A fim de
aprofundar os conceitos anteriormente expostos sobre a teologia e seu lugar no
ambiente acadêmico e religioso, seguiremos desenvolvendo o tema a partir de um
novo modo de ver. Procuraremos definir o “Sujeito Teológico”, que é um sujeito
ideal e imaginário, que possui as principais virtudes que defendemos; ele será
construído a partir da comparação didática com outros sujeitos estereotipados
que criamos, o “Sujeito Religioso” e o “Sujeito Científico”. Tais personagens
são fictícios, representam posições extremas, baseadas na união de
características observáveis individualmente em sujeitos concretos. Por
incluírem em suas descrições virtudes e defeitos presentes nos diferentes
grupos sociais que observamos e para os quais atuamos, estes “sujeitos” podem
nos ajudar a refletir sobre o posicionamento do teólogo no mundo atual, nos
levando à reflexão construtiva.
O Sujeito Religioso: Comecemos definindo o “Sujeito Religioso” como aquele que usa a fé para
interpretar o mundo. O “Sujeito Religioso” é fundamentalista, assume como
verdades inquestionáveis os elementos de fé que assimilou, e julga tudo o que o
cerca a partir de seus próprios dogmas. Como não podia deixar de ser, o
“Sujeito Religioso” não está aberto ao diálogo quando qualquer de seus dogmas
religiosos é questionado, e embora saibamos que tais dogmas são aceitos pela fé
e estabelecidos pela autoridade religiosa, para este sujeito eles possuem mais
valor ou são mais seguros do que qualquer resultado da aplicação de métodos
científicos empíricos. Como resultado, o “Sujeito Religioso” vive em constante
conflito com a racionalidade científica, que sempre está em transição ao
oferecer novas formas de entender o mundo.
Dentre os
muitos elementos negativos que resultam da postura fundamentalista, poderíamos
destacar algumas que estão bem presentes em nosso cotidiano. Por exemplo, o
“Sujeito Religioso” constrói sua identidade criando fronteiras imaginárias os
homens, cria grupos antagônicos baseados principalmente na opção religiosa de
cada um, e isso pode acabar por autorizar conflitos entre o “nós” e o “eles”.
Muitas “guerras santas” tiveram seus reais interesses mascarados
religiosamente, e mesmo quando a violência não é uma opção, a discriminação, a
intolerância e o desrespeito para com as diferenças pode ser uma realidade.
Assim, o “Sujeito Religioso” costuma rotular os grupos sociais, geralmente
dividindo o mundo em duas partes, a dos “santos” e a dos “pecadores”, a dos
“irmãos” e a dos “mundanos”, a dos “filhos de Deus” e a dos “filhos do
Maligno”... Tudo isso reflete uma visão limitada do mundo, uma leitura
condicionada pelo dogma que resulta no desconhecimento do outro.
Além de
dividir a espécie humana em duas partes, também podemos constatar que o “Sujeito
Religioso” mantém essa ótica dualista de mundo (céu e terra, bem e mal), em
outras instâncias da vida. Para alguns deles, a terra é um terreno tenebroso,
amaldiçoado, destinado à destruição. Não surpreende que para os tais, toda a
materialidade é tratada com desprezo, e que o “Sujeito Religioso” negligencie
seu papel na preservação da natureza, sua responsabilidade na ordem política,
sua importância no âmbito social. Estes “desajustes” não são para ele meramente
resultados da ação humana irresponsável, mas efeitos irreparáveis da criação, e
a solução para tais desajustes está na expectativa de intervenções divinas, e
isso em termos bem mitológicos. Se para esse tipo extremo de “Sujeito
Religioso” a ordem problemática do mundo não é um problema cuja solução necessite
de sua participação, é claro que outros desajustes sociais também ganham
legitimação religiosa, e que os tais resistem às mudanças. Assim, a fé mantém
sistemas opressivos, incentiva a hierarquização humana, a desigualdade
socioeconômica, o machismo, a repressão contra a liberdade filosófica...
Como já
dissemos, nosso personagem chamado “Sujeito Religioso” reflete uma leitura
extrema que fazemos de sujeitos concretos que usam os dogmas religiosos como
critério para interpretar o mundo. O que importa é afirmar que esta posição,
mesmo que não assumida de maneira tão radical, não é a que consideramos ideal
para o “Sujeito Teológico” que procuramos formar. O discurso do sujeito
religioso é abrangente para o fiel em termos cosmológicos, porém ineficaz em
seus efeitos práticos e na sua influência externa. Sua fundamentação religiosa
e resistência injustificada para com a racionalidade científica é vista como
postura antiquada, como elemento limitador para sua visão de mundo, e com
efeito, tal discurso possui alcance restrito, fica preso ao círculo de uma
mesma confissão religiosa, e produz poucos resultados para além do indivíduo e
seu grupo mais íntimo.
