de hoje, ficará clara ao longo do nosso estudo; mas não vá generalizando as coisas, a Bíblia traz várias formas de esperança, que são contraditórias em grande parte. Assim, não há expectativas certas ou erradas, mas apenas esperanças.
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