O Sujeito Científico: Em radical oposição ao anterior, o “Sujeito Científico” ou racional é
aquele que assume a ciência e seus métodos como elemento capaz de explicar o
mundo. A sua suposta racionalidade empírica, todavia, resulta numa forma
invertida de fundamentalismo, onde a “ciência” assume mesmo poderes
sobrenaturais e concentra todas as esperanças do indivíduo. O não
reconhecimento das limitações inerentes à racionalidade científica é também uma
forma de dogmatismo, tão cega quanto qualquer fanatismo religioso, pois o
cientista contemporâneo deve saber das limitações dos seus métodos, da
subjetividade das suas escolhas e leituras, e da transitoriedade dos resultados
da sua ciência.
Como
acontece com o “Sujeito Religioso”, o “Sujeito Científico” acaba rotulando os
seres humanos. A princípio, podemos supor que seu critério de avaliação seja o
conhecimento, todavia, em muitos casos a opção religiosa é o elemento utilizado
para tal classificação. Desta maneira, pode o “Sujeito Científico” agir de
maneira contrária à sua racionalidade ao considerar o indivíduo religioso
sempre um ignorante, antiquado, infantil... Portanto, a racionalidade desse
tipo não é capaz de pôr fim aos preconceitos e às falsas fronteiras que dividem
a humanidade em nosso imaginário.
Além
do que já foi dito, o “Sujeito Científico” pode ser caracterizado pelo
pragmatismo que condiciona suas ações. Ou seja, todo seu empenho está baseado
na necessidade, na demanda, e sua ciência como instrumento para ler o mundo
acaba servindo como um facilitador para nossa cultura de consumo. O “Sujeito
Científico” emprega seu tempo e pesquisa tendo em vistas o resultado prático e
lucrativo, e a religião naturalmente será um produto cultural de importância
relativa. Não é fácil notar que em todo esse processo produtivo existe uma
carência de fundamentação ética, a qual é substituída por leis e ameaças, cujos
resultados em nossa sociedade já demonstram sua insuficiência. Mesmo assim, o
“Sujeito Científico” continua acreditando na racionalidade, na sociedade
perfeita que é construída por meio da democracia e de códigos legais mais
abrangentes. Se o sistema não funciona, a culpa é dos seres “não racionais”,
que votam por motivos religiosos, que por ignorância não entendem nem obedecem as
normas estabelecidas.
Sem
dúvida, o discurso do “Sujeito Científico” parece mais atual, porém, ainda se
mostra inocente quando não sabe reconhecer sua insuficiente e não é capaz de
reconhecer o valor de explicações alternativas para a existência. Por mais
atualizado que seja cientificamente, ele continuará sem respostas para antigas
crises existenciais dos seres humanos, e naturalmente, essa lacuna continuará
sendo preenchida pela mitologia, linguagem que continua sendo de domínio
religioso.
O Sujeito Teológico: Diferente dos outros sujeitos descritos, o “Sujeito Teológico”, que não
precisa necessariamente ser um teólogo, é aquele que sabe articular o
conhecimento religioso e científico, tirando de ambos os elementos necessários
para interpretar o mundo. Noutras palavras, ele é alguém que assume a
racionalidade científica e suas explicações, mas que não considera isso um
empecilho para a fé que é necessariamente não empírica.
Pode
parecer estranho, mas o “Sujeito Teológico” é capaz de assumir Deus como uma
hipótese plausível, como o elemento capaz de explicar o que não pode ser
explicado cientificamente. Porém suas definições religiosas não admitem
dogmatismos. Por estar em conformidade com a evolução da racionalidade
científica, o “Sujeito Teológico” entende que por vezes é necessário reformular
sua hipótese religiosa, conformando sua fé às conclusões científicas que lhe
parecem seguras. Logo vê-se que o “Sujeito Teológico” não é necessariamente um
indivíduo religioso, embora possa se manter participante de atividades rituais.
Diferente dos outros sujeitos fundamentalistas que descrevemos, o “Sujeito
Teológico” está consciente das limitações de seu conhecimento, da
transitoriedade de seus pressupostos, e assim se transforma em alguém mais tolerante,
que não julga necessário “converter” o outro às suas hipóteses.
Outra
virtude do “Sujeito Teológico” é que ele, por não fazer da religião o fim
último de sua ação no mundo, atua de maneira mais eficaz sobre a realidade do
que o “Sujeito Religioso”. Todavia, diferente do “Sujeito Científico” que se
caracteriza por um pragmatismo consumista, o elemento religioso lhe oferece
padrões éticos que o envolvem numa missão de caráter mais humano, permeada por
valores que só se justificam através da fé. O “Sujeito Teológico” se torna,
dentre os três estereótipos criados, o mais eficaz quando pensamos em temas
como o da “consciência ecológica”, quando empreendemos ações sociais que visam
alcançar o próximo em sua integralidade, ou quando falamos de verdadeiro
ecumenismo.
O
discurso do “Sujeito Teológico”, por conta de tudo o que já dissemos, é o mais
maleável. Este sujeito é capaz de dialogar com competência dentro dos meios
acadêmicos, pois valoriza a educação formal e pode possuir as competências adquiridas
nas instituições de ensino, mas ele não deixa de ser relevante nos círculos
religiosos, onde pode se transformar no grande responsável pela transformação
social.